Retrato de Isabel (1997)
Pintura de Fernando Campos
Nenhum dos Rostos – V
Às seis da manhã, o gelo azula nas janelas.
Menos de meia hora depois estou levantado e não tenho remédio. Transito das profundezas do sono para a superfície da consciência desejando uma pequena casa de pedra com lar de lume e laranjeiras em torno. Ainda não me levantei, fecho os olhos, perfumo de café e toucinho essa visão benigna.
Teria uma mesa única para todo o serviço. Um cesto cheio de jornais antigos. Uma tábua firme a todo o comprimento da parede, sobre que alguns livros, a cafeteira, a sertã, as canecas de folha e as de louça, pequenas outras coisas. Sempre junto ao lume, três panelas de ferro: a de cozer a galinha, a dos caldos de horta e a da água para o banho. Duas janelas para que o gelo tivesse onde azular a vaga angústia do despertar.
Levanto-me, visto a roupa mais quente, saio ao pátio e respiro o ar frio. Vai ser um dia de temperatura precária, sol de vez em quando, quase sempre diluído em gaze. A árvore japonesa do fundador da vila tintadachina-se contra o primeiro céu. É uma visão perfeita. Agora, quase não respiro. Apenas vejo. Já não procuro qualquer sentido para nada disto.
Entro na cozinha, faço chá. Ainda não é hora de ouvir música. Vejo fotografias sucessivas do rosto de Simenon dos anos 50 aos anos 80 do século passado. Reparo depois que o sol foi varrido por um vento escuro, um vento corredor de árvores que assombram o cérebro. Acendo um cigarro para resistir à tristeza, à inqualificável tristeza da meteorologia.
Na casa de pedra, a luz e a temperatura não haveriam de desassossegar assim. Penso isso, penso nisso. Os animais invisíveis labirintariam por entre a erva. À porta, o lavatório de esmalte seria a mais branda coisa. Na mão dele, o pedaço de sabão que seria a coisa mais azul. Uma toalha breve, água da chuva. Não isto.
O dia escoou-se como água por ralo. Esvaziou-se a si mesmo. Fui mais um dos que não puderam, tantos anos depois, determinar o rosto do sériassassino conhecido como Zodíaco, o cifrador de mortes violentas no norte da Califórnia de finais da década de 60. Deixei isto passar. Abandonei esses documentos tristes à sua mesma tristeza e procurei, na calçada de pedra, subir a cara ao sol sem força deste fraco Junho. Subi-a a pouco.
Por não me ter sido possível ainda reouvir o Paradox de Sonny Rollins, dou-me agonias. Ando por aqui a assobiar cançonetas sem medula espinal. Depois, uma inflamação bucal aperta-me a música em torno férreo. Deixei de ver o assassino malogrado no quarto de hotel. Ainda tentei que o sítio do ouvinte de Rollins se chamasse Hopper Hotel, mas nada resultou da tentativa. Entretive-me pensando na égua que de facto vi ontem, na vila. Era bonita como uma mulher.
Em torno, o comércio estagnado boceja de provincianismo. Também eu bocejo. O vento frio metaliza o fim da tarde. Chamo-lhe espécie de navalha anil. Fiz mal em não ter trocado de camisola e de casaco antes de sair de casa. Agora estou mais exposto ao que se impõe. Pintaram ali uma casa de branco. Ficou bonita, mas falta-lhe sol, como a nós todos aqui em baixo. Apresta-se a noite a disfarçar de mil-e-uma caras os nenhuns rostos destas linhas.
Menos de meia hora depois estou levantado e não tenho remédio. Transito das profundezas do sono para a superfície da consciência desejando uma pequena casa de pedra com lar de lume e laranjeiras em torno. Ainda não me levantei, fecho os olhos, perfumo de café e toucinho essa visão benigna.
Teria uma mesa única para todo o serviço. Um cesto cheio de jornais antigos. Uma tábua firme a todo o comprimento da parede, sobre que alguns livros, a cafeteira, a sertã, as canecas de folha e as de louça, pequenas outras coisas. Sempre junto ao lume, três panelas de ferro: a de cozer a galinha, a dos caldos de horta e a da água para o banho. Duas janelas para que o gelo tivesse onde azular a vaga angústia do despertar.
Levanto-me, visto a roupa mais quente, saio ao pátio e respiro o ar frio. Vai ser um dia de temperatura precária, sol de vez em quando, quase sempre diluído em gaze. A árvore japonesa do fundador da vila tintadachina-se contra o primeiro céu. É uma visão perfeita. Agora, quase não respiro. Apenas vejo. Já não procuro qualquer sentido para nada disto.
Entro na cozinha, faço chá. Ainda não é hora de ouvir música. Vejo fotografias sucessivas do rosto de Simenon dos anos 50 aos anos 80 do século passado. Reparo depois que o sol foi varrido por um vento escuro, um vento corredor de árvores que assombram o cérebro. Acendo um cigarro para resistir à tristeza, à inqualificável tristeza da meteorologia.
Na casa de pedra, a luz e a temperatura não haveriam de desassossegar assim. Penso isso, penso nisso. Os animais invisíveis labirintariam por entre a erva. À porta, o lavatório de esmalte seria a mais branda coisa. Na mão dele, o pedaço de sabão que seria a coisa mais azul. Uma toalha breve, água da chuva. Não isto.
O dia escoou-se como água por ralo. Esvaziou-se a si mesmo. Fui mais um dos que não puderam, tantos anos depois, determinar o rosto do sériassassino conhecido como Zodíaco, o cifrador de mortes violentas no norte da Califórnia de finais da década de 60. Deixei isto passar. Abandonei esses documentos tristes à sua mesma tristeza e procurei, na calçada de pedra, subir a cara ao sol sem força deste fraco Junho. Subi-a a pouco.
Por não me ter sido possível ainda reouvir o Paradox de Sonny Rollins, dou-me agonias. Ando por aqui a assobiar cançonetas sem medula espinal. Depois, uma inflamação bucal aperta-me a música em torno férreo. Deixei de ver o assassino malogrado no quarto de hotel. Ainda tentei que o sítio do ouvinte de Rollins se chamasse Hopper Hotel, mas nada resultou da tentativa. Entretive-me pensando na égua que de facto vi ontem, na vila. Era bonita como uma mulher.
Em torno, o comércio estagnado boceja de provincianismo. Também eu bocejo. O vento frio metaliza o fim da tarde. Chamo-lhe espécie de navalha anil. Fiz mal em não ter trocado de camisola e de casaco antes de sair de casa. Agora estou mais exposto ao que se impõe. Pintaram ali uma casa de branco. Ficou bonita, mas falta-lhe sol, como a nós todos aqui em baixo. Apresta-se a noite a disfarçar de mil-e-uma caras os nenhuns rostos destas linhas.
Caramulo, tarde de 22 de Junho de 2007
2 comentários:
Olà daniel, estou de volta a este paris jà frio.Nao li nada do seu blog, nem de nenhum durante um mês e meio, tive saudades. Adoro este texto, é incrivel como cada uma das suas palavras sao visiveis, vividas como nossas, estamos nos seus olhos, no seu corpo a sentir o frio de manha, a falta do sol, ouvimos o silêncio das pedras, ou nao ouvimos o sony Rollins.Encho-me desta suas escrita que me faz sempre triste, desta tristeza mole que nao doi tanto, porque é tao profunda que jà nao pode ser so nossa.
Porquê queixarmo-nos dela?
Vou tentar mexer no meu blog,
li um poema terrivel de Bernard Noël, conhece?
Enviei o Nuno Judice ler os eu blog, as suas poesias, ele gostou muito.Amanha leio mais.
O que é encontrou como trabalho?
Um beijinho de paris( agora està sol!) LM, paris
Bem-vinda de volta, Lídia. Agradeço a atenção que me dá: é para (pouca) gente como a LM que escrevo.
Estive uns tempos a fazer de recepcionista num hotel.
Agora, procuro outra coisa: como toda a gente, toda a vida.
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