28.
PALHA
Coimbra, quarta-feira,
15 de Abril de 2020
I
Fragas em que o Tempo se
materializa escura, soturnamente. Já as hei visto, mesmo fora do âmbito
onírico. Casario cor-do-giz-da-Escola-Primária. Raro arvoredo – o que sempre
entristece. Recolhimento. Claustro íntimo. Profissão perene, que não de-fé.
Gente movendo-se preteritamente,
contemporânea tão-só destas linhas mesmas dela revi(n)ventoras. Mulher com
cabra por corda, escuras ambas. Galinha solta sobre calçada gramática, perdão,
granítica. Figueira em pátio térreo. Poço mal-fechado. Rosa-dos-ventos. Farol
cego – banal fanal.
Um homem atravessa a doença que
lhe interdita fés devindas impraticáveis. Age no âmbito dos objectos
disponíveis. Na garagem, nenhuma viatura – mas profusão de ferramentário,
caixões engelhados, maços de jornais das primícias republicanas, lonas, a vela
rasgada de um barco queimado a prestações há muito no lar da casa.
Linhas viárias como veias-d’água
surgindo ao estanho do amanhecer. Fidelidade do Tempo a seus brinquedos –
dentre os que a humana gente não parece tão valiosa. Vão despertando as aves.
Estas linhas são possíveis à nova luz. Cidadania & deserto – tudo
geminação.
Rilke, aqueles anos em casa-longe.
Régio entre Portalegre & Vila do Conde. Crucifixos & pergaminhos.
Salazar & Franco. Ranchos do folclore cinzento, almaço, legionário. Musil,
as cartas. Aquilino, a obstinação. Fialho, a frustração ácida. Nemésio,
sal-da-terra-&-lírio-do-campo. Poucos anos fisiológicos, grãos de areia
afinal contáveis: essas vidas que nem páginas deixaram. Cesário & Kafka
rogaram a amigos a queima póstuma de seus papéis – nossa fortuna, Silva Pinto
& Max Brod desobedeceram-lhes. E Rainer Maria. E Lou.
Há países por dentro. Populações
disponíveis os residem. Configuram outras dimensões – enquanto o corpo não
d-existe de si mesmo. Menos autocarros durante a crise pandémica? Mais livros
abertos no quarto próprio. Volumes anuários contam – e até cantam – idades
& cidades & narizes & países. A matéria faz como quer. O pensamento
r-existe-lhe, mesmo em efemeridade. Os mortos, pacificados, são capazes, bem
capazes, de estar rindo-se da agonia dos viventes. A entrada não foi pedida.
Mas dela há saída.
(Enquanto vivente, lente. E,
podendo, escrevivente.)
II
A menina Georgina & a senhora
Rebeca,
a senhora Estrela & o
rapazinho Fernando.
No baile da eira, tocando a
rabeca,
encanta Marina o ávido Armando.
Onde ’inda neva, dá-se ’inda em
partilha
algo como a palavra, a mais justa
na hora.
Feliz é aquele que, indo-se
embora,
se julga chegando à ínsua ou ilha.
Daniel, este não é o país errado,
um não há certo.
Júlio, a palavra-dada continua
honrosa.
Jorge, ainda à esquina sangra a
tal Rosa.
Georgina, o deserto é o Outro – e
é-o decerto.
III
As circunstâncias dão-me alguma
palha com que cevar a burrice própria. Orquestra no televisor, momento de destaque
para o primeiro-oboé, depois o vento das madeiras-cordas, parece coisa do
senhor Sibelius, sim. Entardenoitece, não há-de tardar o
candeeiro-de-cabeceira. Não por enquanto, há ainda plano de dia dando pela
janela o campo antigo, a lonjura familiar das primícias de meu Pai. Há muito
não revisito essas póvoas, não, tenho desandado (agora, um quarteto-Haydn)
diversas (p)aragens.
Com Luís M. & Álvaro S., não
reconversarei. Com Rui A. & Lino D. também não. Tornaram-se definitivamente
nomes de devoluta carcaça. Livraram-se disto, alfim. Schubert morreu novo.
Picasso morreu velho. Palha todos.
IV
Amanhã é quinta-feira. Começa a
segunda metade do mês-em-curso. Vivendo, alguma coisa aprenderei. Esquecer, nem
trabalho dá. (Mas tira.)
Camilo embarcado, Macau, mísero
rumo.
José encerrado em tugúrio
emprestado, terminal.
Manuel & Jaime, ambos mortos
em aeroportos.
Transumante rebanho humano,
condenado-nado.
Quinta-quê? Amanhã-qual?
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