© DA., Sr.
Pai(s) - 103
Dia do Pai. Já não tenho um. Estou por minha conta. Não tenho sénior a quem responder. É como é. Lei velha sempre remoçada. Não faço queixa nem apresento reclamação. Faço versos – isso sim, faço. Do popular adágio francês: “On ne peut pas contenter tout le monde et son père.” Não estou em maré de contentamento. Em dias assim, o sentimento de orfandade é mais preclaro, mais imperioso, menos fácil, menos suportável. O meu Pai ficou órfão de Pai em menino. Eu não. Faltavam-me duas semanas para fazer trinta anos quando ele se desmatriculou desta escola. Acompanhei-o até à véspera do passamento. Fui depois um dos que deram mão ao caixão. Foi sem serviço religioso: sou de um clã sem igreja. O Rui beijou-lhe a testa na sala, ali o velámos. Dia do Pai, dicunt mihi. Está sol, é de luz aberta o dia corrente, Sábado-19-do-3, é um dia de portuguesa boniteza. Entra um senhor portador de saca plena de maçãs doiradas. Bela fruta. O cavalheiro parece-me de alguma ilustração sapiente. Fere as sílabas todas, não elide. Isto acontece no bairro chamado Santa Apolónia, a célebre (conimbricensemente falando) “cidade-satélite” de há umas poucas décadas. Não me importaria de conversar um pouco com ele, saber algo de suas sabenças. Não acontece nem vai acontecer. Ele veio investir moedas no euromilhões, não olha derredor nem se demora. Eu sou tão-só um corpo inclinado a lápis sobre um papel. Nunca fui ou serei outra coisa – ou figura, ou (in)distinta aventesma. Sou filho & neto de desaparecidos-em-combate: nada original, por conseguinte. (Irmão também, irmão também de, ’té ’ora, dois.) Há quem (feliz) de mui diverso modo lide com o luto-de-sangue. Parece nem ser coisa que sobremaneira lhe(s) diga respeito. Feliz gente. Seguem em frente descuidando fímbria de abismos. Morriam de congestão, antigamente, na Barrinha de Mira. Hoje, morrem de terem nascido tão-só. Não estou fora de tal bicha – mas é ordeiramente que espero vez, sem queixa nem reclamação. Dia do Pai? Tanto ao mar & tanto à terra. Consueta orfandade. Comunizo com fantasmas vagamente silábicos. Alguns deles deixaram monumentalidade de si: Herculano, Camilo, Eça, Wenceslau, Pessanha, Cesário, Pessoa. (E o senhor meu Pai, que, não escrevendo embora, contou.) E o vago rapaz-da-camisola-verde de Pedro Homem de Mello. Nada a fazer quanto à extinção de sua fisicidade – a grande porra é a maravilhosa voz aliada à maravilhosa escrita. (Gostaria de ter dito isto ao senhor das maçãs doiradas em Santa Apolónia. Não pode ser.) Vou ver o meu Irmão Zé esta tarde (que é, também, Pai de alguém). Depois? E depois? A rua. A anónima rua de nomes históricos. E as pessoas-sem-Pai que andam aí a fazer de adultas, digo, crescidas, digo, este poema do Dia do Pai?
Sem comentários:
Enviar um comentário