22/05/2020

VinteVinte - 34 (integral)




34.

APORIA, MARIA & C.ª

Coimbra, terça-feira, 21 de Abril de 2020



I

Há quem conte mais mortos do que eu.
Há quem os conte até entre alguns ainda vivos.
Tem & aplica cada um sua matemática.
É-se monográfico de sua mesma monotonia.
A minha resulta facunda, espero que não imunda.
É Via – mas não Crucis nem Sacra.
Passa, por aporia, por alegado trauma informático.
Aporia – e às vezes agonia: mas menos, mas menos.
A teoria do corpo é aguentar-me nos anos ’inda.
Desconheço se tal teoria é linda.

II

Fala-se ora mais que de costume acerca de Maio.
É o meu mês – embora o digam de Maria.
Abril segue viral-carnavalesco, histriónico, mortífero.
Os funerais são mínimos acompanhamentos.
Incinera-se, crema-se, acendra-se cinereamente.
Nenhum deus, cinocefálico sequer, cuida destes egiptos.
Muitos pacientes impacientes, inúmeros, aflitos.
Mas – e Maio? O Maio antigamente português, digo.
Lembro-me de corrê-lo, sê-lo aéreo terrenamente
– mas eu seria então outra gente.

III

Na minha agnóstica casa-infante, as divindades
eram a Papeira, a Rubéola, o Sarampo: minha Mãe,
criança ainda então, chegou a venerar o Tifo.
Não havia como ela, digo, a Santa Varicela.
Hoje, são informáticas & asiáticas as estirpes virais.
O próprio vento é mais lamento nos canaviais.
Busco outras adorações: Cesário, Pessanha, Osório
&, claro, o r-existente Camões.
Vale-me que não vacilo nem bacilo, sequer tremo:
envelheço como deve ser, só à alheia morte temo.



IV

Os homens.
Todos os outros homens.
Erguem catedrais com a mesma convicção
(com a mesma facilidade)
com que destroem famílias.

As mulheres.
Todas elas, uma só.
Ferradas aos teares como penhascos à orla do mar.
Urdem por-si-consigo-em-si como dizem que Cristo urdia.
Mas não sei se com a tal convicção, a tal facilidade, cada Maria.

É precário falar de fé quando é
de humanidade que se fala
e o cabrão do teurgo não se cala.

V

Mediana multidão em cais de ferrovia.
Era já plena a força alta do meio-dia.
Mais as caras do que os rostos.
Mais os focinhos do que as caras.
Um homem de braço ligado ao peito.
Um vestido verde-musgo com mulher dentro.
No átrio, floresce o quiosque-tabacaria.
Nem tempo havia para melancolia.
À saída, pela dextra, a praça-táxi.
À sinistra, o Café Metrópole, com mulheres-de-aluguer.
Ninguém pensa, sequer espera, novidade.
(Nem sempre faz doer, a Cidade.)
Era meio-dia, fez-se meia-noite, outro ano depressa,
que se faz tarde.

VI

Paris, 1940-44. Duradouro Inverno-Bissexto. Penso por vezes nessa vastíssima Noite-Una. Como era o sono de quem povoava um sótão. A que sabia a batata-cozida. O cigarro sem-filtro. As fardas verdes. A impugnação. Os sagrados-corações, os mármores, as pombas, as bicicletas, mulheres como cá as do Café Metrópole, o sol que se não punha & a amante que se não vinha. Ville-Lumière-não-já-a-dos-Irmãos-Lumière-mas-a-dos-Parrains-de-L’Ombre. O sapo-Sartre, nem calcanhar sequer do invencível-Camus. Paris, 2020? Nunca ouvi falar. Nem dizer nada de jeito.


VII

Vielas do bairro dito Whitechapel, London, 1888. As prostitutas esfrangalhadas não podem saber que, em Lisboa, saem à luz Os Maias & a pessoa de Fernando Pessoa. E no entanto os impérios vão de sol a sol como no campo os camponeses & no mar os marinheiros.  

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Canzoada Assaltante