Oito Oitavas Felizes
Num canto do pátio, esta tarde, ao sol,
pude ser feliz para aí uns três minutos.
Às vezes, acontece. Eu faço como as outras
pessoas e aproveito. O vento brincava nas
árvores como uma criança grande. O sol
não era desses do catolicismo que vão
ao baile para espantar os pacóvios. Não:
era um pai sereno e, de novo, novo.
Ao longe, outros gajos como eu, em outros
pátios como o meu, multiplicavam a
solidão da felicidade à la minuta.
Tão bem me sentia, que abençoei, até, os
filhos da outra. Além do muro, vi
passar um homenzinho de um dos lares
terminais cá do sítio. Levava consigo
o transístor, seu último filho, ou amigo.
A luz envolvia-me como uma manta.
Também posso dizer: como um lago.
Cheguei a sorrir como os artistas de circo.
Pensei se a minha velha Mãe, estaria
aproveitando aquele sol, pensando no
marido dela. Mas logo afastei de mim
esse pensamento. Fi-lo como quem afasta
uma cortina de veludo que anoitece uma sala.
Depois desses três minutos, voltei ao trabalho,
que se fazia tarde. Só que, depois, tão
estranhamente, o lastro feliz continuou
areando a bolsa de couro do meu coração.
Então, eu disse-me assim, entre aspas itálicas
de monólogo interior: “Carago, mas que
raio é isto? O trabalho tem tempo que
sobre, mas tu, tempo que falta. Sai daqui.”
Como estava a ordenar-me coisa a mim
mesmo, obedeci. Saí. Fiz o que fazemos
todos: vim andando, andando fui.
Tive duas sortes. A primeira foi a sombra
dos castanheiros. São árvores conventuais.
Estar à sombra delas é como ter-se uma
pessoa matriculado num pretérito benigno,
em que até o chão é uma diversa qualidade da altura.
A segunda foi ter visto uma rapariga tão bonita
como um debate de rosas moderado por uma
fonte. A todas as glândulas fazia bem olhá-la.
Escoltada pelos pais, tomou uma laranjada
sem tirar os olhos do chão.
Fez bem, fazendo isso – pois que
a virtude assassina daquele tipo de beleza
é cegar os poetas imbecis com felicidades de pátio.
Lembrei-me de escrever-vos estas oito oitavas
por razão quase nenhuma, motivo que aliás
repito em todos os versos outros de todas as
outras morfologias. Sim, posto que escrever
é como viver: não se sabe porquê, nem para
quê. Estrofar oitavamente uns minutos vitais
é tão ridículo mas tão inofensivo, digo-o eu
que tenho caneta, como sorrir à artista de circo.
Como sempre volta o mais eterno dos nuncas
(o agora), agora volto a pensar na minha velha
Mãe, a quem a noite rebuscará, como de costume,
o antigo coração. Espero, como sempre, que ela
continue cortando pela esquerda o trânsito da
solidão. Que a continue ensolarando algum dos ditos
dito pelo marido dela, esse cavalheiro pobre
que, noutro pátio de outros minutos, era novo e sereno como o sol.
Nove Buscas
1
Quero outra vez um pouco ainda
de atravessadas luzes por
fluviais árvores ao ar brando
de um entardecer que já não sei
dizer.
Um pouco ainda disso
antes de viver.
2
Espalha o corpo certas águas no linho do sono.
Todo o corpo é mar e nadador quando sonha.
Todo o vivente é talvez demasia do Outono.
Talvez por o coração não saber onde o ponha.
3
O pessimista borra-se.
O optimista deixa-se de merdas.
4
O antigo mar rejuvenesce o antigo homem
que o abarca. Trocam sinais
de sal e entendimento.
– Continuarás depois de ter sido
– diz ao homem o mar.
E o homem nem responde,
dando à costa.
5
Coleccionei para a vida toda todos os gestos
lá de casa.
Como a mais velha se sentava, de faca
na mão.
Como o do meio trinchava o arroz doce, dizendo
palavras de canela.
Como o próprio sucessivo mesmo repetido cachorro
humanizava o carinho alimentar
das jantas festivas.
A 15 de Novembro de 1982, não tinha ainda
morrido ninguém no mundo
de então.
Havia arroz doce e havia cão.
Garrafas de porto e espumante
endireitavam o torto e retardavam o adiante.
Celebrava a família nem sei o quê.
Eram pequenas, muito pequenas, as novas crianças.
As minhas, então, nem novas eram.
Honrámos a pagela do Irmão Doutor Sousa Martins
e abocámos porto, champanhe e arroz doce.
A Mãe campeava entre farturas de couve
e talhadas de melão.
Respirava para cima um vapor de favas.
O Velho, coxo de uma perna, era olímpico
em sua dele tristeza reservada às melhores
festas daquele planalto tão baixinho
quão o mais alto dos contraltos proletários.
Era tão engraçado ninguém ter morrido.,
que, às vezes, nessa véspera de 16 de Novembro de 198enta-e-tal,
trocávamos de braços e mãos para que se
repetissem os gestos.
Ainda temos disso, os restantes, julgo eu.
Eu corrijo a espinal medula com a mesma torção
de outro irmão que boceja à materna maneira.
Mas não, julgo e versejo eu que não,
pode a vida ser tão arrozdoceira.
6
Junto ao rio vive-se um fresco
que as lusafamílias sentem bem
ser contra o Demo, tal grotesco,
emanação da Virgem-Mãe.
Vai ’ma fartura? Queres um balão?
Há framboesa açucarada em baunilha.
Senhor Avô, o capilé é ou não é?
Ou é de Alicante torrão a filha?
Vem o fresquinho. Ainda é tempo
de outonar em primavera.
Não deve quem ganha o momento
esperar p’la feira, qu’ela não espera.
7
As mulheres são emanações da floricultura.
Perigosamente perfumam suas redondezas.
Certezas só dão em puericultura,
Que machos p’ra elas são só incertezas.
Habitam o mundo, o mundo elas são.
Moribundo soldado à dele exclama
entrega de sopro e de coração,
quando a ele se apaga a chama.
Mulheres de maridos. Sempre cozinheiras.
Mulheres do caraças, entregues, servis.
E passam com isto as vidas inteiras,
só que sempre senhoras do mesmo nariz.
8
Ainda guardo alguma alegria muscular.
Na ’statística não confies da meia idade.
Quarenta e tal anos, por Deus, hão-de dar
’mas gambas e coisas o mais à vontade.
Nem jogging nem shopping, realmente eu não.
Eu não, realmente, sou de sapatilhas.
Mas cruzo meus mares com a condição
do calado verniz lustrar minhas quilhas.
Quarenta e tal anos? Eu já tive vinte!
Nem sinto que seja merdoso acinte
sofrer da miudagem boquita ou toleima.
Do caminho feito, faç’ eu outro tanto,
não se m’ esgane a voz nem idem o canto,
que quem não insiste, não sabe o qu’é teima.
9
Não venha (ainda não, por favor) o zimbrocobre
acidulado do repentin’ arrependimento.
Não venha agora, que não é momento.
Não cobre o que tapa, não tapa ou descobre
quem tanto em si mesmo buscou
quem não encontrava nem nunca encontrou.
Caramulo, tarde de 24 de Julho de 2007
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