31.
TALINGAS DE OCIOSO
Coimbra, domingo, 19
de Abril de 2020
Numa das primeiras manhãs livres
(ou: numa das primeiras manhãs felizes; ou: numa das primeiras manhãs menos
amargas) do Verão de há três anos, descobri no topo do contentor do lixo,
àquela hora ainda repleto, uma quantidade de livros abandonados. Trouxe alguns
para casa. Um deles era a 4.ª edição do Dicionário de Português da Porto
Editora – muito anterior, portanto, ao aborto ortográfico em vigor. Tenho-o
consultado como os idiotas que procuram zodíacos astrológicos. É delícia
garantida, esta minha própria idiotia. Perco-me achando pérolas que a porcos não
atiro. Cinéreo – o m.q. cinzento. Mais: Diserto – facundo; eloquente;
crisóstomo; crisólogo. E notas do género desta: Agnado (m.q. agnato) –
parente por varonia; membro de família – mas não confundir com Ágnato, que é
ciclóstomo. Outra maravilha: Sostra – mulher suja e preguiçosa.
Outra: Pânria – ociosidade; mandriice; pessoa com estes defeitos.
Maravilha: Pronígrado – locomoção sobre quatro membros e com o corpo na
horizontal; esse animal. Para ajudar a perceber o título deste dia: Talinga
– amarra; cabo náutico.
(Nota marginal:
Possibilidade de 2.ª edição – mas desta vez em edição electrónica, ou ebook,
pela editora Imagens & Letras– de Terminação do Anjo, que em Junho
de 2008 saiu em papel pela Portugália Editora de defunta lembrança.)
(Outras notas de talude, por
assim dizer: Uma, recebi ontem dois telefonemas. Ambos de Amigos que
queriam saber da minha saúde por estes tempos pandémicos. Eu quis logo saber da
deles. Estamos os três muito bem, ao que parece – não entramos, para já, na
estatística da moda-viral. Gostei muito dos telefonemas. Foram o melhor do
Sábado. Outra, o meu computador avariou-se, parece-me que de vez. Já penso nele
postumamente, por assim dizer.)
A primeira leitura integral do
volume (“de um punhado de crónicas – notas de viagem, artigos, pequenos
ensaios”) Jornal do Observador, do grande açoreano (sepultado em
Santo António dos Olivais, Coimbra) Vitorino Nemésio, essa primeira integral
dei-a por concluída na tarde de 29 de Abril de 1999 (uma quinta-feira), na mui
antiga & mui minha Vila do Louriçal. Tinha eu então partido o dedo médio da
mão-dextra no decurso de uma brincadeira de futebol-de-salão: ainda eu então
corria qualquer coisita, portanto. Essa leitura, muito boa, aconteceu pela
antemão de um péssimo Verão, muito provavelmente o pior da minha vida. Não
importa: vou ora mais ou menos a meio da segunda leitura toda. Deliciado ando,
como esperava. Grande, grande prosador, poeta, literato, professor, figura
humana. Vinte & um ano depois, o Observador continua em grande
forma. Disertas 439 páginas (Editorial Verbo, 1974).
Um pouco de Herculano por o
declínio já firme do dia. Algumas gravuras: Paris, Angra do Heroísmo, Porto.
Entre 1833 & 1836, deve ter sido mais ou menos feliz o grave homem,
acolhido à Biblioteca Pública da Invicta como segundo-bibliotecário, depois de
ter sido exemplar soldado-raso (n.º antigo, 99; moderno, 33) na Terceira
Companhia do Regimento de Voluntários da Rainha. Sim, deve. A Harpa do
Crente há-de vir a lume em 1838 com notório sucesso. Nada (me) importa que
hoje seja poesia tida por enfadonha. São versos de pano-cru, digo-o eu. Poucas
flores retóricas. Lembro-me de lê-los no Caramulo, já entretanto ardeu mais
pico de década.
Rilke & Joel Serrão residem
também a esta cabeceira de recluso acalmado por certa alienação chamada,
talvez, nasça-quem-nascer-tudo-se-cria – como recorrentemente dizia um
rapaz muito meu Amigo dali da 10 de Agosto na Figueira da Foz. Talingas de
ocioso, não menos nem mais, por estes desertos dominicais.
Não posso precisar se quando, há
coisa de uma dúzia de anos, passei por Castelo Branco, alguns dos meus passos
perfizeram a Rua das Damas daquela cidade. Aconteceu algum crime esta manhã
mesma nessa artéria albicastrense. Alguém quis violar alguém, ao que parece,
mas acabou por acabar morto devido à intervenção de outro alguém que acudira em
defesa do segundo-alguém desta cena.
A sordidez – exclusivo humano ao
nível pan-planetário – não é novidade. Chama-se História, aliás. É viral, para
adjectivá-la à moda-corrente destes dias vácuos, finados & confinados,
oclusos & reclusos. Por momentos, desvio o olhar de papéis para permitir
que a máquina-televidente me azorrague com o látego da ordinária trenguice do
mundo (nacional & além-raia). Sordidez & surdez. Gente fisicamente nova
sem um grão de saber no sótão-mioleiro. Tachistas de carreira comentadeirando
pan-sofismas de caca pelo Skype, essa astronáutica versão-maravilha do
velhinho põe-te-a-fancos-lá-p’ra-casa-do-caralho. Entretenho-me, enfim,
dando alguma pausa à Yourcenar, ao Duby, ao trio Mattoso-Daveau-Belo, ao Pessanha
& ao Cesário. Certo ascetismo é santo remédio para a tal sordidez. Ora
entretanto, ali na albicastrense Rua das Damas…
A voo de pena, recordo ter fruído
Rosalía de Castro em uma incerta praça, a que decerto não voltarei, plena de
sol. Tinha ao centro um espelho-de-água. Pombas conhecidas esperavam-me o
pão-de-cada-dia, óbolo que eu não falhava. Aí li a Galega. E a Guilherme de
Azevedo também ali li. Trabalhavam naquele derredor duas senhoras – uma era Fátima,
Sónia era a outra. Era um quadrilátero que o sol não poupava. Raras vezes ali
senti a chuva. (Eram anos áridos, esses que ali queimei em vão. Entabulei ali
boa solidão, apesar de tal.) Tirei algumas fotografias, escrevi muito, li com
proveito a autoridade do esquecimento. Como há muito se me revelou (tenho
reescrito essa epifania própria), a morte de cada um começou já – lá nos sítios
onde esteve & aonde não voltará. Ora, eu não sei (não sei mesmo, não estou
a mimar espúria a-gnose – ou a falsear aporia) se passei ou não passei pela tal
Rua das Damas, onde hoje um pretenso violador (na forma-tentada) acabou morto
por um salvador de dama(s) na rua das ditas. Apodrentado noticiário, mofino
mundo que ele noticia – e vicia. (Mas Rosalía àquele sol sem pressa naquela
praça…)
[(“Já se não usam reticências e
pontos de exclamação mas eu ponho – que às vezes escrevo como falo.”) –
isto é Mestre Doutor Vitorino Nemésio, em crónica de 2-11-1972, Missas de
Macabeu, in Jornal do Observador, pág.ª 183.]
Tempo de sobra em tempo de obra –
isso (me) devo.
Mais coisas: refiro-me a presenças.
Nada de fantasmagorias, não por ora. Exemplo: presença do Steinbeck de O
Inverno do Nosso Descontentamento – rica obra, que li quando ainda juvenil
& reli já madurote, já mais capaz de assimilar sentidos densos da trama de
um título ido buscar ao grande Shakespeare do Ricardo III.
Outro exemplo: um homem comendo
nozes no monte, vendedor de livros porta-a-porta. Alvores da década de 70/XX. A
solidão dele marcou-me como por vezes uma nuvem preta barra o sol que fazia. A
Saúde pelos Alimentos era o livro que ele trazia casa-a-casa, recebendo
não-a-não. O meu Pai disse-lhe Sim – e comprou-lho. E o sol de umas
moedas desembaraçou a nuvem do comedor de nozes.
Agora é domingo todos os dias.
Menos carros, mais limpo o ar,
orçamentos rectificativos, democracias de rebanho.
O meu turismo é ir ao lixo pela noitinha.
Hoje passou uma rapariga
máscaro-enluvada.
Deixei pão num baldio que os
pardais madrugam.
É quanto posso por ora fazer,
tirante os versos.
Este fica sendo o ano de o Rui
morrer.
Longe, a sós como um cipreste
celibatário.
É portanto um número daqueles que
rangem.
Tenho dormido contra os números,
não as letras.
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