© Louis Daguerre
Estúdio do Artista (daguerreótipo de )1837
51. CONJUGAÇÃO
Leiria, quarta-feira, 15 de Junho de 2011
O ar e a água em árvore se conjugam,
que se faz luz e clarão na sombria terra.
Tudo abre o olhar que a tudo encerra.
Tudo. Só alguns sonhos subjugam
do cidadão o coração sem rebeldia.
E amanhã, como ontem foi, é outro dia.
*
Em menino, descobri quartzo entre as lajes antes da quinta que tinha cavalos ante o Campo. Da Natureza de então, os reinos funcionavam como o ápice da língua, que à palavra babuja em água gramatical. Eu devo ter sido felicíssimo, então: aos pés da oliveira, o panasco, o funcho, o espargo e o fóssil do caracol emitiam a certidão do nascimento perpétuo da terra. Quando a casa tornava, os do meu sangue trompeavam bandarins encarnados sobre alazões e corcéis e tigres mansos como o papel vegetal picotado de santos a pó-de-carvão. A terrina emanava a respiração nefelibata do caldo, o pão estalinhava fissuras que traíam, por rugas, a mocidade do trigo. No eu-corpo aconteciam verosimilhanças, como é próprio das crianças: a integridade moral do Matt Marriott, a lhaneza pessoal do cão chamado Pinóquio, as galinhas altas da Senhora Teresa (chamei Teresa à mais nova das minhas filhas, pago sempre as minhas dívidas, apago nunca as minhas dúvidas), o furor violáceo das madrugadas de Maio, o meu Pai levantando-se às quatro da manhã por causa da majestade da solidão, a comovida cortesia-inês-de-castro dos chorões rés-Mondego, os nomes-em-mármore dos mortos pedindo por-favor-não-me-esqueças-obrigado, os pardais individualíssimos na montra grisa do firmamento, estas coisas que restolham o ex-menino na atabafada tarde da quarta-feira de Leiria.
Iço as minhas pendurezas escadaria a cima rumo a uma loja contrária a esta escrita, posto que, aquela, não esta, de utilidades. Uma espécie de almácega é a pele de água escura com que envolvo as vísceras e estes versos. Estrofo as boas-tardes ao velho senhor e peço-lhe a Luz, ele vende-me uma lâmpada, é quanto pode fazer por mim. Os mortos (não os meus apenas) vivem-me: e comigo demandam & devassam os entrepostos das estações: a Primavera de 1970, o Verão de 1972, o Inverno de 1981, o Verão de 1999 e todos estes outonos que me somam e somem, menino (des)feito homem. Num café, capacíssimo de moscas e atribulações verbais entre técnicos de ar-condicionado e senhores que são proxenetas, aquela furiosa alegria de antanh’outrora reganha foros coevos no meu coração com óculos novos.
Já não estou neste Junho, mas nos outubros mansos que me levavam aos cedros da colina. Além, os silos da Triunfo e a ferrovia, a extensão até à estrada da Figueira, os canoilos de milho e os esparsos rectângulos onde a couve, o nabo, a cebola, a choupana do cavador, o melro bicão (o ouro da boca dele), os ciganos então sem rendimento mínimo ainda, a Vala do Norte fervilhando de enguias, minha Noruega a sul.
Cada Julho eu era atlântico. Revoadas de sal-areia comiam-comichavam a pele aos outros como eu meninos, hoje pré-cinquentões dizimados pela banca e pelo colesterol e pelos matri(de)mónios. Só que eu era atlântico. No Mercado, a Mãe imperava entre as peixe-hortaliceiras, convocando o feijão-verde, a sardinha, a pontiaguda ferrosa cenoura, o polvo estelar como as ramificações bibliográficas-genealógicas, o frango corado rodando no espeto como carrossel de si mesmo, as canecas de café caseiro nos dentros das tendas de louça, o bolo-de-Ançã e a regueifa-de-Coimbra, a estufa de sombra escoltada lá fora pelo sol mais sem amargura de que me lembro.
Hoje, os loucos são menos silvestres, tomam calmantes-placebos, jogam as cartas sem pensar ganhar. Hoje, derivamos na tonsura psicológica do que era para ter sido o futuro mas que de hoje não passou. Quando me descobri no quartzo, soube-me multimilionário da afeição à terra, a partir de que a árvore, a partir da qual a luz, o menino a partir – e a chegar aqui, agora, hoje apenas e até amanhõntem.
*
No amor, o ouro é o ou(t)ro.
*
A senhora chamada Rosa em conversa com a senhora chamada Laura:
– Vi-a hoje na carreira, ainda tem os cabelos pretos. Pretinhos, pretinhos, pretinhos.
E a senhora (cabeleireira agora, mas já foi modista) chamada Laura:
– Essa se deixar de tomar os medicamentos bloqueia.
Entretanto, falei com dois homens chamados Fernando: um é Mendes, o outro é Jorge e Silva. Cortesia, amizade, a volúpia afectuosa da amizade. Às 16h56m, tenho arrecadado o bragal do andarilho: escadarias, lojas, transumâncias, este nó no coração-garganta com que desato o verbo. A Nova Cidade diadema-se, júnica. A minha Leonor tem uma infecção no tímpano. Vou por zonas contraluminosas, abençoado pela respiração e pela qualidade dos sapatos. Um rapaz chamado Rui Fontelas canta no programa tv-espertino da minhoca andrógina chamada Paião, Saião, Raião, não m’alembra agora. “Agora é que vai ser” – canta o pobre rapazelho, cabelote compridote, riscola ao meio. (Também só um Diogo Infame – perdão, Infante) é que se lembraria de chamar ao palco o tal Caião em encenação dA Rosa Tatuada do Tennessee Williams, não é? Era.) Ante a máquina fulcral do desejo de fixar cromos verbais na caderneta dos dias mailas suas noites. Nesse, por esse desejo é que vamos.
*
Não tratando senão de cuidar das flores a que pertenço,
fui indiferente às florações e desfloramentos
com que outros brindam as cidades-(v)idas.
Hei colonizado meus ramerrames verbosos:
de e à passagem, um regueiro de tinta
(e de tinto, vá) terei deixado à her(d)ança.
Não mais e não menos.
*
Não mais me esconjure a celeste roda
que a astros e pessoas dá destino.
Eu já era, porra!, velho em menino.
Não mais me abjure a agreste rosa.
*
É verbal que tuas de delicada louça mãos
infiro, salvaguardada a utente existência.
Minha Irmã, isto é para levar com paciência:
um húmus de filhos, outro de irmãos.
*
Certa ocasião, eu entrava na papelaria para que o perfume dos papéis impressos se me impregnasse na fala. Eu estorninhava, passaricando entre a cúpida resma do Diário Popular e a galeria (então infanto-juvenil, quando então as crianças ainda liam) da laranjada Fruto Real: Edmondo de Amicis (Coração), R. L. Stevenson (A Ilha do Tesouro), Robinson Crusoe (Daniel, hélas!, Defoe) e A Cabana do Pai Tomás (Harriet Beecher Stowe). Esse tempo não me passou. Adquiri certezas livrescas tão duras quão ósseos punhos. Na esquizomonopolar andança, cheguei ao Calvino que era Italo, ao Carpentier que foi Alejo e doido por música, ao tremendo Faulkner que, William, era afinal Falkner de nascimento, à pandórica Woolf (ou Loobo; ou Virginia sem acento na penúltima sílaba), ao senhor finlandês Paasilina, Arto. Água de água (o vento encrespando uma e outra, marino, ladino, menino, destino), uma torrente de leituras sufraga as fragas marginibeirinhas do estar-vivo: gente escrevendo ainda, ainda falando no papel – e tanta dela morta de corpo, caramba, uma pessoa por vezes nem pode querer nem quer crer.
O meu Pai levantando as quatro da manhã.
*
A mão dela instiga as cortinas da casa.
Um vento assoma estas quatro paredes.
A comida dá-se fragrâncias, dormiremos
juntos como pétalas da flor unificada.
É preciso ter uma casa a que chegar ontem.
Os clássicos compendiam os temas fundamentais,
os quais são: o direito a ver estores azuis,
a galeriar sardinheiras e a ser português.
Ela irmana-se da louça antiga que colheu
dos da morte do Pai despojos, uns anos já há.
Esparge panitos, receitas, mnemónicas
(leite, pão, graxa, azeite) que me comovem.
(A casa é ela, claro, é o seu organismo.
Eu ando aqui a pensar num chapéu.
Às vezes, rio-me ou choro ou cismo:
isto de ela em quadras é pôr-me ao léu.)
*
– Ponha-se na rua
– disseram-me o dono do café e o professor de literatura.
Assim fiz e tenho feito e farei.
*
O condor peruano ainda passa:
hammer, nail; sparrow, snail.
*
Eu da vossa não sei nem posso falar
Mas a minha vida é pura e involuntária
Como um rio vizinho de zona industrial.
Eu do vosso nenúfar não falo nem faroeste
Mas ver passar senhoras em galeria
É alegria ainda, alegri’inda para mim.
Eu da Sylvia Plath digo nada já que os bailes
Da minha terra nunca que eu saiba dançaram
De tremoços pasodobles pevides e tanguédias.
Eu nem falo por mim nem por nós
Falo com uma garganta de cidadão breve
Que tanto um dia foi como deixará de ser.
*
Sentar(sentir)-me-ia aqui um pouco mais
Ante a glória têxtil das pessoas pobrezinhas
Que cumprem as gerações leite-mármore
Urbe-orbitais ao empalidecer do dia.
Está fresco, quem diria? Junho não é já quem foi.
Sói é dizer que em Leiria, Maio foi e Junho dói.
Julho etc.
*
Subia eu, em outras dimensão e cidade, a Dias da Silva. Árvores escoltavam vivendas de médicos, solicitadores, professores reformados no bom tempo. Um ar pespontado a ginjas, a barros vermelhos. Uma possibilidade de negar o não-querer-ser. Eu era em Coimbra um autor de canções, J. M., como esta:
Quem sobe ao alto da Cruz
Que de Celas é nomeada,
Sobe ao alto da luz,
Morouços e Cumeada.
Dá-se a pessoa em doce
Clara que é santa de Inês:
Quem será que foi que a trouxe,
Dá-se o recado: 1, 2, 3:
(refrão:)
Vibra Coimbra ligeira,
Eira de mil gerações.
Timbra sem eira nem beira,
Pátria (talvez) de Camões.
(repete refrão.)
E Lordemão, Rocha Nova,
E a Pedrulha até Eiras.
Muito mais sofre quem trova,
Trovam até as carpideiras.
Dá-me a flor d’ Arregaça.
Traz do Tovim o perfume.
E se não for por desgraça,
Não te recases por ciúme.
(refrão:)
(repete refrão.)
(A próxima quadra é falada, volta-se ao canto depois:)
Um perfume de comboios
Como quem cheira, como quem lê,
É como a Mata dos Lóios,
Coimbra-A, Coimbra-B.
Há um sintoma de chuva
Perto de São Bartolomeu.
A Praça Velha é uma luva,
Digo-te a ti, to digo eu.
(refrão:)
(repete refrão.)
Desce a longa do Brasil
’té Casa Branca, traz mais um.
Sai do Norton do Carmona!
Viv’à Solum, viv’à Solum!
Ó pracita Oito de Maio!
Ó coração sacro Jesus!
Ó doce Ferreira Borges,
Ó meu Visconde da Luz!
(Se as putas não s’assustarem,
Nem entrar desassossego,
’inda vou, se me chamarem,
’té à beira do Mondego.
(Etc. e tal.)