17/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 796

© Lewis Hine


796

Sábado,
16 de Outubro de 2021

    Não tenho, por estes dias mais recentes, sido hóspede da visitação de versos de qualquer índole: bons ou medíocres, formosos ou coxos. Os dias mesmos também não têm ajudado: cá pela parvónia-pátria, só se fala do Orçamento Geral do Estado; pelas estranjas, alienados de rapina matam pessoas: na Noruega, cinco foram vítimas fatais de um tarado com arco & flecha; na Inglaterra, um deputado morreu das facadas que lhe infligiu um cabrão qualquer. (Os países, tal como os homens, nunca estão livres do coice da besta.) Que mais? Quase nada. Na quarta-feira, 13, fui a uma consulta médica, no decurso da que fui avaliado. Parece que o meu estado global não padece de morte-à-vista. Quando muito, anda-se-me avariando um divertículo no ventre já abacial. Pratico uma medicação certinha de que não constam nem o arsénico nem o trigo-roxo. O meu Benfica está na Trofa a jogar para a terceira ronda a eliminar da Taça de Portugal. Nenhum fervor épico desassossega a minha comarca existencial, enfim. Enfim todavia, sempre V. posso aportar uma citação capaz. Caço-a a páginas 151 daquele livro de Rosamond Lehmann antes referido, The Ballad and the Source:

    “But poetry is not to be lived, except for the few to whom it is more important than self-preservation.”

    Em certo sentido, há muitos anos que iludo a auto-preservação com a mania de pertencer aos tais few. Não estou a engrolar-Vos nem a pataniscar-Vos com esta oblíqua confissão. É verdade que o mor de minhas décadas adultas (quatro) tem sido oferecido à visitação indicada nas primeiras linhas desta entrada. Nem por isso me vereis torcendo orelha que pingue sangue. O que dela fazemos, desfazemos & refazemos – é a vida nossa. Na tal consulta clínica de quarta-13, não me queixei à doutora de escassez lírica nem de sangria prosódica. Quanto a tal, calei-me. Indiquei, isso sim, dores no braço da mão que escreve. Desconfiamos, ela & eu, de uma tendinite ferrugenta. Do coração físico, disse-me ela que o estado valvular “corresponde, senhor Daniel, ao normal em pessoas da sua idade”. Ela a dizer-me isto, e eu a voltar-me para trás a verificar se era com o meu Pai que ela falava. Não era. Pertenço, pois, a certo escalão (não digo escol) etário cuja normalidade passa por válvulas desgastadas. Continuo porém a, entre válvulas & versos, preferir estes.
    Não caço, coço ou acosso grandezas de empréstimo. Basta-me assaz a miudeza própria. A senhora Lehmann, de viçosa & percuciente notação psicológica, tem-me melhorado a dieta ledora. Vou a dois-terços da narrativa, que por um euro adquiri em um antiquário a 19 de Março pretérito.
    O meu Glorioso precisou de prolongamento para desfeitear (1-2) o ardoroso Trofense. Nada de suficientemente grave para mérito de inscrição lapidar. Fui entrevendo o jogo – mas só isso, pois que já raramente vejo uma partida do princípio ao fim. O futebol já me não diz grande coisa. É um bocado como o tomate-de-estufa: o que mantém de côr, perde em sabor.
    Há pouco, ideias à solta, lembrei-me da leitura que fiz, há mais de trinta anos ambas, de dois calhamaços: um, Os Nus e os Mortos, de Norman Mailer; outro, Bosque Proibido, de Mircea Eliade. Conservo certos segmentos em vivo éter: de um como de outro. É um pouco como recordar pessoas – nuas ou mortas, por assim dizer:
    o vizinho de Hélène & Pierre Rosso no campismo do Esperança de Lagos; a viúva da taberna de beira-EN1; o homem das nozes ao pé de cedros; o convertido ao fundamentalismo evangélico do Gato Preto; a Noémia de Portimão; aquela rapariga a quem disse que o-paulo-coelho-é-trampa-e-a-isabel-allende-não-lhe-fica-a-dever-muito.
    Estas entre tantas outras, tantas mas nunca demasiadas pessoas. Pensa-se nelas, não se sabe se se é pensado por elas. O mais certo é que não. Carece-se de importância. Cada umbigo tende à autocracia. É a tal self-preservation de miss Lehmann. Nada de mal nem de anormal nisto. A Poesia é muito bonita para quem a confunda com um capricho, um hobby – ou, pior ainda, com uma sensibilidade generosamente defecadora de chavões. Sim, a Poesia é para viver, não para ganhar a vida. Ganhar a vida é tão meritório quão poetar – divergem apenas de conduta, não do estatuto de necessidade. Digo eu – mas admito contraditório.
    A noite manda a recolhimento a ave.
    Acorda os padeiros, que ao luar panificam.
    Todos passam, nenhuns são os que ficam
    – mas isso já toda a gente sabe.



2 comentários:

JVSerrano (bjserrano@clix.pt) disse...

Delirantemente interessante!!Tropecei nesta intro(extro)specção ao procurar por "contraditório" no Priberan. É capaz de me ficar como um dos tais poucos...

Daniel Abrunheiro disse...

JVSerrano, fico e sou muito (mesmo) grato pela leitura e pelo sinal. Bem-vindo.
DA

Canzoada Assaltante