27/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 803 a 810

José Abrunheiro (1880 - 1928 ou 1930)

803

Segunda-feira,
23 de Outubro de 2021

Escoro com versos quanto escrevivo.
Importa-me fazê-lo antes da largada.
Quando póstumo, deixarei andar
– mas não por encanto, perdão, enquanto.

Autopiedade não gasto nem escusa.
É-se feito também dos próprios erros.
Altifonantes qualidades? Nem por isso.
Antes alimentar aves, alegria certa.

Tenho lido devagar mais a vida do que os livros.
Vou conseguindo invisibilidade, é proeza.
Nem todos deixamos rasto, resto ou rosto
– é-se de caras esquecido, dê-se-nos tempo.

Não vejo qualquer herói ao espelho.
Não cuido ao espelho de vítima alguma.
Cortei o queixo, golpe fino ao raspar da barba.
Já coagulou, posso sair de cara lavada.

Sem ansiedade nem euforia, pela tarde
progrido na incerteza mais domesticada.
Tomo a meia-de-leite com a doce queijada-
-de-Tentúgal – e tudo sem precisar de

satisfações dar a quem (não) quer que seja:
poderia mui bem ir à bifana com cerveja.
Mas não, deixo correr, não padeço de pressa.
Tenho caterva de Camões, Pessoa & Eça

com que afrontar a ignorância & o desuso.
Já muito o disse: não me dou por deluso
para com alienações ovelheiras ou moralóides.
O meu músculo é natural, não é coisa de esteróides.

Escrevo sim estas quadras-pró-manjerico.
Os santos mais impopulares me guardam vãos.
Estiolo só de lucidez – e de perder Irmãos.
Quanto ao resto, nem mísero pobre nem porco & rico.

(804)

(Pícaro que não épico embora & todavia,
faço por merecer da noite o óbolo do dia.)

805

E andei por onde tive seis, dezoito, vinte
& dois anos, voltei aperreado de outra idade,
calcinado de a não ter agora nem jamais nunca.

806

    – Hoje foi um dia complicado – diz a senhora bebedora sem dentes a seu parceiro de monólogo.
    – Ainda tenho quase cinco euros – redargue o parceiro – mas eu se fosse a ti não me fiava muito nisso.
    Sou o terceiro (mas mudo) destas falas. Calo-me (escriba) a este canto do balcão (ão-ão). Vim ver o sítio onde cresci. Está cá ninguém de meu crescimento.
É nada bonito este deserto demográfico. Sempre há último-autocarro. (Como é que isto se põe em escrita? Então não vêdes? Então não lêdes?)

807

Anos de mais tenho eu feito maus versos:
o tempo é de melhorar a prestação.
Ventos & mijos usam ser adversos,
um gato não é cão, que o cão é cão.

Minha senhora aviadora deste plano de balcão:
a mal não leve por escrito a prestação
de minha breve segunda-feira, n’ faça tal não.
Sim? Não?

Anos de mais tenho eu perdido de mais anos.
Passei hoje por a avenida mesma onde, aos 23,
devassei espumas & neves & flocos d’oceanos
que eu sinceramente nem sim nem não nem talvez.

808

    Quarta-feira próxima, revejo, em princípio, a o meu Irmão José Daniel. Não é um acontecimento de interesse mundial. É mais particular – para não dizer privado. Concorre a tal evento a minha Cunhada, que é Mulher dele, assim tem sido & continua. (Quem me dera poder palavrar cada reencontro com ele – assim doente.)
    Ele é – mas não está – o Zé a que fui habituado. Demora muito (ou tudo) aceitar isto. Lido com esta situação à minha maneira. (Nos últimos 34 anos, não tem sido lá muito boa, digo, a minha maneira.)
    Não me lembro de me terdes dado boleia à beira da estrada. Nem de me haverdes atirado água quando ardia. (Nem de V. fazer coisa rimada à beira da noite minha & de meu dia.)

809

Seria bonito algum gráfico que fosse traçado
a nascer das voltas que, moço, dei por a Cidade mesma
que a mocidades descura, quer saber nada, pobre & coitada.
Aonde me dirigi, do autocarro saído qual ciosa cadela:
a que beberete de balcão pedi (& paguei) café-com-leite.

Bonito & inútil – digo (& digo bem).
Tal gráfico retraçaria tão-só um gajito.
Mais-um que quando menos-um, pronto, resto-zero.
Ainda por aí vou (povo-nobreza-&-clero).
Ah pá.

810

Seja como for (e é)
Ainda sou o neto de José,
Pai de meu Pai, nascido em 1880.
Esta pertença ainda me aquenta.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante