Para
o Zé Nhel e para a Gracita,
que hoje cumprem,
cada um,
mais um aniversário.
1
Tendo morrido, os homens continuam em casa
Tendo morrido, os homens continuam em casa
na qualidade de retratos.
Uma sombra veloz, cinzascura, à flor da água?
Levantas os olhos ao céu: nenhuma ave.
Assim deves ver os retratos:
Uma sombra veloz, cinzascura, à flor da água?
Levantas os olhos ao céu: nenhuma ave.
Assim deves ver os retratos:
cinzas de que levantaram voo, como tu o olhar, as aves.
2
Recordo-te antes até de inventar-te:
que a ter-te me não falte a arte.
3
Saio à rua para que de vez o vento
me desemoldure.
Sou feliz quando me desemoldura
o vento.
Restos de sonhos maus frapejam,
farrapos consequentes de horas más.
Saio muito cedo para que
o novo dia tarde a noite.
Derrubo-me sem bilhete no banco
do caminho-de-ferro.
Assisto aos comboios comedores de horas.
Registo a inconsolável ternura da erva
entre carris nascida.
E então (agora) o vento
varre pelo cais da gare
um arroio de miniaturas encarnadas:
escarlates floritas tossidas
por anjos tuberculosos.
Levo a mão à boca,
volto assim a casa.
4
Pássaros verticais gritam no sonho
de ignoto adormecido.
Não posso calar os pássaros, não
sei como acordá-lo.
5
Conheço um gajo cujo coração é
como suponho seja Londres:
muito comércio cosmopolita e muitos
rápidos, obscuros assassínios.
6
Um rio pobre de dias
corre ao contrário da nascença.
7
Formosos olhos de viajante
entrevi eu numa inumerável quinta-feira,
anos e anos vão.
Era pela tardinha.
À direita, o rio
(uma veia de mercúrio)
sangrando no mar.
Árvores oblíquas diziam:
– Vem o vento, vem o vento, vai o vento, vai.
E foram:
o vento, os formosos olhos
viajantes.
8
Somos
na cidade
ovelhas metalizadas.
Só
no deserto
um homem
uma mulher
somos.
9
Manhã muito cedo,
na pastelaria,
observo as casadas.
Era isto, o
futuro delas:
café-com-leite e lacrimosos bocejos.
10
Isto
entre
um homem
e
um bosque
é
sempre
um duelo.
Adivinhai
quem
sempre
cai.
11
O homem e a mulher partilham a sopa.
Há muito se abateu sobre eles o inverno.
Então, ele diz uma graça, ela ri-se muito
– e sobre eles se abate um verão
de minutos.
12
Gestos há que equivalem a
ciências naturais.
A menina que um só dedo leva à boca.
O cão que sorri à audição do dono.
O tubarão que lapija azul no caderno do mar.
As mãos da mãe na barriga perante o retrato da filha.
O retrato da filha com um dedo no lábio.
13
Frente a um mar de gente,
a praia é solitária sempre.
14
Um canteiro de meninas
ruboriza o pátio da escola.
Um vento de meninos
fá-las, deliciadas, gritinhar mais cores:
– Amarelo, Leonor, rosa rosa rosa, Teresa, fujam!
15
Na minha mocidade, era costume de minha Mãe coleccionar pérolas e cupões de detergentes. Do terceiro andar, descia a solidão radiofónica da mexicana que o senhor Eurico tinha trazido casada com ele. No pátio, eu falava com o Pessegueiro. Além do monte, eram os comboios. Tudo era, ao mesmo tempo, tempo e eternidade.
Guardei os cupões.
16
Há muitos, muitos anos, era o futuro.
17
Albuquerque levou Ana de casa de seus pais.
Meteu-a noutra casa de outra cidade.
A segunda cidade era a última e sem mar.
Ana teve uma filha para albuquerques
que dessem, viessem e tirassem.
18
Em tardes de chá, frequentei
salões domésticos povoados
de velhas senhoras portadoras
da mais especiosa quinquilharia.
Havia sempre um piano.
Ao piano, havia sempre
uma máquina de porcelana
que era sempre a Filha.
Mantive-me solteiro: tenho mais medo
de pianistas que de quinquilharias.
2
Recordo-te antes até de inventar-te:
que a ter-te me não falte a arte.
3
Saio à rua para que de vez o vento
me desemoldure.
Sou feliz quando me desemoldura
o vento.
Restos de sonhos maus frapejam,
farrapos consequentes de horas más.
Saio muito cedo para que
o novo dia tarde a noite.
Derrubo-me sem bilhete no banco
do caminho-de-ferro.
Assisto aos comboios comedores de horas.
Registo a inconsolável ternura da erva
entre carris nascida.
E então (agora) o vento
varre pelo cais da gare
um arroio de miniaturas encarnadas:
escarlates floritas tossidas
por anjos tuberculosos.
Levo a mão à boca,
volto assim a casa.
4
Pássaros verticais gritam no sonho
de ignoto adormecido.
Não posso calar os pássaros, não
sei como acordá-lo.
5
Conheço um gajo cujo coração é
como suponho seja Londres:
muito comércio cosmopolita e muitos
rápidos, obscuros assassínios.
6
Um rio pobre de dias
corre ao contrário da nascença.
7
Formosos olhos de viajante
entrevi eu numa inumerável quinta-feira,
anos e anos vão.
Era pela tardinha.
À direita, o rio
(uma veia de mercúrio)
sangrando no mar.
Árvores oblíquas diziam:
– Vem o vento, vem o vento, vai o vento, vai.
E foram:
o vento, os formosos olhos
viajantes.
8
Somos
na cidade
ovelhas metalizadas.
Só
no deserto
um homem
uma mulher
somos.
9
Manhã muito cedo,
na pastelaria,
observo as casadas.
Era isto, o
futuro delas:
café-com-leite e lacrimosos bocejos.
10
Isto
entre
um homem
e
um bosque
é
sempre
um duelo.
Adivinhai
quem
sempre
cai.
11
O homem e a mulher partilham a sopa.
Há muito se abateu sobre eles o inverno.
Então, ele diz uma graça, ela ri-se muito
– e sobre eles se abate um verão
de minutos.
12
Gestos há que equivalem a
ciências naturais.
A menina que um só dedo leva à boca.
O cão que sorri à audição do dono.
O tubarão que lapija azul no caderno do mar.
As mãos da mãe na barriga perante o retrato da filha.
O retrato da filha com um dedo no lábio.
13
Frente a um mar de gente,
a praia é solitária sempre.
14
Um canteiro de meninas
ruboriza o pátio da escola.
Um vento de meninos
fá-las, deliciadas, gritinhar mais cores:
– Amarelo, Leonor, rosa rosa rosa, Teresa, fujam!
15
Na minha mocidade, era costume de minha Mãe coleccionar pérolas e cupões de detergentes. Do terceiro andar, descia a solidão radiofónica da mexicana que o senhor Eurico tinha trazido casada com ele. No pátio, eu falava com o Pessegueiro. Além do monte, eram os comboios. Tudo era, ao mesmo tempo, tempo e eternidade.
Guardei os cupões.
16
Há muitos, muitos anos, era o futuro.
17
Albuquerque levou Ana de casa de seus pais.
Meteu-a noutra casa de outra cidade.
A segunda cidade era a última e sem mar.
Ana teve uma filha para albuquerques
que dessem, viessem e tirassem.
18
Em tardes de chá, frequentei
salões domésticos povoados
de velhas senhoras portadoras
da mais especiosa quinquilharia.
Havia sempre um piano.
Ao piano, havia sempre
uma máquina de porcelana
que era sempre a Filha.
Mantive-me solteiro: tenho mais medo
de pianistas que de quinquilharias.
Caramulo, manhã de 2 de Julho de 2007
3 comentários:
Que coisas tão extraordinárias que escreveste. Agora percebo que estejas tão de bem com a vida. Que coisas tão esperadamente boas as que estás a escrever. Tenho aqui comigo o meu banquito e o meu guarda-sol (como se o sol fosse coisa de guardar, enfim) e sentei-me a assistir. A trabalhar para o bronze. (Sim que a de ouro já a tens ao pescoço.)
Iur: escrevo para meia dúzia de almas. Conta a partir de 2.
conte mais uma alma, vim pelo amigo Zé da Ulmeiro, gostei muito deste ultimo poema, jà li e reli. sou monomaniaca...acho que amanha voltoe leio outra vez.
ficamos à espera, as almas e mais esta. quando viajar plos blogs salte e ladre no meu:
http://autre-cas.blogspot.com/
continua a chover em Paris...
LM,paris
Enviar um comentário