25/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 802



802

Sábado & Domingo,
23 & 24 de Outubro de 2021

    Recantos do estúdio povoados de bens escolhidos a dedo em benefício do palato: vinho, queijo, presunto, fruta. Bem emoldurado, o retrato-duplo: Mãe & Pai na mocidade. Dois móveis-livreiros de portais envidraçados. Ao centro, mesa redonda & semibaixa. Sofá longo em L de couro flavo & promissor de conforto rico. Aí recebe D. Roderico Manuel de Mattas Pena as pessoas que escolhe. São raros, os escolhidos.
    Então, por vontade própria, D. Roderico exila-se por três anos & quatro dias nos Açores (Faial). Toma-lhe conta da casa o casal Moreira, seus vizinhos de toda a vida. Na volta, tendo feito fortuna, D. Roderico faz do estúdio a sede de uma revista mensal dedicada a toda a forma de conhecimento passível de partilha popular.
    Maio é o mês do primeiro número de Plena: D. João Alves Teodoro da Graça assina o artigo de abertura – Traços de Psicopatia Juvenil; D. Tomás José Branquinho de Coura apresenta Folclore no e para o Estado Novo; D. Belarmino Joaquim de Casais Norte, Cerâmica Portuguesa do Século XIX; D. Roderico & D. Manoel Álvaro de Serpins Macia concebem o Editorial de saudação ao Leitor; e D.ª Maria de La Salette Moraes Curto, a rubrica de Efemérides relativas ao mês corrente.
    O número de Setembro foi o primeiro a sair com ilustrações: não fotografias mas desenhos – magníficos – de D. Bernardo Lima Marques de Vilhena. Eu fui convidado para a edição de Novembro. Participei com Bons Anos e Más Horas na África Portuguesa, ensaio que me valeu um cheque de duzentas coroas, generosidade de D. Roderico.
    A Plena era tirada a quinhentos exemplares, subscrevendo assinatura anual 148 leitores. O resto da edição estiolava nas livrarias e nos quiosques, sendo um bom mês aquele que vendesse cinquenta. Nenhuma destas cifras alguma vez abalou o bom D. Roderico: a revista viveu enquanto ele respirou. Tereis talvez alguma curiosidade relativa aos anos de vida da Plena – não V. sei dizer. Sei os meses.
    A publicação saía a cada 15. Ao dia 22 seguinte, vinho, queijo, presunto, fruta & reunião de colaboradores. Era lido de ponta a ponta o número saído, planeado o programa do próximo – e ala à obra. Sabíamo-nos lidos por o público costumeiro destas coisas efémeras: assistentes universitários com veleidades pró-catedráticas; esposas de dentistas torturadas pela apetência lírica; jovens ainda não alienados pela informática; e nós.
    Certo Dezembro, mês do suposto nascimento do Menino Belenense, o número nasceu gordo, alinhando: de D. Ciprides Blanco de Noronha Assis, Grandes e Pequenas Estruturas do Reino Floral; D.ª Alda Maria Coutinho Dunto, Economia Doméstica em Contexto de Guerra; Absolutismos do Inconsciente, por D. Adalberto Leandro Cuco de Torres; Monarquia Difusa e Autocracia Católica, de D. Valenciano Cosme de Trás e Santos; Uma Memória Sevilhana de Finisséculo, da pena de D. Ramón Vargas Sotelo y León; Aritmética, Leitura e Composição, opúsculo de D.ª Estela Mariana Feno do Ó; Quem Era Quem em Lisboa na Era dos Filipes, por D. Aurélio Graciano Portulez e Gaspar; A Destruição da Alta de Coimbra, memória de D. Alcides Maricato Borges de Grenat; Fronteiras Dinâmicas da Reconquista, de D. Telmo Garrett Aquilino de Pinhel; e, de D.ª Ilda Teles Barrigana de Thomar, Cartas Náuticas da Escola de Albuquerque.
    O meu nome de então era D. António José de Lima Catão, o que me valeu a alcunha pouca mimosa de “Tó-Zé Tacão”. Vivia, em regime de contas-à-moda-do-Porto, amigado com uma enfermeira dos HUC chamada D.ª Natércia Maria Cruz da Silva, vulto “Teté”. Ela era de Espinho, se não erro. Separámo-nos por a Teté se ter volvido muito mais azeda do que é de esperar em gajas amigadas. Não só: para o desquite, muito contribuiu o facto de eu não angariar proventos regulares. Ela sim, tinha ordenado certo, baixo mas certinho aos 23 de cada mês. D. Roderico passava-me de quando em vez algumas notas de vinte. Ainda fiz algumas madrugadas carregando fruta no mercado abastecedor (alguma da qual fruta terá ido parar ao estúdio/sede de D. Roderico/Plena). Fui ajudante-de-motorista num armazém de medicamentos. Andei na pintura da construção-civil. Dei explicações de Latim a meninas vesgas que nem para freiras arranjavam admissão. De quinhentas apalavradas, recebi cento & oitenta coroas pela tradução de La Chiesa Nera, de D. Pierluca Ettore di Salvio Bari. Trafiquei irrisoriamente: haxixe, absinto, lubrificantes-auto, farinha, edições-pirata do Livro de S. Cipriano. Esbracejei estacionamentos de carros na Praceta de D. Sebastião (antigo Pátio das Masmorras).
    Não segue num próximo número.



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Canzoada Assaltante