31/05/2020

VinteVinte - entrada ainda não numerada mas já datada: Coimbra, 31 de Maio de 2020.


ANTES DIZER DESTAS QUE DAR EM DOIDINHO
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DEZANOVE QUARTAS + UMA ANTIPARÁSTASE (…)

Coimbra, domingo, 31 de Maio de 2020




I. DEZANOVE QUARTAS

Por enquanto não se me ardem livros,
nem olhos que m’os leiam encantados.
Relendo, dou-me dias renovados
da noite mais instante tão cativos.

Fora, tudo é cruento, invencível.
Adentro, o panorama é moldável:
em canteiro, refulge a rosa amável;
cimeiro, o cravo d’um escarlate incrível.

A vizinha de baixo, carro novo.
O velho do primeiro, só catarro.
Na marquise, eu, fumando o cigarro,
de fora os ares cá por dentro trovo.

Coisa rara, mas também acontece,
queimei hoje papéis mal manuscritos.
Já nada dessa origem me aparece,
ninguém me leva ao Senhor-dos-Aflitos.

A vida insuportável suportada
em semiatenção aos elementos:
ó antimnésia, ó velha danada,
madrasta de meus mais agros momentos.

Q’as amplas agras ágrafas não restem
entant’enquanto uma só janela houver.
Não se é contente porque se tal o quer:
de tolos, tolices se não contestem.

Não temo já a falta de empatia,
natural afinal do geral gentio.
Sofro tão-só de saudades do frio,
do estio de só três meses como devia.

Vem-se-me calcinand’ a misantropia,
q’envelhecer é ser cada vez menos.
(Não falte o leitinho aos pequenos
& aos asnos sejam dados melhores fenos.)

Por festa barafusta a amargura
à testa adusta do mais soliloquaz.
Se encontra só o que se não procura
– é de lei dar em doidinho? É bem capaz.

Desmaia hoje o Maio para sempre.
Já Junho bate à porta? Pois que entre.
Os meus Mortos são de Fevereiro a Maio.
Vou amanhã à Cidade – enfim saio.

Entra o fim do semestre de repente.
Contado, o Tempo é de causar vertigem.
Felizes os que não sabem nem fingem
saber qu’é do nascer que morre a gente.

Filosofia vã? Pois – são todas.
Os mais ateus são padres por negócio.
Inácio, estimo bem que tu te fodas:
é jibóia ao pescoço ou é bócio?

De torno à terra materbendita,
ao gasalho do torrão paternatal
– por dentro só me vive tal natural
ter vindo & sido d’ambos minha dita.

Dois frates, ambos meus, são já perdidos.
Vou demorando a fila, que eu tenho vez.
Fiz os meus 56 ’inda este mês:
& fiz doze em tempos fementidos.

A Lusa-Língua é doce mas idem agraz,
tud’é da ventoinha dada ao verso.
Por rima fazer rir? Também sou capaz
– mas hoje é Dia-Santo, ó perverso!

Rés-à-pré-noite, as aves derradeiras
de si despedem volantes instantes.
Pràs bandas da Cidreira, elefantes
trepam às árvores mais cumeeiras.

Mentira o que rimo? Pois vinde ver:
olhai, além, roçando já a Geria,
uma manada de pulgas a roer
o atrás-da-orelha à Ti’ Maria.

Ó murcha, ó frouxa sorridência Vossa!
Pois Vos não causa riso o morticínio
de, nados, nada sermos, para nossa
holocáustica vez no extermínio?

Pois causá-lo – Vo-lo digo – deveria…
Já se me ardem olhos mailos livros:
é do tal atrás-da-orelha, ó Ti’ Maria.
– ’manhã, vou à Cidade ver os Vivos.           

                                                                     

II. UMA ANTIPARÁSTASE
(QUASE FURIOSA MAS SÓ QUASE)

Quem me dera ter feito o que me imputam
certas aves-não-raras-de-arribação,
dessas que tão mais me filhodaputam
quão menos lhes dou corda & atenção.

Tenho em casa um santo: o meu Gato.
Eu soltá-lo-ia a gosto a tais pardais
Mas quê? Merece o meu santinho bem mais
assisada fortuna a meu recato.

Os gestos que errei? Restam errados.
Volta não há a dar-lhes, deixá-los ir.
Nossa só é a puta que nos parir
ao recato de matos calcinados.

Os restos que papei? Restam papados.
Razão & lei não ’stão todas comigo.
Mas eu sempre te digo, ó meu amigo,
que tens em casa espelhos quebrados.

Venha daí perdão nenhum, agoiro!
Vida, dois dias; Carnaval, três – mas quatro
pares de cornos a quem, em mau teatro,
só flecte o joelhinho ao tosão-d’oiro!

E ao bezerro-doiro tossegoso
q’excreta tortumelos moralóides!
E ao que tem purulentos adenóides!
E aos que votaram no durão-barroso!

Mas agora a sério: tende Vós calma,
tudo isto são só inócuos versíc’los.
Mas s’acaso o caso V. rói d’alma,
calma, passai-m’a alma p’los testíc’los.

A sós pranteio só quem me o merece;
d’outros rio calado & ’scarninho.
Rosnam ser por causa do meu mau vinho,
ao que respondo: – Creche, desaparece!

Vida, não há ’ma só sem desenganos.
É boa a Morte, passando a limpo
toda a nódoa caída em tais panos
& ’sfregando a fuça a tal Olimpo

de semideuses afinal só semi.
Dai-me pois atenção, ouvide-m’ aqui:
ide acusar, primeiro, Vosso espelho
– e só depois dobrai corno & joelho.

Entristurar-se um homem, vale a pena?
Se sim, que o seja só por maus motivos,
dos quais alinham uns quantos tristes vivos
– tristes & trastes frustes de pequena

mioleira & fraquita memória.
Desses tais não há-de rezar a História.
Nascem, digerem, sofrem gravidezes
– e até quando morrem são soezes.

Deus os guarde, mas os resguarde bem longe
da casa de meu Gato principesco.
Rancor, se algum tendes, é simiesco
– ide ser falsa freira ou falso monge

p’ra outra capelinha – não prà minha.
(Q’reis saber mote de mi’a glória?
É que, de segunda a sexta, p’la noitinha,
dão Columbo na RTP Memória.)

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Canzoada Assaltante