©
Angelique Rault
29.
CINCO (V) ELEMENTOS
EM RELEVO PERENE
Coimbra, quinta-feira,
16 de Abril de 2020
I
Proximidade - & frequência –
da praia;
Idade adequada ao litoral, em
solidão escolhida;
Partilha paulatina, cifrada se
tiver de ser;
Silêncios vastos - & estéreis
– como pradarias;
Versos guardados como lembrados
certos dias.
Nunca mais dar de bandeja – nem
servir.
Esperar da morte o mesmo que da
vida.
Menos ser muita vez o mais
possível.
Arquitectura verbal – essa sim,
firme:
mas de ninguém esperar que a
confirme.
Outros viajaram outros mundos –
não este.
Este é para ser casa de si mesmo.
Algumas provisões, papéis
correctos, constância.
Amar sem ceder à doença do amor
doente.
Só do ente. (Cf. aquela citação
do Fialho, no 21 deste caderno.)
Voltar a Sófocles como a quem nos
espera & conhece.
Recusar a mediocridade militante,
qualquer ela.
Saber secreto cada jardim obsoleto
embora.
Carlos de Oliveira: que bem leu
ele Malcolm Lowry.
A bondade auto-infligida de saber
isso.
Ter & manter despojos de meses
felizes.
Dar-lhes pão como tantas vezes a
pombas.
Recordar o riso da materAvó, hoje
fumo, sombra de areia.
(Da outra Avó, menos ainda, embora
idem linda.)
Ou então nem mais nada, até por
tudo.
II
Hoje –
Quinta-Feira-16-de-Abril-do-VinteVinte –
Saí coisa de hora & meia à
rua, a provisões.
Pouco me lembrava do externo
mundo, cujo acinte
Nos garante ele morrermos um dia
sem ilusões.
Hora & meia de outros-à-vista:
resignadas condições.
Fui a quatro lojas à força
higienizadas.
Gentinha de máscara posta em raro
cómico carnaval.
No geral, saudações distantes,
automatizadas.
Tal a suposta alma, é invisível o
monstrinho viral.
Preferi noventa-por-cento produtos
de Portugal.
Tenho em cursivo curso vasta obra
literatóide.
Já só m’apetece pantufá-la em
casa.
Há mais de um mês qu’eu nada de
grão-na-asa.
Resguardo-me no quarto, singelo
antropóide.
Se quero um postal p’ò Dia-da-Mãe?
Dói, de
Dizer que não, dói – por Mãe não
haver já.
Bacalhau, havia – e do crescido a
preço promovido.
Deserto geral, rarefeito maná é só
quanto há.
Um que outro casal já envelhecido.
Mais? Ninguém sabe, mas há-de ser
sabido.
Ritornello-me a casa de saca
aviada.
Ouço algum canto, parte é da Elsa
Saque.
Faço café novo, amanteigo a
torrada.
O meu velho Nemésio espera o meu
ataque.
É autor p’ra ler de cartola, de
bengala & de fraque.
III
Maneira maravilhosa de não morrer
hoje:
Fitar da janela como chove no
campo.
Entardenoitece, é certo, mas ’inda
não foge
A vida do corpo ao corpo
entretanto.
(Na TV, Elsa Saque explica a Arte
do Canto.)
Imagens do extinto ano Um-Nove-Oito-Dois.
A TV era a cores havia apenas dois
anos.
Eu tinha dezoito, poucos
desenganos.
Avelhei-me entretanto, conto já
quase os Cinco-Seis.
Não se volta a novo, como tão bem
(n)o sabeis.
Fala-se já muito da crise que aí
vem.
Desemprego em barda,
pobrinhos-de-pedir.
Eu ando p’la RTP Memória,
onde surge também
O actor Rogério Paulo – que
actuava tão bem.
E Luiza Neto Jorge, de tão bom
redigir.
As autoridades contaram, ’té hoje,
629 óbitos
Ao vírus-da-china devidos &
devindos.
Morreu de estar vivo é o pior dos
hábitos,
Como nascer de noite para dias tão
findos.
O que vale é irmos fazendo filhos
lindos.
Luiza foi mãe de Dinis, menino
nado (talvez)
No ano que foi Um-Nove-Sete-Três.
Custa hoje sabê-la (entardenoitece
mas já não chove)
Morta no Um-Ano-Oito-Nove,
Quási recém-nascida
(Um-Nove-Três-Nove).
(“e surge a morte à caça
como num saco a traça”)
L.N.J.
IV
A voz de uma mulher vibra no ar
quieto
Do meu quarto-casa, é um fantasma
macio,
Conta de si algumas distâncias a
que procedeu:
Digamo-lo assim: a que deu corda
de si,
Diz alguns nomes a que pertenceu –
excepto o seu.
Já nem timidez, nem volúpia, nem
ostentação,
Já nem acidez, nem prosápia, nem
manel-joão,
Já nem lucidez, nem corno-cópia,
nem aflição,
Já sem avidez, sem sépia, sem
condição
– à vez, Alípia, muit’atenção!
Ai Guilherme, és um verme!
Ai Apollinaire, ficas sem mulher!
Ai Pôl-Verlain’éluard, de
cu-para-o-ar!
Ai Ferré-ao-Léu, que fazes tu todo
nu no Céu?
Ai Guillaume, que te fanei o nome!
Emudeço sem rancor, ando a fluoxetina.
Não me fez mal ter ido à rua – nem
voltar.
Quantia & maquia consertam a
concertina.
Tanto faz quanto fez, o verso é
português.
Tenho um gato a quem, penso,
pertenço.
Emudece a senhora que pouco me
apalavrava,
Não cheguei a tempo de vê-la no Largo
de Camões,
Atrasei-me cerca de seis anos, se
não erro muito,
Já não tem – nem teve jamais –
importância.
Adeus, Luiza. (E tu tens uma neta,
Jorge.)
V
Anoiteceu em aparato de boa
qualidade
A primeira noite da última metade
Do corrente Abril-do-VinteVinte.
Adeus, ó Dezasseis! Hei por
requinte
Estar vivo a Dezassete, que não
jura nem promete.
Voltei afinal a sair: fui ao lixo.
Vi ninguém, sequer um bicho.
Calado fui, mudo voltei.
Pensei em coisas que só eu cá sei.
(Outras entretanto escreverei.)
Sítios alheios de escoada história
Revêm por vezes à minha memória.
Lisboa, certa fria manhã.
Outra, mais fria, mas ali na
Lousã.
Sim, recordo algum dia com
geografia.
Os anos dão-me mesmidão de velho
gajo.
Sei mais o que calo, menos do que falo.
Fazer, ’inda faço; agir, ’inda
ajo.
Não dou a outra face mas também
não dou estalo.
Chego lá com vagar para depressa
chegar.
Trago o nome de meu Pai soluto na
pele
Abrunheiro-apelido,
próprio-Daniel.
Letras, muitas letras; linhas,
muitas linhas.
Rimas solitárias p’ra pessoas
sozinhas.
E já agora, infrene, alinhar
elementos em relevo perene.
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