30/07/2007

Apogiaturas para a Dolorosa Mãe



Dia algum passa sem que me apele
a Dolorosa Mãe.
Eu e toda a gente – somos os roedores
atrás do flautista.
Algures, imersas nas trevas, há pontes.
O próprio caminhar uma delas é.
Errantes passos errados tartamudeiam as pernas.
Refrigera-se da solidez vã das igrejas
o claustral coração.
Movente comoção à vista de um rio,
o coração armadilhado de metáforas.
Sassarica a tristeza suas bandeiras, pelo rossio
que as pombas desfraldam.
Num autocarro urbano, a meio da manhã,
um homem novo morre, inaugurando o
desfile insensato dos meus poemas
envelhecidos à nascença.
Fazia muito sol – e eu pus-me a andar
à chuva.
Era tudo
amanhã.
Cortinas negras dentro dos olhos,
espelhos reflectindo espelhos.
Às vezes, apanhada num dos espelhos,
a boca portuguesa aparece
com uma língua
estrangeira dentro.
Dia algum passa sem que a boca acabe.
Dia algum, sem que recomece a acabar-se.
Lourenço em Alexandria.
Joaquim no Alaska.
Jorge na Birmânia.
Wenceslau no Japão.
Armando em Peniche.
Carlos em Febres.
Fulguram-me, flavam-me: sítios e nomes.
Tantos filmes,
tantos filmes projectados no céu da noite,
no céu da noite da cabeça.
Não se perde, é de vista o flautista.
Dia algum deixa ele de tocar,
também ele apelado pela
Dolorosa Mãe.



Texto: Caramulo, manhã de 27 de Julho de 2007
Fotografia: Caramulo, céu do anoitecer entre árvores, 23 de Julho de 2007

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