13/05/2020

VinteVinte - 29


© Angelique Rault





29.

CINCO (V) ELEMENTOS EM RELEVO PERENE

Coimbra, quinta-feira, 16 de Abril de 2020



I

Proximidade - & frequência – da praia;
Idade adequada ao litoral, em solidão escolhida;
Partilha paulatina, cifrada se tiver de ser;
Silêncios vastos - & estéreis – como pradarias;
Versos guardados como lembrados certos dias.

Nunca mais dar de bandeja – nem servir.
Esperar da morte o mesmo que da vida.
Menos ser muita vez o mais possível.
Arquitectura verbal – essa sim, firme:
mas de ninguém esperar que a confirme.

Outros viajaram outros mundos – não este.
Este é para ser casa de si mesmo.
Algumas provisões, papéis correctos, constância.
Amar sem ceder à doença do amor doente.
Só do ente. (Cf. aquela citação do Fialho, no 21 deste caderno.)

Voltar a Sófocles como a quem nos espera & conhece.
Recusar a mediocridade militante, qualquer ela.
Saber secreto cada jardim obsoleto embora.
Carlos de Oliveira: que bem leu ele Malcolm Lowry.
A bondade auto-infligida de saber isso.

Ter & manter despojos de meses felizes.
Dar-lhes pão como tantas vezes a pombas.
Recordar o riso da materAvó, hoje fumo, sombra de areia.
(Da outra Avó, menos ainda, embora idem linda.)
Ou então nem mais nada, até por tudo.

II

Hoje – Quinta-Feira-16-de-Abril-do-VinteVinte –
Saí coisa de hora & meia à rua, a provisões.
Pouco me lembrava do externo mundo, cujo acinte
Nos garante ele morrermos um dia sem ilusões.
Hora & meia de outros-à-vista: resignadas condições.

Fui a quatro lojas à força higienizadas.
Gentinha de máscara posta em raro cómico carnaval.
No geral, saudações distantes, automatizadas.
Tal a suposta alma, é invisível o monstrinho viral.
Preferi noventa-por-cento produtos de Portugal.

Tenho em cursivo curso vasta obra literatóide.
Já só m’apetece pantufá-la em casa.
Há mais de um mês qu’eu nada de grão-na-asa.
Resguardo-me no quarto, singelo antropóide.
Se quero um postal p’ò Dia-da-Mãe? Dói, de

Dizer que não, dói – por Mãe não haver já.
Bacalhau, havia – e do crescido a preço promovido.
Deserto geral, rarefeito maná é só quanto há.
Um que outro casal já envelhecido.
Mais? Ninguém sabe, mas há-de ser sabido.

Ritornello-me a casa de saca aviada.
Ouço algum canto, parte é da Elsa Saque.
Faço café novo, amanteigo a torrada.
O meu velho Nemésio espera o meu ataque.
É autor p’ra ler de cartola, de bengala & de fraque.

III

Maneira maravilhosa de não morrer hoje:
Fitar da janela como chove no campo.
Entardenoitece, é certo, mas ’inda não foge
A vida do corpo ao corpo entretanto.
(Na TV, Elsa Saque explica a Arte do Canto.)

Imagens do extinto ano Um-Nove-Oito-Dois.
A TV era a cores havia apenas dois anos.
Eu tinha dezoito, poucos desenganos.
Avelhei-me entretanto, conto já quase os Cinco-Seis.
Não se volta a novo, como tão bem (n)o sabeis.

Fala-se já muito da crise que aí vem.
Desemprego em barda, pobrinhos-de-pedir.
Eu ando p’la RTP Memória, onde surge também
O actor Rogério Paulo – que actuava tão bem.
E Luiza Neto Jorge, de tão bom redigir.

As autoridades contaram, ’té hoje, 629 óbitos
Ao vírus-da-china devidos & devindos.
Morreu de estar vivo é o pior dos hábitos,
Como nascer de noite para dias tão findos.
O que vale é irmos fazendo filhos lindos.

Luiza foi mãe de Dinis, menino nado (talvez)
No ano que foi Um-Nove-Sete-Três.
Custa hoje sabê-la (entardenoitece mas já não chove)
Morta no Um-Ano-Oito-Nove,
Quási recém-nascida (Um-Nove-Três-Nove).

(“e surge a morte à caça
como num saco a traça”)
L.N.J.

IV

A voz de uma mulher vibra no ar quieto
Do meu quarto-casa, é um fantasma macio,
Conta de si algumas distâncias a que procedeu:
Digamo-lo assim: a que deu corda de si,
Diz alguns nomes a que pertenceu – excepto o seu.

Já nem timidez, nem volúpia, nem ostentação,
Já nem acidez, nem prosápia, nem manel-joão,
Já nem lucidez, nem corno-cópia, nem aflição,
Já sem avidez, sem sépia, sem condição
– à vez, Alípia, muit’atenção!

Ai Guilherme, és um verme!
Ai Apollinaire, ficas sem mulher!
Ai Pôl-Verlain’éluard, de cu-para-o-ar!
Ai Ferré-ao-Léu, que fazes tu todo nu no Céu?
Ai Guillaume, que te fanei o nome!

Emudeço sem rancor, ando a fluoxetina.
Não me fez mal ter ido à rua – nem voltar.
Quantia & maquia consertam a concertina.
Tanto faz quanto fez, o verso é português.
Tenho um gato a quem, penso, pertenço.

Emudece a senhora que pouco me apalavrava,
Não cheguei a tempo de vê-la no Largo de Camões,
Atrasei-me cerca de seis anos, se não erro muito,
Já não tem – nem teve jamais – importância.
Adeus, Luiza. (E tu tens uma neta, Jorge.)

V

Anoiteceu em aparato de boa qualidade
A primeira noite da última metade
Do corrente Abril-do-VinteVinte.
Adeus, ó Dezasseis! Hei por requinte
Estar vivo a Dezassete, que não jura nem promete.

Voltei afinal a sair: fui ao lixo.
Vi ninguém, sequer um bicho.
Calado fui, mudo voltei.
Pensei em coisas que só eu cá sei.
(Outras entretanto escreverei.)

Sítios alheios de escoada história
Revêm por vezes à minha memória.
Lisboa, certa fria manhã.
Outra, mais fria, mas ali na Lousã.
Sim, recordo algum dia com geografia.

Os anos dão-me mesmidão de velho gajo.
Sei mais o que calo, menos do que falo.
Fazer, ’inda faço; agir, ’inda ajo.
Não dou a outra face mas também não dou estalo.
Chego lá com vagar para depressa chegar.

Trago o nome de meu Pai soluto na pele
Abrunheiro-apelido, próprio-Daniel.
Letras, muitas letras; linhas, muitas linhas.
Rimas solitárias p’ra pessoas sozinhas.
E já agora, infrene, alinhar elementos em relevo perene.

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Canzoada Assaltante