22/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 801

© DA.

801

Quinta-feira,
21 de Outubro de 2021

    Acabamos todos, parece, por implodir.
    Uma vida a expelir lava – e depois implode-se.
    Uma pessoa anda muito – e de repente fode-se.
    Um de-repente-de-vagar é o existir.
    Ligo o televisor, recebo os noticiários nacionais & estrangeiros. O mor de tal festa é repugnante. Espécie de voracidade necrófaga anima os papagaios jornaleiristas. Facadas, caçadeiradas, roubalheiras, clima estiolante, secas, cheias, inundações, picos dos preços da energia, massacres étnico-religiosos aqui-ali-além-acolá, lobby-gay, lobby-afro, lobby-chino, puta-que-os-pariu-a-todos.
    Já nem a indiferença faz grande diferença.
    Cuido francamente da minha ilusória horta.
    Não atendo à campainha que me rasga a porta.
    O que em mim se cala, fala afinal & pensa.
    Na Luz, o Benfica levou quatro-na-pá do omnívoro Bayern München. Tenho canja ao lume, o dia vai fosco (como eu gosto). O CR7 lá resolveu ontem mais uma para o Manchester United, grande craque. Mantém-se todavia certo tédio quanto a futebóis, já não vou muito à bola com a bola, outras são as disciplinas que me interessam. O acto mesmo de enunciação vai & vem pondo-me a salvo de alguma melancolia mais deletéria do que esta corrente que desde quase sempre me, ainda assim, move. Ao máximo que posso, moratamente me morigero. E ando & vou sendo menos, muito menos, deluso. Aufiro honorários não-pecuniários: e de cada tostão finjo milhão. Mas olhai:
    Longes raiados a sol moram à vista
    Miro-os do meu-aqui sem pressa
    Vai havendo vida, é só saber olhá-la
    É individual por enquanto a enunciação
    Negligência nenhuma me impede de aprender
    Cativo sou dessa sêde didáctica
    Um dos perigos é a vanidade pindérica
    Pode ser fatal não compreender a alienação
    Morigerar é fácil, difícil é dar o exemplo
    Perto do meu destino andam monturando lixeiras
    Imponho que comigo para tal não contem
    De resto, tudo bem, expludam os florões
    Rebentem de viço os canteiros amestrados
    Um olor a arvoredo fresco ’inda me acorra
    Viajo pouco por fora, isso é certo
    Mas por dentro o conto é outro
    Ao rosto em carícia a benigna chapada de vento
    Veios de ar fresco comovem-me muito
    Valham-me Santa Anabrigita de Belazul
    & o Fantasma-Pater da minha criação
    Já que a santorros de patas argilosas não venero.
    E tudo isto enquanto o Mundo não retira ao Brasil a soberania amazónica. Sei bem da inutilidade externa da arte dos versos, sei-o muito bem, sei-a muito bem de todo inútil, incapaz de pragmatismo. Mas:
    Contra a roubalheira das gasolineiras
    A pé leio o meu António Osório
    Em boníssima hora deixei de ter carro
    Ando bem a pé, pés me não faltem.
    Certo é também que muitas são as vezes em que escrevo no escuro, palpando um sentido com que me oriente no sentido da luz. Não é prosápia, assim de facto me assiste. Também não há-de ser hoje que eu d-exista, raio de ideia, porra-de-hipótese. Sou de uma pátria tão preciosa quão a V.ª. (É por vezes a mesma, sim, mas nem sempre – o voo mesmo faz variar a ave.)
    Invernia quero entre plátanos
    Marchando ainda, ainda em força
    Todos os vocábulos são bem-vindos a esta casa
    Só me não peçais moralidades que não gasto
    Ingresso no autocarro & sou feliz por Coimbra
    Esta é a última Cidade, já que primeira me foi
    Mais não voltarei a terras sem gente dentro
    Sem gente dentro como os maus livros.
    Desligo o televisor, a paz toma conta de meu tugúrio, está pronta a canja, perfuma já o ar da cozinha lavada. O moço Astor Piazzolla conhece hoje a sua professora Nadia Boulanger. Também hoje, morre na América o meu Irmão Rui. Rotina indefessa dos factos, todos eles, maiores ou pequeninos. Sentimento de persistência, andarilho (mesmo sentado) sentido. Como em cursoras cursivas corredoras vivas linhas – estas, por exemplo. A espaços, alguma frecha (ou frauta) de sol dando de través no zagal munido de sua avena. Paz deliciada de rosas açucaradas à vista do órfão. Plena & persistente despedida ambulatória – aí onde estive & a que não voltarei. Ao dispor, uma arte da espera. Atenção: pouco me socorro de tal arte-&-manha. Sinto preciso não abusar. Para trás (no lixo, não menos nem em sítio outro) as caras fétidas de quem imprestável se revelou. Nenhuma bondade? Nostalgia nenhuma então. Mas nem era disto que pensava falar-Vos. (Também não é certo o que pensava – se o pensava de facto.) Que seria? Talvez aquilo de implodirmos um dia (ou noite). Enquanto não, viver é isto. No meu caso, a demanda é de & por mais luz escrita. Clareza, pouca – não sei mais que isto. Claridade, quanta puder – embora me agradem sobremaneira, também, dias como o de hoje, de cartão prensado a cinza, raro oiro logrando penetrar a campânula nublante.
    Sim, sem rodriguinhos vozear a pessoalidade
    Versos como azulejos afrontando moradias
    Linhas que a pessoa traça por a Cidade
    Ao sabor das noites como ao travo dos dias.
    Ao roseiral das horas roubo quão perfume posso
    Não são de hoje esta demora nem este ofício
    Sangrando, pois ele é de sangrar até o osso
    Imune quanto se possa a vil & senil malefício.
    Sim, por aqui, é por aqui. Algo bom que a idade me vem trazendo: rapidez eficaz no despir aparências. Em nudez, só as essências – digo. Clarões imagéticos me relampejam em incansável recorrência, o que aliás me não canso de agradecer. Desde muito tenro que assisto ao auto-espectáculo do pensamento sensorial. Havendo aprendido a soletrar, centuplicou-se-me a maravilha, de por assim, dizer, poder estar a tão ingente janela de gente.


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Canzoada Assaltante