© DA.
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Terça-feira,
19 de Outubro de 2021
Escrevo logo ao despertar – e assim como me (re)encontro, digo, zonzo de sonhos ainda. Adormeci tarde & tarde acordei. Isto contraria-me a vocação de madrugador. Sonhei muito – muito & com estranha excelência imagética. Enredos de estrutura sólida (mentirosa, portanto) enredaram-me em cenas & sequências de intransigente cinema. Nem medo nem angústia, atenção: fiz-me mais espectador do que agente, mais passageiro do que maquinista. Uma rapariga da minha juventude participou da película: um poço de bondade, feiita, de uma dignidade sem fendas (para além, naturalmente, da natural). Disse-me frases graves, benévolas, parecendo saber tudo da minha vida passada. Não ajuizou, não julgou, não condenou – nem me inocentou. Comoveu-me tanta atenção – não estou habituado a outro julgamento que não o das páginas mesmas que redijo como mijando contra o vento. Além dessa moça indefessa, apreciei a movimentação de tropas rumo às raias pátrias. Helicópteros, como melgas descomunais, zurziam o ar em campânula da mente. Estudantes abandonavam as carteiras para aderir aos pelotões. A Torre da Universidade bramava de uma estranha voz eléctrica, alarmada como uma mãe-de-todos. A ti’ Rosário, velhíssima desde que nasceu, mijou-se toda, limpando-se com uma chapa de zinco muito mole. Também me comovi ante ela: há quase 55 anos que a não via. Sempre a julguei imune às minhas sonhadorias – mais as das noites do que as dos dias.
O resto do que terei ou não sonhado, esvaneceu-se já para sempre. Não mentirei literatura sobre esta solidão afinal comum a ponto de universal. Estou ante a ampla tarde, que um Sol português administra às largas demãos de oiro. Esmaltado a azul-sabão, o firmamento sem nuvens é de uma obstinação de febre. Sim, tudo é formoso & perece – à excepção do factor-humano. Revisito hoje o meu Irmão. De novo se estabelecerá entre nós aquela solenidade inefável chamada parentesco-directo: raiz do sangue, forma das mãos, salmoura do nome. Julgo sabermos ambos o que aí vem: fetal é fatal. Ainda assim, cabe-me ainda assobiar para os lados, frente & retaguarda. Tudo silva melopeias de ilusória distracção. Não difiro, a retalho individual, do grosso da humanidade, que por atacado padece da penúria de viver. Vou-me a ver o meu Irmão lá em um alto de serra cujas escamas de sol palhetado rebrilham à guisa de centelhas de lume marinho, vegetal ondulação de vagas imobilizadas na ingente maré do Tempo. Sim. Levo a viola no saco. Cantar-lhe-ei em semi-surdina as trovas que ele toda a vida cultivou, toda a vida até agora, agora que a doença o manieta atrás de uma porta cuja chave foi deitada fora, longe de mais para a mão humana – ou, no caso, hermana.
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