15/05/2020

VinteVinte - 31




31.

TALINGAS DE OCIOSO

Coimbra, domingo, 19 de Abril de 2020



Numa das primeiras manhãs livres (ou: numa das primeiras manhãs felizes; ou: numa das primeiras manhãs menos amargas) do Verão de há três anos, descobri no topo do contentor do lixo, àquela hora ainda repleto, uma quantidade de livros abandonados. Trouxe alguns para casa. Um deles era a 4.ª edição do Dicionário de Português da Porto Editora – muito anterior, portanto, ao aborto ortográfico em vigor. Tenho-o consultado como os idiotas que procuram zodíacos astrológicos. É delícia garantida, esta minha própria idiotia. Perco-me achando pérolas que a porcos não atiro. Cinéreo – o m.q. cinzento. Mais: Diserto – facundo; eloquente; crisóstomo; crisólogo. E notas do género desta: Agnado (m.q. agnato) – parente por varonia; membro de família – mas não confundir com Ágnato, que é ciclóstomo. Outra maravilha: Sostra – mulher suja e preguiçosa. Outra: Pânria – ociosidade; mandriice; pessoa com estes defeitos. Maravilha: Pronígrado – locomoção sobre quatro membros e com o corpo na horizontal; esse animal. Para ajudar a perceber o título deste dia: Talinga – amarra; cabo náutico.

(Nota marginal: Possibilidade de 2.ª edição – mas desta vez em edição electrónica, ou ebook, pela editora Imagens & Letras– de Terminação do Anjo, que em Junho de 2008 saiu em papel pela Portugália Editora de defunta lembrança.)

(Outras notas de talude, por assim dizer: Uma, recebi ontem dois telefonemas. Ambos de Amigos que queriam saber da minha saúde por estes tempos pandémicos. Eu quis logo saber da deles. Estamos os três muito bem, ao que parece – não entramos, para já, na estatística da moda-viral. Gostei muito dos telefonemas. Foram o melhor do Sábado. Outra, o meu computador avariou-se, parece-me que de vez. Já penso nele postumamente, por assim dizer.)

A primeira leitura integral do volume (“de um punhado de crónicas – notas de viagem, artigos, pequenos ensaios”) Jornal do Observador, do grande açoreano (sepultado em Santo António dos Olivais, Coimbra) Vitorino Nemésio, essa primeira integral dei-a por concluída na tarde de 29 de Abril de 1999 (uma quinta-feira), na mui antiga & mui minha Vila do Louriçal. Tinha eu então partido o dedo médio da mão-dextra no decurso de uma brincadeira de futebol-de-salão: ainda eu então corria qualquer coisita, portanto. Essa leitura, muito boa, aconteceu pela antemão de um péssimo Verão, muito provavelmente o pior da minha vida. Não importa: vou ora mais ou menos a meio da segunda leitura toda. Deliciado ando, como esperava. Grande, grande prosador, poeta, literato, professor, figura humana. Vinte & um ano depois, o Observador continua em grande forma. Disertas 439 páginas (Editorial Verbo, 1974).

Um pouco de Herculano por o declínio já firme do dia. Algumas gravuras: Paris, Angra do Heroísmo, Porto. Entre 1833 & 1836, deve ter sido mais ou menos feliz o grave homem, acolhido à Biblioteca Pública da Invicta como segundo-bibliotecário, depois de ter sido exemplar soldado-raso (n.º antigo, 99; moderno, 33) na Terceira Companhia do Regimento de Voluntários da Rainha. Sim, deve. A Harpa do Crente há-de vir a lume em 1838 com notório sucesso. Nada (me) importa que hoje seja poesia tida por enfadonha. São versos de pano-cru, digo-o eu. Poucas flores retóricas. Lembro-me de lê-los no Caramulo, já entretanto ardeu mais pico de década.
Rilke & Joel Serrão residem também a esta cabeceira de recluso acalmado por certa alienação chamada, talvez, nasça-quem-nascer-tudo-se-cria – como recorrentemente dizia um rapaz muito meu Amigo dali da 10 de Agosto na Figueira da Foz. Talingas de ocioso, não menos nem mais, por estes desertos dominicais.

Não posso precisar se quando, há coisa de uma dúzia de anos, passei por Castelo Branco, alguns dos meus passos perfizeram a Rua das Damas daquela cidade. Aconteceu algum crime esta manhã mesma nessa artéria albicastrense. Alguém quis violar alguém, ao que parece, mas acabou por acabar morto devido à intervenção de outro alguém que acudira em defesa do segundo-alguém desta cena.
A sordidez – exclusivo humano ao nível pan-planetário – não é novidade. Chama-se História, aliás. É viral, para adjectivá-la à moda-corrente destes dias vácuos, finados & confinados, oclusos & reclusos. Por momentos, desvio o olhar de papéis para permitir que a máquina-televidente me azorrague com o látego da ordinária trenguice do mundo (nacional & além-raia). Sordidez & surdez. Gente fisicamente nova sem um grão de saber no sótão-mioleiro. Tachistas de carreira comentadeirando pan-sofismas de caca pelo Skype, essa astronáutica versão-maravilha do velhinho põe-te-a-fancos-lá-p’ra-casa-do-caralho. Entretenho-me, enfim, dando alguma pausa à Yourcenar, ao Duby, ao trio Mattoso-Daveau-Belo, ao Pessanha & ao Cesário. Certo ascetismo é santo remédio para a tal sordidez. Ora entretanto, ali na albicastrense Rua das Damas…

A voo de pena, recordo ter fruído Rosalía de Castro em uma incerta praça, a que decerto não voltarei, plena de sol. Tinha ao centro um espelho-de-água. Pombas conhecidas esperavam-me o pão-de-cada-dia, óbolo que eu não falhava. Aí li a Galega. E a Guilherme de Azevedo também ali li. Trabalhavam naquele derredor duas senhoras – uma era Fátima, Sónia era a outra. Era um quadrilátero que o sol não poupava. Raras vezes ali senti a chuva. (Eram anos áridos, esses que ali queimei em vão. Entabulei ali boa solidão, apesar de tal.) Tirei algumas fotografias, escrevi muito, li com proveito a autoridade do esquecimento. Como há muito se me revelou (tenho reescrito essa epifania própria), a morte de cada um começou já – lá nos sítios onde esteve & aonde não voltará. Ora, eu não sei (não sei mesmo, não estou a mimar espúria a-gnose – ou a falsear aporia) se passei ou não passei pela tal Rua das Damas, onde hoje um pretenso violador (na forma-tentada) acabou morto por um salvador de dama(s) na rua das ditas. Apodrentado noticiário, mofino mundo que ele noticia – e vicia. (Mas Rosalía àquele sol sem pressa naquela praça…)

[(“Já se não usam reticências e pontos de exclamação mas eu ponho – que às vezes escrevo como falo.”) – isto é Mestre Doutor Vitorino Nemésio, em crónica de 2-11-1972, Missas de Macabeu, in Jornal do Observador, pág.ª 183.]

Tempo de sobra em tempo de obra – isso (me) devo.

Mais coisas: refiro-me a presenças. Nada de fantasmagorias, não por ora. Exemplo: presença do Steinbeck de O Inverno do Nosso Descontentamento – rica obra, que li quando ainda juvenil & reli já madurote, já mais capaz de assimilar sentidos densos da trama de um título ido buscar ao grande Shakespeare do Ricardo III.
Outro exemplo: um homem comendo nozes no monte, vendedor de livros porta-a-porta. Alvores da década de 70/XX. A solidão dele marcou-me como por vezes uma nuvem preta barra o sol que fazia. A Saúde pelos Alimentos era o livro que ele trazia casa-a-casa, recebendo não-a-não. O meu Pai disse-lhe Sim – e comprou-lho. E o sol de umas moedas desembaraçou a nuvem do comedor de nozes.

Agora é domingo todos os dias.
Menos carros, mais limpo o ar, orçamentos rectificativos, democracias de rebanho.
O meu turismo é ir ao lixo pela noitinha.
Hoje passou uma rapariga máscaro-enluvada.
Deixei pão num baldio que os pardais madrugam.
É quanto posso por ora fazer, tirante os versos.
Este fica sendo o ano de o Rui morrer.
Longe, a sós como um cipreste celibatário.
É portanto um número daqueles que rangem.
Tenho dormido contra os números, não as letras. 

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Canzoada Assaltante