23/03/2022

REGISTOS CIVIS - 105 & 106

© DA.


Vincelhos - 105

                      

 

    Um homem na berma do trânsito que fervilha na avenida. Muita intensidade na sua mente, enquanto progride em marcha rumo ao centro da Cidade. Se se descuidar, mais aflitivos lhe serão os dias – que noites precárias mal separam. O ano é indistinto – mas é vinda já a Primavera com seus mortos perfumados, ungidos a esquecimento.
    Sempre algo virá. Sempre algo será. Melhor coisa seria não tão intenso o que fulgura na mente. Difícil controlar essa azáfama. Digamos que uma segunda à tarde tem de tratar da reparação dos óculos. Digamos que uma sexta de manhã tem de apresentar requerimento a um instituto oficial. Digamos que ele cumpre essas manobras. Há sempre o perigo da desimportância-de-tudo.
    Entreter & entretecer liames à realidade suportável – bom objectivo. Nem que provisoriamente, nem que com vincelhos – bom objectivo. A existência como documento-autêntico, avulso embora. Isso na cabeça desse homem sem particular (pública, muito menos) notoriedade. Alguma coisa em algum sentido se resolve. Segunda à tarde, sexta de manhã, algum sábado menos cruento, algum domingo não tão pungente.
    O tempo-individual de tal homem + o tempo-multitudinário em que age: permanente interacção de mundos. E entre um & outro, não muitas são as peças-legos, por assim dizer. Os vínculos são precários, há que, em constância, forçar diques, oposições, alheamentos, indiferenças. Tal embate é de perfeita inexorabilidade.
    Este homem é de uma naturalidade & de uma nacionalidade. Trata-se de uma pertença: de freguesia-nação. O que vale isso em amendoins? Em tremoços, nada. É um vínculo de outra essência. É uma condição em que a Língua bate em cheio. Esse tempo-contínuo do Idioma unifica & multiplica, à vez mesma, a pessoa natonacional. (Chamemos-lhe assim, mal não faz.)
    Talvez um sábado à noite. Já sucedeu muita alegria a muita gente nas noites sabatinas. (Muita agonia também, vai & vem do regulamento.) Algum rosto em vez de uma cara qualquer. Algum fraseado em lugar de qualquer alarido. Um encontro de afluentes na rumorosa noite. Barcos chapinhando como patos. Frio lá fora, não aqui entre nós. (Nós – por assim dizer.)
    Em pura interioridade, aliviar o nó estreito-angustiante mercê de recurso a imagens fortes, bem inscritas & bem gravadas, dinâmicas & gratificantes. Não já o hedonismo primário mas outra coisa – outra levitação.

 


Em frente - 106

                      

 

Pensei hoje em António Nobre.
Há muitos anos que faz parte da minha plêiade.
É por excelência um literato oitocentista português.
E é um dos finados demasiado-moços da galeria.

Por arrasto, também Cesário Verde me acudiu.
Outro-único, virtuoso quedado tão novo também.
Tanto Anto quanto Cesário preconizam a modernidade poética.
Têm sobrevivido alguma coisa – não muita mas alguma.

Por mim, andam comigo sem esforço.
Faço deles releituras as mais vezes tranquilas.
Invariavelmente me encantam & gasalham.
Há muito não ensino – mas desde sempre aprendo.

Pensei, também & ainda, em regato murmurando pedras.
Apascentavam-se quadrúpedes em inclinado plano.
Árvores esparsas pintalgavam a contraluz panorâmica.
Soube-me o pensamento a tempo estagnado na mente mesma.

Em trâmites ordenados, recebo vozes escritas coerentes.
(Há ordem nessa dimensão da minha vida, garanto-o assaz.)
Escuto-as pensando-as, tenteando em suas areias líquidas.
E não me parecem de todo mortas, não enquanto respiro.

Em outras dimensões, falo o mínimo sobrevivencial.
Fora de papéis como este, não excedo a alheia paciência.
Prefiro rondar os silêncios esmagadores da roda social.
Sim, espécie de levitação (última palavra do 105, sim).

Penso ora em um dos tu(s) que já avizinhei em fala.
É pessoa em constante afã, de úbere dinamismo constante.
Pessoa de merecimento singelo, ordenadora da existência.
Melhora o mundo por gostar de viver quanto possível.

Não estranharia que lhe falasse, eu, de Nobre & Cesário.
Ou de outras coisas, diversos lances, farrapos de coisas, tudo.
Ou quase tudo, enfim, do imaginário real &/ou surreal.
As pessoas às vezes partilham deveras & de facto tesouros.

Sem nome, é mais precário estender a ponte.
Sem rosto, não julgo possível fazê-lo.
Ainda respiro? Então caminho em frente.
Ainda penso? Então caminho em frente – (a)onde Anto & Cesário.








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Canzoada Assaltante