30/07/2007

Trança


Paris, Rue Mouffetard, 1954
© Henri Cartier-Bresson

Lá no fundo, está a criança inominável.
Entre algas que penteiam a água, está a criança intratável.
Tardes há em que a vemos, subida, levando a luz aos cegos.
Peixes de pedra devassam-lhe os olhos, mas não é tal
uma visão de horror, senão de lúbrica serventia.

Os bosques estão nos livros, cá em cima tudo ardeu.
Cortantes flashes demandam as massas umbrosas, mas não, não
são rosas, são raposas de magnésio perseguindo sons de arroios.
Atormentadas de sede demandam, vigiadas de cima pelos corvos e
do fundo pela inominável criança.

As cidades viram-na, à criança, tornar-se corvo – ou homem.
Fecharam-lhe os pátios, menos o da penitenciária. Ou dela
o coração embrulharam em papel-de-prata. Congelaram-lhe a
genitália, ensinaram-lhe francês, recomendaram-na a uma tia
transparente cujos ossos agulhavam a alma a tudo e a todos.

Comboios voejam sobre o mar, nada é estranho, tudo é
estanho: lisura e cegueira prateadas. Muito azul é a criança
revisitando alguma árvore, alguma dessas árvores das páginas
dos livros. Muito antiga é toda a criança quando recorda.
Mais antiga, se não recorda nem é recordada.

Não pudemos vê-la tornando-se raposa. Ao volante do carro,
parece-nos apenas um homem gordo derretendo-se ao calor. Ou
uma mulher triste na penumbra de uma sala cravejada de retratos
de rostos fotografados pela nuca. Apareceu-me ela hoje, esta tarde,
quando julho acaba para ser igual ao que ela vai ser.

Desenha estrelas na areia com um talo de lírio. Esquece
talo e estrelas quando a convoca alguma rápida sombra de
corvo marinho. Desconhece (felizmente) a criança que
os mares estão nos livros, cá em cima tudo se afundou.
Só o vento vira essas páginas hialúrgicas: calor, ar, areia.

É escusado amar a criança. Barcos e mercadorias sulcam os
golfos ferroviários, adeuses de lenço bandeiram os cais
desertos, a guerra (viver) tem levado muita gente, insignificantes
velhotes projectam o assalto a um contentor do lixo, acumula-se
o vidro velho no imo de garagens violadas. É escusado amar.

Vai-me ao vinho. Volta só. Deixa-me ver a tua nuca, se é
já uma das da sala – ou se tenho ainda ou não tempo de te
retomar os olhos, essas águas: pois que os olhos são
a única água vertical do mundo, nem chuva se lhes coteja.
Na minha sala, estou só a estar só com ela, com a criança.

Lembrei-me hoje disto. Passaritos, além da janela,
esmagam açúcar com a vozita. Açucenam a sesta mundial
do calor, na cal respiratória da hora, enquanto as raposas
tomam grandes rosas de água, de olhos fechados, na encosta
nascente que, como tudo, há-de morrer. Um dos velhotes acha.

Um dos velhotes acha no lixo uma trança de mulher. É de
cobre pesado, o cabelo. Gente espreita de dentro do autocarro,
gente comenta a riqueza do velho. Pode ser então. Muito gostaríamos
que fosse então. Um então que não desse sede nem amor.
Só que então se volvesse alga a trança – e fosse o velho a criança.

Caramulo, tarde de 30 de Julho de 2007

1 comentário:

Paula Raposo disse...

Tão bonito e tão triste...beijos.

Canzoada Assaltante