© DA.
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Domingo,
17 de Outubro de 2021
Resulta precária a assimilação de imagens rebeldes à mansidão. Obstino-me porém em amansá-las, domá-las à força de clarificação sintáctica (chamemos-lhe assim sem mais rebusco). Dois homens conversando num jardim no ano 1976. Partilham amendoins de um cartucho artesanal. Encontraram-se a pedido do mais velho dos dois, director que é de um ateneu literário na Alta da Cidade. O convidado (não muito mais novo) é pouco expansivo. Ainda assim, revela cortesia. A conversação versa os primeiros anos pós-juvenis do autor. Depois, o ponto presente da sua obra. Levantam-se, vão a uma cervejaria próxima, tomam assento, a cerveja favorece a fala. Fora, a luz esmorece em perfeita calma. Céu grisalho, automóveis ancorados, ronda do polícia sem sobressalto, derradeiras aves do entardenoitecer. Decidem jantar ali mesmo, um bife para cada um. A palestra do convidado está marcada para a noite do sábado imediato. Quarenta & cinco anos depois, esse sábado no Ateneu é um futuro-anterior. Assimilo tal imagem através de um discurso pouco propenso a barrocas complicações. Abro a janela alta, a noite dos comedores de bifes há muito foi presa da autofagia do Tempo. Não forjei o encontro daqueles homens vivos em 1976. O encontro & a palestra aconteceram. Precariamente (bem sei, bem sei) os retomo em prosa. Não me é possível fazer mais. Fora, o vento é de mediana pujança. Ontem, trovejou, águas sapadoras revolveram campos & vistas. Facto: ontem é já tão remoto quão aquele 1976 de que falámos a propósito de (in)certo par de cavalheiros. Pode ser que aurora nova refresque ainda algum relato pretensamente assimilador de imagens afinal improváveis. Como ali aos Restauradores (Lx.), a pensão antiga, o odor a vidas desavindas de & para consigo mesmas. Década de 90/XX, não menos nem mais. Um dos hóspedes vinha da Beira (não sei se Litoral, se Baixa, se Alta). Picava-o o desespero financeiro. Tivera um bom emprego. Perdera-o. Penso (sei) que por uma questão de cocaína: tráfico para autoconsumo. Inverno agressivo na Capital. Mau sítio para ser-se pobre. Exactos sessenta anos passaram da morte do Poeta (em) Pessoa. Ambulação manca por uma Lisboa sem retorno. O magno Tejo persiste em suicidar-se no mar. Estranha obstinação. O cavalheiro beirão decide não jantar. Vai, a pé sempre, até Santos. Alcântara. Ninguém saberá mais dele. E no entanto ele nasceu.
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