12/05/2020

VinteVinte - 28 (integral)






28.

PALHA

Coimbra, quarta-feira, 15 de Abril de 2020



I

Fragas em que o Tempo se materializa escura, soturnamente. Já as hei visto, mesmo fora do âmbito onírico. Casario cor-do-giz-da-Escola-Primária. Raro arvoredo – o que sempre entristece. Recolhimento. Claustro íntimo. Profissão perene, que não de-fé.

Gente movendo-se preteritamente, contemporânea tão-só destas linhas mesmas dela revi(n)ventoras. Mulher com cabra por corda, escuras ambas. Galinha solta sobre calçada gramática, perdão, granítica. Figueira em pátio térreo. Poço mal-fechado. Rosa-dos-ventos. Farol cego – banal fanal.

Um homem atravessa a doença que lhe interdita fés devindas impraticáveis. Age no âmbito dos objectos disponíveis. Na garagem, nenhuma viatura – mas profusão de ferramentário, caixões engelhados, maços de jornais das primícias republicanas, lonas, a vela rasgada de um barco queimado a prestações há muito no lar da casa.

Linhas viárias como veias-d’água surgindo ao estanho do amanhecer. Fidelidade do Tempo a seus brinquedos – dentre os que a humana gente não parece tão valiosa. Vão despertando as aves. Estas linhas são possíveis à nova luz. Cidadania & deserto – tudo geminação.

Rilke, aqueles anos em casa-longe. Régio entre Portalegre & Vila do Conde. Crucifixos & pergaminhos. Salazar & Franco. Ranchos do folclore cinzento, almaço, legionário. Musil, as cartas. Aquilino, a obstinação. Fialho, a frustração ácida. Nemésio, sal-da-terra-&-lírio-do-campo. Poucos anos fisiológicos, grãos de areia afinal contáveis: essas vidas que nem páginas deixaram. Cesário & Kafka rogaram a amigos a queima póstuma de seus papéis – nossa fortuna, Silva Pinto & Max Brod desobedeceram-lhes. E Rainer Maria. E Lou.

Há países por dentro. Populações disponíveis os residem. Configuram outras dimensões – enquanto o corpo não d-existe de si mesmo. Menos autocarros durante a crise pandémica? Mais livros abertos no quarto próprio. Volumes anuários contam – e até cantam – idades & cidades & narizes & países. A matéria faz como quer. O pensamento r-existe-lhe, mesmo em efemeridade. Os mortos, pacificados, são capazes, bem capazes, de estar rindo-se da agonia dos viventes. A entrada não foi pedida. Mas dela há saída.

(Enquanto vivente, lente. E, podendo, escrevivente.)

II

A menina Georgina & a senhora Rebeca,
a senhora Estrela & o rapazinho Fernando.
No baile da eira, tocando a rabeca,
encanta Marina o ávido Armando.

Onde ’inda neva, dá-se ’inda em partilha
algo como a palavra, a mais justa na hora.
Feliz é aquele que, indo-se embora,
se julga chegando à ínsua ou ilha.

Daniel, este não é o país errado, um não há certo.
Júlio, a palavra-dada continua honrosa.
Jorge, ainda à esquina sangra a tal Rosa.
Georgina, o deserto é o Outro – e é-o decerto.

III

As circunstâncias dão-me alguma palha com que cevar a burrice própria. Orquestra no televisor, momento de destaque para o primeiro-oboé, depois o vento das madeiras-cordas, parece coisa do senhor Sibelius, sim. Entardenoitece, não há-de tardar o candeeiro-de-cabeceira. Não por enquanto, há ainda plano de dia dando pela janela o campo antigo, a lonjura familiar das primícias de meu Pai. Há muito não revisito essas póvoas, não, tenho desandado (agora, um quarteto-Haydn) diversas (p)aragens.
Com Luís M. & Álvaro S., não reconversarei. Com Rui A. & Lino D. também não. Tornaram-se definitivamente nomes de devoluta carcaça. Livraram-se disto, alfim. Schubert morreu novo. Picasso morreu velho. Palha todos.

IV

Amanhã é quinta-feira. Começa a segunda metade do mês-em-curso. Vivendo, alguma coisa aprenderei. Esquecer, nem trabalho dá. (Mas tira.)
Camilo embarcado, Macau, mísero rumo.
José encerrado em tugúrio emprestado, terminal.
Manuel & Jaime, ambos mortos em aeroportos.
Transumante rebanho humano, condenado-nado.
Quinta-quê? Amanhã-qual?

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Canzoada Assaltante