30/09/2005

Versos Contra a Poesia e Pouco a Favor da Vida

1
Ode Ornitológica


Codornizes farfalham folhas
secas, é o fim do verão.
Tu olhas, vês, tu olhas.
Livre de livros, desfolhas
a minha encadernação.

Deixa-me em paz. Liberta
livre quem gastar não podes.
É misericórdia. Acerta
bem mais quem deserta
da discórdia e das odes.

Oxalá de nada precises.
Que nada seja condição.
Toda a gente tem deslizes.
Até, claro, as perdizes
pobres e secas, findo o verão.

Botulho, noite de 24 de Setembro de 2005




2
Poema do Ano


Em Janeiro saio cedo. Regresso com lenha fresca e água quente.
Fevereiro, tenho sono e medo. Tenho a vida.
Março vem, parto eu. Fico longe até de mim. O cego pede que lhe dêem a esquina.
Em Abril, o Mais Velho foi-se embora. Disse até amanhã e não cumpriu.
Em Maio, tinha ido o Outro. Até amanhã o caraças.
Junho: lírios, delírios, delíquios. Um punho de sal que gema: um poema.
Julho, eu já não esperava nem atendia. Ganhava cada dia que perdia.
Agosto, não conto. D-existo. Sob o castanheiro, quieto, de pé, contando as couves com uma aritmética de rosas.
Em Setembro, que me acabe o velho caderno. Tenho um lápis novo.
Outubro, Novembro, Natal
- circularemos em frios automóveis,
médios acesos nos dias mínimos,
o que a gata tem crescido.

Botulho, noite de 26 de Setembro de 2005



3
Fazer Aquilo


Não acontece sempre.
Às vezes acontece.
Tenho uma vela vermelha.
Uma tenda de carne.
Um homem e uma mulher.
Saudação, exsudação.
A eminência, a iminência.
Unhas nas costas.
Gingar de ancas.
Empurrão, pão da boca.
Choupanas na neve.
Equadores de ventre,
entre faz favor.
Uma mulher e um homem.
Nem sempre.
Mas, às vezes, siameses.
Depois, o silêncio no pátio.
Lá fora, quase outubro.
Um véu de silêncio.
Tapo. Cubro. Descubro.
Escrevo. Trevo. Atrevo. Olha.

Botulho, noite de 26 de Setembro de 2005




4
Menino ou Menina

Sabe bem evocar.
Arrancar da voz.
Pés nus lavados a areia e sal.
Nenhuma tremura, então.
Ainda nenhuma perdição.
Dou água mineral ao lado.
Ela cresce na cal na luz na cal.
Tanta areia na praia: tempampulheta aos pés.
O marisco pobre (percebes, mexilhão)
cresce na rocha como uva em cacho.
É o ano décimo.
Ela azula, sem querer, o mundo.
Ela olha, assim azula.
Há um restaurante na costa.
Um rancho de norueguesas
envelhecidas como ostras de montra.
Não sabíamos.
Grave.
Nenhum susto, porém, nem
perdição também.
Eram os quatro pés escavando a areia: o tempo.
O mar de cimento.
Era o momento.
As coisas estavam para ali todas postas
como uma mesa
de hotel.
Não me doía nada.
Faltava-me a acidez.
Às vezes, a acidez é precisa.
Eu tinha um carro branco.
Eu tinha deixado o carro nas bombas.
O azul chegou a horas prometidas.
O caranguejo de pedra.
O cedro-do-líbano.
A dor igual: equa, égua, dor.
A montagem.
Azul, tão azul.
Todo o mar-oceano.
Lembro-me de uma parte de costa,
de costas.
Atlântica menina.
Senhor chofer, faz favor,
ponha o pé no acelerador.
Antropometria.
Ginometria.
O que desaparecia.
Era o tempo, era a hora,
mas agora tudo era eivado
de condições, por exemplo,
prestações
no banco
de areia
de sal e prata e ouro e nada,
nada, esqueci-me,
menino ou menina.

Botulho, noite de 26 de Setembro de 2005




5
Canção de Lx.


Um lance de rio Tejo.
Olha a Rocha do Conde d’Óbidos.
A circulação de tanto sangue.
Marinheiros alheios
vêm cá proceder a interacções
com putas tão nacionais como
brasileiras.
O Zé Viana já não vive.
Nem o Tony de Matos.
Nem a Beatriz Costa, sozinha no Hotel Tivoli.
Há um Carlos do Carmo.
Por que é que não um Carlos da Trindade?
Houve aqui alguém que se enganou.
Mas não, talvez não.
Talvez seja só a nossa natural condição.
Vocês já viram a paciência do Luxemburgo?
Com 30 e tal mil por cento de portugueses
e o futebol ainda não lhes é nacional
de bandeiras manjeriqueiras?
A maioria faz de Maria.
Poupa um i.
Poupa um ó.
Poupa é
uma rola encabrestada.
Morrem em casas senhoriais.
Nem mais.
Trouxe-nos uma coisa
que não é
uma trouxa d’ovos.
É para os ovos, Zé.
Estamos desiludidos, Tony.
Não fizemos nada.
Estamos fodidos, Beatriz.
Estamos aqui.

Botulho, noite de 26 de Setembro de 2005




6
Quadrinha para Azulejo


Nunca se sabe.
Tem-se uma ideia.
O lobo cabe?
Mais alcateia.

Pombal, tarde de 27 de Setembro de 2005

Muito

Era muito o amor
Assim está escrito na página 38 de um livro, esqueci qual, quem quiser saber só tem de abrir todos os livros portugueses na página 38, que por ser par fica do lado esquerdo, o do muito sítio - o do coração.
Era muito o amor
Mas nisto entra no café da aldeia um maluco de outra aldeia, como se esta não tivesse já bastantes. Este vive a fantasia de ser polícia e uniforma-se a rigor. Tem um dólman verdadeiro, um cassetete pintado de branco e um coldre também branco de tinta de armário de cozinha. Veste adequado par de calças de azul-escuro. A coisa só descamba no calçado: um par de botas de borracha. No entanto, as botas são debruadas a amarelo-adesivo no alto do cano. Tem olhos de um azul aguado: um azul magoado.
O polícia falso bebe uma cerveja verdadeira, vai ao lavatório molhar as mãos, leva a mão direita pingando ainda à sobrancelha do mesmo lado (falta-lhe só o boné) e, boatardando os presentes, sai de cena.
Pergunto à senhora do balcão por ele.
- É um de Santiago que não funciona bem, tem a mania que é polícia. Mas este não faz mal a ninguém. A guarda já lhe tirou o uniforme umas vezes por causa de ele fazer operações stop, mas ele arranja logo outro, não se sabe como. Agora ele disse que se os guardas lhe tirarem outra vez a farda, que ele vai pegar fogo às matas. E capaz disso é ele.
Era muito o amor
E o amor, toda a gente sabe, é fogo que arde etc.
Botulho, noite de 24 de Setembro de 2005

Quem Disse

O homem vestido de escuro surgiu como uma exclamação muda na chuva da tarde. Contornou a esquina, parou em frente ao contentor municipal, remexeu a camada superior do lixo. Não encontrou o que procurava. Virou costas ao lixo, deixou-se molhar minutos e mais minutos. Tinha um chapéu escuro. Tinha uma boca fina e horizontal de travessão de diálogo com ninguém. Era só um homem vestido de chuva na tarde escura.
Recupero hoje essa visão violenta. Senti, então, uma mesquinha misericórdia. Também, às vezes, sou cristão sem querer. Depois, critico-me com aspereza. Pena por quê, para quê, por alma de quem? Por nada, para nada, por ninguém. Havia o café amarelo ali perto. Eu tinha já estes quase tantos anos. Acampei na mesa junto ao aparador (guardanapos dobrados, talher, cesto da fruta, palitos, tintos e brancos, galheteiros, pratos, sal & pimenta, extintor). Tirei a única certeza. O caderno. Então, o homem da chuva continuou.
Era um homem vestido de escuro na tarde de chuva. Ele procurava. Não estava no lixo o que procurava. Estaria alhures. A chuva desalmava até a respiração, a água babujava nas sarjetas entupidas, niquelava nos pátios abandonados o folhame dos plátanos senhoriais, fazia do ar uma grade sem limite nem sentido. Era o céu desabado, toda a tristeza do mundo. O homem saltou o muro da casa abandonada, dirigiu-se ao plátano maior e remexeu a terra. Não encontrou o que procurava. Ali o deixei por instantes.
No café amarelo, atento às moscas refugiadas, cocei a mão esquerda com a direita, ouvi os impropérios do rapaz reformado aos 27 anos por pancada mental, dei-lhe um cigarro e agarrei-me ao caderno enquanto o desespero me colava à boca a fita de goma do costume. Não dei atenção ao desespero. Um homem é um homem.
Um homem vestido de plátano procurava uma coisa na chuva. Saltou o muro, abandonou o quintal abandonado, foi pela calçada foi pela calçada foi pela calçada até que chegou à parede onde luzia a santa do mesmo nome. Era um nicho ogival onde tinham embutido a santa. Duas velas ardiam dentro de água: os olhos do homem escurecido. O homem olhava a santa, que olhava o homem. Tremendo duelo de almas.
Nessa altura, eu procurava moedas nas calças. Estavam no casaco. Fizeram-me a conta, paguei e saí para a chuva que aluminiava o mundo como o mundo era essa tarde. Não foi assim há tanto tempo. Já era, suponho, o futuro.
O homem tinha deixado a santa entregue ao martírio afinal benigno da solidão. Ele era agora uma interrogação oblíqua parada em frente à montra da loja dos rádios. Olhava os aparelhos japoneses. Não era isso, nem a santa, o que ele procurava. Era outra coisa.
A mesma coisa me esperava à saída do café amarelo. E era a vida. A vida era tarde, já então. Esquerda ou direita, igual. Subi a calçada de pedra subi a calçada de pedra subi a calçada de pedra até que cheguei ao bar de putas. Estava fechado. Quando um homem vai a um bar de putas e o bar de putas está fechado, alguma coisa se desacertou sem remédio na vida desse homem.
Esse homem já não era perante os rádios, tinha seguido pela tira de terra e cacos de tijolo que leva à via férrea. Por aí eu fui.
O homem esperava o comboio. Tinha desistido de procurar o que procurava. Toquei-lhe com a mão direita, a que escreve, no ombro do mesmo lado. Ele virou-se:
- Finalmente. Andava à tua procura.
Disse ele.
Disse eu.


(Escrito para o sítio na net: www.liberal-caboverde.com
na tarde de 27 de Setembro de 2005, em Pombal.)

23/09/2005

Regresso a Casa pela Padaria

É a hora de arrumar os lápis no saco.
O ar é uma ourivesaria.
A brisa é.
Uma pátina de sombra azula os relvados e as hortas.
Um homem caminha direito à padaria.
Um saco de papel, pães pequenos e mornos dentro do saco.
Beber um café antes de retomar caminho.
O senhor dos lápis toma o seu café suburbano.
Escolheu a mesa da montra.
Dá para a rotunda do hipermercado, mas também para a serra.
Pinheiros mansos, muito altos.
A brasileira de serviço sorri trocos.
O senhor do jornal desportivo resmunga sporting sporting.
Meia dúzia de horas para, de novo, fazer por merecer o mar do sono.
A ver.



Tondela, entardecer autobiográfico de 22 de Setembro de 2005

Rol para o Lavadeiro

Castanheiro grande liberando ouriços.
Erva estiada sulcada por gatos transterrenos.
Couves carnudas com seu quê de maternal.
Lenha pronta para a machadinha.
Som raspante da carrinha do peixeiro.
Da obra ao lado, inofensivas obscenidades pedreiras.
Estatismo do muro.
Sardaniscas rápidas.
Céu de esmalte coalhado de nuvens.
Veias da parra translúcidas de sol.
Eternidade desde que se escreva: “Eternidade”.
Valor da respiração.
Sapatos de borracha nos pés do louco.
Vontade de versos.
Assador frio escamado de sardinha.
Roupa no varal sem corpos dentro.
Sexualidade apaziguada.
Cabelo e unhas crescendo: filme mudo sem piano de fundo.
Zoeira de sonhos.
Limoeiros carregados de ouro ácido.
Visão do vizinho lavando o carro.
Gato do vizinho dormindo sob a laranjeira vizinha.
Respiração do mesmo gato.
Valor da respiração do gato.
Paciência do castanheiro.
Aldeia.


Tondela / Botulho, tarde de 22 de Setembro de 2005

22/09/2005

Conversas Cônjuges - 2


Este gajo morreu d'álcool antes dos 40.
Quem?
O Dylan Thomas.
Nunca li.
Não está nos tops.
Qu'é que queres dizer com isso?
Só digo. Não quero nada.
Estúpido.
Estúpido, não, que eu já li Dylan Thomas.



Tondela, tarde de 21 de Setembro de 2005

21/09/2005

Conversas Cônjuges - 1

Devíamos ter tido filhos.
Nós temos filhos: tu tens um, eu tenho dois.
Eu digo um com o outro.
O que está feito, está feito.
Eu digo: o que devia ter sido feito.
Não vás por aí. Sofres com isso?
Não é sofrer. Às vezes, parece-me que seria como ter escolhido um gato.
Ou um canário, não? Filhos, não é como bichinhos.
Acho que sabes o que eu quero dizer.
Não. Só sei o que dizes. Não o que queres dizer.
Tens tanta razão como crueldade.
Crueldade? Exagero.
Não estamos mais novos.
Li numa revista que é uma questão de espírito.
Essas revistas são traduções feitas por estagiários jovens.
Não interessa com quem fizemos os filhos.
Não?
Não. Desde que os tratem bem quando lhos levamos.
Fácil para ti.
Não, nada fácil. Só que não vivo emperrada no passado.
E eu vivo?
Às vezes, até quando é do futuro que falas me parece que é no passado que estás.
Gostava de ter tido filhos contigo. No passado.
Ai senhor.

Tondela, tarde de 20 de Setembro de 2005

20/09/2005

Redondilheta Maior Cujo Sentido Não Tem Mas Também Não Se Perde Nada

Indulcíngua tenebris
Compostura santiaga
Masticásia se abris
Dulce palha aziaga
Gorda borda oceatlân
Quânti ting'assemetriz
Jeito d'or ou de titã
Falha a filha meretriz
Dum dum dá não dá nem deu
Dum dum fá nem tu nem eu
Silv'ajuda como for
Seu direito prescreveu.
O mais rico já morreu.
Olh'arranj'um novo amor.



Ficton, Tondela, tarde de 16 de Setembro de 2005

19/09/2005

Colecção Confessada

Alguns seres humanos partilham com os mais belos animais a nebulosa graça da inocência.
Tão inocente inocência é ela, que dela nem mostram consciência.
Por mim, antes assim.
Eu colecciono visões e epifanias.
Animais propriamente ditos, raramente.
Comigo, é mais gente.



Ficton, Tondela, tarde de 16 de Setembro de 2005

Tony Carreira em Tondela

Quem sendou já o desespero - pode bem, momentaneamente a salvo dele, esplanar-se ao sol de Outono, ir enxotando as moscas com o braço-cauda, evocar o desespero outro, o idem lúcido de Fernando Pessoa. Por exemplo, de Fernando Pessoa. Pode bem fazê-lo - desde que vá mantendo-se a salvo.

ao conjunto fictício das estrelas
o esplendor nenhum da vida...
- como aconteceu, algures, numa das tantas vidas escritas do poeta finalmente defunto em 1935. E como me aconteceu ontem mesmo, noite meã de Setembro 2005.
Era na feira. Pipocas multicolores, farturas gordas que rechinavam nos mostradores, ébanos africanos, marfins coloniais, cachorros, bebidas, cêdês, fios, missangas, camisolas, crianças alheias; balões pesados como bolas de bilhar, emigrantes descapotáveis, imigrantes encharcados de aguardente vínica, filas e filas de automóveis com os rádios a gritar, raparigas casadoiras de chinelas escolhidas a dedo, rapazolas tontos mascando pastilhas de boca aberta, cinquentões de rabo-de-cavalo usurpando um look hippy-happy, aparelhagem sonora no máximo, lá em cima o céu anulado pela feir'aqui; matronas agrícolas com cadeirinhas de campismo, homens endomingados com fatos de sábado, moscas agudas nos antebraços recamados de cabelo português.
No todo, uma tão notória como geral insuficiência psíquica. Uma estética descalça, uma alegria de calendário, uma euforia de bifana. Mãos terminavam em copos de plástico e de cerveja. Empurrões sem peculiar erotismo. Algumas pisadelas exclamadas. Centenas de cus. Famílias completas. Varandas de em torno acolchoadas de vasos com as únicas plantas horríveis do mundo. Os autarcas louvadeusando passoubens. Artistas de informática com projectos de cerâmica sanitária. Exposição de ferragens, carpetes, doçaria, vitela no forno, cozinhas de fórmica demonstradas por estagiárias insufláveis, o móvel à medida da sua sala à medida da sua vida, os destinos individuais tracejados pela fita métrica da fadiga de viver, a banda filarmónica com os bombardinos casados à frente e as solteiras de clarinete atrás, dez e meia da noite.
Luzes, câmara municipal, acção - às onze e sete, senhoras e senhores, pela primeira vez em Tondela, Tony Carreira.
Ficton, Tondela, tarde de 16 de Setembro de 2005

16/09/2005

Uma Gaja Boa

Uma mulher longa como uma armação gradeada – vertical até à cintura, horizontal até onde as rótulas cedem verticalidade às tíbias, que desistem no chão em prol dos pés horizontais também longos.
Uma cabeleira frondosa é o mais do cartaz. Farta cabeleira, que sobe dos ombros até à zona onde se emaranham o olhar e os pensamentos, passada que foi a linha diagonal da boca que pensa, por mordaz.
Lábios finos, dentes largos. O sol da tarde, que as cortinas prensam como a uma torrada, legitima a blusa rarefeita, de onde pomam os dois lácteos hemisférios à sorrelfa entrevistos em convívio de renda elástica.
Boas pernas separáveis: longitudinais, ossudas sem excesso de magreza, tudo tendão, gordura nenhuma. Unhas fortes, que o verniz visitou de branco, sobre a mesa como na ponta das sandálias de perfumado couro.
(Deixam-nas andar assim, e depois elas incandescem o ar da respiração, tornando oftalmológica a dificuldade de viver. Um homem olha, uma mulher vê.)
Levanta-se sem esforço, por pura articulação de planos. A pele, muito ginástica, ginga o esqueleto fibroso no sentido, mais ainda, da altura. Condescende moedas no balcão, mulher de contado consumo.
Mineral, aduanária, pontuda, capital, frutívora – sai de cena, deixa nódoas de luz no soalhado, respiga centelhas de ouro à porta de vidro e deixa a preto-e-branco o cartaz dos gelados, qu’inda até há poucochinho vos juro que era a cores.



(Escrito para o sítio na net: www.liberal-caboverde.com
na tarde de 15 de Setembro de 2005, em Tondela.)

15/09/2005

(Mais) Histórias de Portugal
















(Ó Toninho, ficas aqui à esquerda que até te lixas!)




Salazar, o António de Oliveira, foi, enquanto pessoa, uma essência murcha, malsã e incompleta. Enquanto político, foi uma pedra de gelo num cálice de sacristia. A mitomania do Herói de Finanças, do Oiro Arrecadado na Palha do Colchão – não cumpre. De que vale o ouro no cofre quando o analfabetismo e a piolheira grassam no povo?
Lá fora, o teutónico Hitler e o macarrónico Mussolini arengava de varandas de mármore às massas ululantes, egóticas e vis. Franco, o galego envergonhado, garrotava a Espanha de sacro hissope nas mãos tintas para sempre de sangue. Entretanto, os norte-americanos calculavam xis de liberdade com ípsilon de estratégia.
Veio o 25 de Abril para cá. A política tornou-se parecida com o futebol. Bandeiras, maralhal aos berros, leitura nenhuma, MRPP e MIRN. Egrégios avós. Nobre povo. Ou pobre novo. Mais LCI, PCP(R), MÊS, PRP-BR, OCPML, LUAR, MDP-CDE, PS(P), PCP, PPD, CDS. MFA. SUV. FUP. SLB. SCP. Siglas cegas.
Sá-Carneiro voou, mas poucochinho. Mário Soares engordou, mas muito. Alegre fez versos alegres, bardo oficial. O padre Max é morto à bomba, pergunte-se ao cónego Melo. O professor José Hermano Saraiva transita do Antigo Regime para a Dieta Nova, com estágio no Brasil dos coronéis. O Pacheco Pereira também transita. A Zita espera que a coisa Seabra. Evanescente, Paulo Portas tirita olores de santidade, pagando submarinos com a caixa de esmolas dos bombeiros. Tarde, o País arde. Trinta anos disto.
O Moita Flores escreve novelas para a mulher e quer ser presidente da Câmara. O careca do Benfica já é. O filho do Soares também quer ser, mas decerto por birra. Cinco gueis aparecem na TV para um concurso popular: cinco novos presidentes de autarquia em potência?
O povo não se levanta mas ri. Ri de si mesmo, mas não sabe. Fernando Rocha é o génio pós-modernista, perdão, pós-Zé Maria. Teresa Guilherme, de alargados maxilares, dentifrica 1-2-3. O Goucha sacode-se, ungido de velhas marretas que, em directo, sujam as próteses dentárias com queijadas de Tentúgal. O Rodrigues dos Santos arrecada o Prémio RTP do Grande Comunicador RTP. As rádios-rebanhos seguem o pastor-playlist. Telemóveis para todos. O Jardim da Madeira continua vivo. A cidade de Pombal também não.
Portugal, allez!



Tondela, 23 de Agosto de 2005

O Onicófago - II - Corpo, Casa da Noite

(Segundo texto d'O Onicófago. Mesma explicação, se a há. Com esta ressalva: entre o I e este texto, mudei de casa. De vida, não.)



Corpo, Casa da Noite

Convém, é claro, aceitar que o corpo que levamos (eu-o-meu, tu-o-teu) disponha de interiores como uma casa, mesmo que fechada. Chamar a essas salas nomes como alma, mente, sonho -pouco importa. Mas, cá dentro, recusar isso, negar com vidência a evidência alheia. Ou seja: postular que o corpo é maciço, que é maciça a vida dele, que entre ele e as estrelas não há distância possível. É preciso esperar a noite e a pouca poluição para que as estrelas se tornem visíveis, eu sei. Mas sei mais e muito melhor que isso: sei que me basta fechar os olhos para vê-las: lesões luminosas no verso das pálpebras corridas como persianas de carne.
Por cautela, vesti uma camisola sobre a camisa. Mas a humidade da tarde de Setembro atraiu a sede do sol, e o sol abriu-se como uma promessa. Depois do almoço, a semana varreu da rua as pessoas. Só os ociosos ficaram, fiéis para sempre às esplanadas mobiladas de plástico branco e vinho tinto com gasosa. Já sofro mal este mundo, que foi outrora o meu e que agora, pela insensatez da literatura, entrego ao silêncio estridente da tinta de caneta. Verde. A tinta.
Linhas e linhas verdes num caderno de capas amarelas. Também o ócio é amarelo. Na esplanada de plástico, sei que o nada existe. Que o nada não é a ausência das coisas, mas a ausência de quem as conheça. Nesse sentido, os vivos vivem no nada dos mortos. O que existe, é o que sobra do nada: a duração (não a adoração) da vida, os ardis da poesia, a dimensão paralela que é a a linguagem. Enquanto não telefono ao Jorge a saber do carro velho e branco que vou ou não vou comprar-lhe, a tarde presta-se-me à usura de uma suave amargura - a minha, a do meu corpo caçador de meninas babadas que se esquecem até de estar vivas na floresta. Um cavalheiro de camisa branca sem gravata tenta sacar um relógio de pulso de dentro de uma espécie de caixão de vidro vertical. Injecta uma moeda de cem, um manípulo acciona um braço eléctrico de três garras que desce e persegue o relógio. O relógio foge como um ratito. Não é desta que o desengravatado tem o seu prémio. Vocifera baixinho, olha de lado, descobre-me dobrado sobre um caderno de suspeitas capas amarelas, vê que estou a olhar para ele e rosna-me:
- Que está você a olhar para mim?
- Estou a escrevê-lo. Agora, você vai desaparecer na penumbra do café - digo-lhe.
O homem desaparece na penumbra do café.
Já me recuso a anunciar toda e qualquer totalidade. Nenhuma vida é total, como nenhuma morte o é. Precisamos dos outros para, ao menos, entender a totalidade. E os outros não estão aqui para nós, para mim. Andarão ou não por aí. Isto torna-me fragmentário. Hoje, ao menos. Depois, há o Tempo. A hora da tarde, o peso financeiro da semana, a estepe do mês, o horror de cada ano contado para trás e para o fundo.

O homem sem gravata desaparece na penumbra do café, eu saio para a canja da noite, que preparo num rés-do-chão exposto à filosofia dos operários sem filosofia. A casa é húmida. Vivo sobre as brasas do lugar: cadeiras forradas de fórmica, cinzeiros de vidro martelado, uma televisão pequena, um estante com livros e cassetes, uma panela para a canja. Um telefone, de que me chegam às vezes as vozes de mulheres sem matrimónio e sem alternativa. Não me custa pensar que o meu nome seja, mais que uma risca sideral, a última linha das agendas telefónicas dessas mulheres.
Mas falava da totalidade. Já a não reconheço senão como abstracção, imagem mental criada como impotência, pela tua e minha incapacidade de aceitar a fragmentação, a dispersão, o farrapo de cada vida. Granadas rebentadas, espalhamo-nos aos ventos. Inútil incinerarem-nos: já o estamos. Essa ideia de felicidade para sempre: uma casa para morar, um carro para guiar, uma carreira para se contar nos beberetes: pois sim, pois não, pois a ver vamos.O Jorge atende o telemóvel. Vai a caminho de Mangualde, impossível vermos hoje o carro branco, para a semana será. Ou não.
A canja ferve, leio a biografia de alguém. Quem me deu o direito de entrar na vida de um morto? Os homens são assim: escondem a vida, como Kafka, mas não encontram maneira de fugir à lâmpada indiscreta dos necrólogos. A lâmpada da cozinha emana um amarelo doentio, uma luz de cansa-olhos. A chama do fogão parece uma rosa azul. A cafeteira grande de aquecer água para as abluções repousa sobre o tachinho de arroz branco com línguas de cebola. Quando o animal doméstico se fecha em casa, o corpo rejubila de tão maciço. A minha vida e a minha morte escrevem obscenidades religiosas nos azulejos das paredes.
O telefone toca na casa do homem verde de capa amarela. É uma mulher. É a voz dessa mulher. Imperatriz das suas pequenas coisas, deusa do seu automóvel escuro e veloz, senhora da sua pele tensa como de um tambor educado. Mulher de cheiro vegetal, telefonadora do homem isolado, verde, amarelo. A canja está pronta, ele convida, ela recusa, vão encontrar-se à hora a que o rio atrai os primeiros frios da estação, essa hora a que as pastelarias morrem de cansaço. Hão-de falar do trabalho que dá procurar trabalho. Ela está desempregada, ele ganha pouco, bocejam antes do amor, são felizes sem totalidade e sem alternativa. Mas mesmo isto não interessa. É coisa comum. Milhões de pessoas, milhares de cidades, tantos telefonemas, tantas noites: não interessa.

O Onicófago - I - Dolores, Mãe de Kafka

(Noutro caderno, uma escrita já remo(r)ta. Era decerto o ano 1999. Eu vivia virado para uma colina de pinhal onde uma casa velha e desabitada se me mostrava em plena glória acabada. Perto, um prédio de apartamentos nascia grossamente. Já não vivo onde vivia. O texto aguentou-se, calado, numa das gavetas que, teimoso, vou reabrindo. Como quem reabre feridas. Enfim. O livro inacabado, talvez para sempre inacabado, chamava-se O Onicófago.)


Dolores, Mãe de Kafka

Casa no monte.
Os habitantes saem de manhã cedo, voltam à noite.
Voltam à noite com a carga de cavalos das horas.
Comem, deitam-se no escuro.
Ao contrário do que acontece com os olhos, podemos controlar os braços e as pernas.
Os olhos produzem o olhar, que se serve de nós para manter a realidade no sítio.
O sítio da casa é o cimo de um monte pequeno.
A casa é verde, mas o tempo e os temporais têm despido a casa de a cor verde.
Sobra uma pele de estuque.
Os caixilhos das janelas nunca foram mudados.
O vento canta bailes.
Os habitantes da casa verde não ouvem.
Crianças (três). E os adultos: uma avó que geme, o pai seco, a mãe.
Sopa, a caixa do pão em que o pão se confunde com a madeira, o cubo de toucinho que açula as moscas.
Ninguém espera na casa.
A espera não é uma ciência.
Bocados de lenha parecem cães deitados.
A criança mais antiga balouça-se no carro de mão.
Baba filiforme assinala o sítio da boca.
Olhos de sabão azul. Pele de tanque da roupa.
A mãe está prenhe.
Saem muito cedo.
O pai pratica alvenarias, carrega caixas de fruta no mercado abastecedor.
A mãe leva as crianças para a cidade. Todas pedem.
A avó fica. Só a avó conhece o que é a casa de dia. O sol etc..
A realidade é enorme, toda minuciosa nos aparece.
O tempo não é de semanas, neste sítio. É feito de ossos que crescem, estalam, adivinham a chuva.
O céu é a cave das crianças adormecidas.
(O céu jaz sob nós na infância, escreve Wordsworth).
Cheira a pés e ao cubo de toucinho.
A ureia da avó substitui o ar.
A lenha incha e seca, apodrece e nasce.
A baba da menina semeia caracóis no panasco.
O vento cantor enfunaria o desespero, se o desespero fosse alguma coisa de comer.
O pai achou um livro no lixo.
É a Lolita de Nabokov.
Rasgam as folhas do livro para limpar o nó cego do corpo.
No catre conjugal, embora raro, o pai e a mãe discutem economia (quantas moedas recolheram do dia), sociologia (quantos automóveis e quantos homens ricos viram passar), obstetrícia (a barriga dela range como uma igreja), literatura (o que a mais velha disse a sonhar).
Um coto de lápis de marceneiro é encontrado pela mais velha.
Atira-o ao lume.
O pai acode, tira o lápis do lume.
Levanta a mão queimada para bater na criança.
A criança não se encolhe.
Os olhos de sabão azulam a cara do pai.
O pai recolhe a mão.
Devolve o lápis à menina.
A menina atira o lápis para o lume.
As horas são as flores da casa.
O lume solfeja a passagem.
A duração, não a adoração.
Cristo é só uma história da avó.
Partiram o queixo ao pai numa rixa de desempregados.
Havia uma greve. Ele precisava das moedas.
Então a mãe começou a levar as crianças.
A cara pulmonar ajudou-as nos primeiros dias.
Mas só os pobres dão esmola.
Se os pobres estão desempregados, não dão.
Há um julho qualquer nas famílias: um tempo dourado, uma maçã encastoada na memória, uma película de naftalina que evoca a História e os Antepassados.
(Não. Não creio nisto.
Não espero. Não sei.
Não gostaria de saber.
Escrevo contra a vida.
Tenho frequentado restaurantes.
Salões de dança.
Conheço a nossa vida de pêssegos:
um caroço de cianeto é-nos o coração.
Hoje, tenho a história da casa no monte.
Amanhã, tenho outra história.
Um dia, não.
Espero. Sei. Creio nisto. Sim.)
A noite ensina-lhes o regresso.
As crianças fazem pequenas corridas.
A mãe leva a mão à barriga, onde outro coração.
O Nabokov vai a meio.
O pai lê enquanto tudo se esvai: o corpo, o tempo.
Guarda o livro.
Mas as crianças e a mãe também gastam da literatura.
De modo que a história de Lolita tem sobressaltos que o pai colmata com a imaginação.
Habituou-se aos nomes estrangeiros do romance.
Parecem os nomes da fruta estrangeira sobre os ombros dele.
Bebe vinho uma vez por semana.
(Eu sei, não há semanas no tempo desta casa.
Isso foi o que eu disse.
Não acreditem em tudo o que digo.)
Regressa a casa como um imperador.
Sacode dos ombros a mosca do nada.
É dono do seu corpo. É dono do corpo da mulher.
As crianças ouvem-nos.
É uma ginástica mortal.
Ele pincha sangue e leite nela.
Ela recebe as marés.
Não é o amor da tradição. Isso, não.
É só um homem cravado numa mulher.
Aqui sim, há espera.
Ela espera que ele se acabe.
É como um ataque cardíaco.
Um estremeção, um ter subido aos níveos despojos da montanha, esse queijo masculino que inicia as almas do mundo, os trabalhos do mundo, as formigas do mundo.
O vinho está na semente do leite.
As crianças ouvem.
A avó sabe.
(Dispomos de todas as palavras erradas.
Não controlamos o olhar.
O produto dos olhos revela-nos: cloreto de sódio, literatura, uma casa no monte, o abominável homem das neves, a sardinha descomunal do Loch Ness, o prestígio da gabardine de couro negro, a rapariga de gaze que vi na tarde de comboios, os amigos que alimentam as toupeiras da consolação, esta vida demorada, esta tarde de comboios, esta tarde, hoje, esta casa, este monte, o homem cravado na mulher, a tristeza que sucede ao leite e antecede o sangue.)
A avó aparece morta como antes aparecia viva.
Levam-na numa caixa de madeira, como se ela fosse pão, ou fruta.
Fica dela o rumor da ausência, outra maneira de estar.
A Lolita vai nas últimas páginas.
O pai ganha mais moedas, bebe mais vinho.
Fechadas as sombras do corpo-prisão.
(Wordsworth, Yourcenar - agora sei.)
Oh como cresce a mais antiga das crianças!
Torna-se na mais nova das mulheres.
O perigo ronda. Ela há-de ser fértil, apesar do fio de baba que a desce.
Os flancos já crocitam, já se lhe amorangam os mamilos.
Lolita, Lolita.
(A intempérie no caldo de tormentas do meu coração.
As moscas esquadrilham os pés adormecidos dos meus mortos.
Cresço para ser uma árvore lúcida.
Colo a alma à parede para que um dia ma leiam.
Consulto no espelho a extensão e a profundidade da ferida chamada olhar.
Pestana diurética de quem se comove com facilidade.)
A rapariga baba-se no escuro da floresta.
O lenhador ia passando. Viu-a.
Olhou, roedor, em derredor.
Toma a menina, está desde sempre à tua espera.
Não menina já, não ainda mulher.
O pai há-de morrer numa rixa de bubas.
O tempo come e bebe o tempo.
O tempo defeca o tempo.
Quando Dolores parir, o tempo come o tempo, que é como os olhos, que não podemos controlar, como fez Kafka, parido por esta menina nove meses e tal depois desta história.

Segunda-feira de manhã, regressava de comboio a Pombal. Vinha de casa de minha mãe, onde passara um domingo entregue aos ardis da nostalgia. Na carruagem, seguiam apenas três outras pessoas: duas mulheres que conversavam de doenças e um idoso que lutava contra a desordem das folhas do jornal. A minha alma viajava de pé, inquieta pelo receio premonitório de filho quarentão que deixa só em casa uma senhora de 80 anos.
E todavia não era uma hora precária. A glória democrática do sol fazia coruscar a pele das mãos, como se as tivesse de ouro. O comboio cantava como um escuteiro, as duas mulheres ladainhavam tranquilamente as respectivas hipocondrias, eu olhava os campos de água com que Novembro imita terrenamente o céu e o velho homem, tendo desistido de ordenar o Diário de Notícias, limpava as unhas reformadas com um canivete de cabo de madeira.
Foi então que do bolso do casaco me saiu um pipi de mensagem escrita. Saquei distraidamente o telemóvel. A mensagem era do João Pedro, pelo que me preparei para sorrir à esperada leitura de um dos amáveis insultos do costume. Não sorri. A mensagem era: “Morreu o Tó Mas!” Assim, sem mais nem menos, com a pureza lapidar da desgraça.
Toda a gente sabia que sim, que a doença do Tó era sem regresso. Mas mesmo assim. De repente, foi como se o meu comboio tivesse entrado num túnel. A sombra pariu o seu ovo negro. O sol perdeu a glória, a água alastrou pelos campos até não sobrar vestígio de terra, casa ou árvore. As aves debandaram dos céus agora baixos, mortais agora.
Sozinhos, valemos nada. Valemos os amigos que alcançarmos merecer, a família que soubermos manter, os amores que pudermos cativar. No desaparecimento de um amigo, passamos todos, cada um por si, consigo e em si, a valer menos. A morte de alguém como o Tó desbarata-nos em remédio. Empobrece-nos sem esperança. E, estranhamente, purifica-nos, porque nos revela como verdadeiramente somos: animais nus acossados pela evidência do malogro.
Desci do comboio de joelhos desconjuntados pela incerteza. Aonde ir, na manhã acabada? O meio-dia subia o escadote solar, indiferente à má notícia, mas as casas, os cães, as pombas e os pombalenses pareceram-me mais obscuros que de costume. No jardim, a brisa não catava à palmeira a caspa de pardais de outros dias: os dias de quando ainda o Tó. Procurei o alento de outros amigos destroçados: o César e o Arlindo, entre outros que a tarde me permitiu somar à resignação.
Terça-feira, 23, teremos todos estado no funeral. De olhos molhados como campos de Novembro, haveremos de ter conciliado a saudade viva com que, ao menos, se torna possível negar à morte a estupidez da sua vitória inútil.
E, no regresso de lá de cima, apaziguados finalmente pelo sono peremptório de tanto mármore, cada um de nós, Tó, terá retomado o comboio que a cada um de nós levará de novo até ti, um dia democrático e solar.




Nota: este texto já tinha entrado neste blog, mas sem foto.
Hoje, lembrei-me do Tó. Era um homem bom. Só isso, que é tanto: um homem bom.

Matt Marriott


Não é tanta, a infância.
Não o tempo que foi.
É mais a distância.
Não mata, Matt, mas dói.







Imagem: © Tony Weare

Texto: Tondela, tarde de 14 de Setembro de 2005

14/09/2005

Telefonemicama

A hoje velha que
ontem me pariu
telefona-me.

- Então, filho.
- 'tão, Mãe.
- Como vais?
- Bem.
(Mentira: vou pela poesia e pelo teatro.)
-Deus te ajude, meu filho, e o diabo a quatro.
(Mas Deus é verso para uns. Para outros, drama.)
- Boa noite, Mãe. Vou para a cama.


Augaciar, Botulho, noite de 12 de Setembro de 2005

A Figura Feminina e Outras

1

A missão secreta é merecer, em pleno outono, o inverno que talvez venha.
Merecê-lo entre casas de pedra e ruas de ar negro.
Ir sendo um homem na construção desse conventual inverno eventual.
Num lapso quântico, a fulguração do fontanário entre o canavial e as alminhas.
Um prato de cobre na face da árvore.
Uma árvore tem quatro lados e tu só podes um.
A árvore amestrada, assustada, tu seco, o rio seco, tu assustado sem mestre.
A enumeração fluida, minha velha amiga.
A tristeza sumptuosa - vermelhágua incolorosa.
Deixar tranquilo o dispositivo sexual.
Ser apenas um homem que trabalha o seu mesmo merecimento.

2

A figura feminina
de astro feita alabastrina
convoca o rumorosmos
cosmicalada.
Cadecadente, imperial.
Fulgurosa, astral.
Masturbada opalina:
a figura feminina.
Masculastra, meteorológica,
solar, lânguida, pluviológica,
ginotrópica, antropológica.
E com seu quê d'inda menina?
A figura feminina.

3

Penso pelo cabelo.
Dunas pisadas de erva incomestível.
Ansioceana vizinhança.
Um meio passo de dança.
Agora é que é de ir à praia.
Num saco de pano
um pão, um peixe, uma saciedade:
devolver tudo ao mar,
ficar careca.

4

Eu não sou brasileiro.
Eu não digo "falar" quando é "dizer" que dizer quero.
Dizer é outra coisa que falar não diz - só fala.

5

O meu pai comprou-me Chomsky sem saber, nem eu, quem o Chomsky era e dizia.
O meu pai comprou-me tudo.
Mas foi de borla que me deu o dia.

6

Bolos secos travados no sabor pelo limão.
Água de chá, morna no coração.
O pardalibertado, no quarto do ano 1981.
Este ano, outro inverno
- mais um.

Augaciar, Botulho, noite de 12 de Setembro de 2005

13/09/2005

Uma Coisa Assim - Conversas Partidas de Café de Aldeia

(De secretário fiz a uma roda de homens que me não contrataram nem conhecem. Foi num café de aldeia. Era de noite.)
...


- As células, tázaver?
- Isso esmorece.
- O mais bonito é saber, na sexta-feira.
- Sábado, tinha um casamento.
- Mas a gente ser operado, a gente tinha de estar sempre em cima dele, com aquele ritmo cardíaco não é fácil.
- Ó Jorge, uma máquina de cortar cabelo.
- Julgas que ele não sabia que ele ia para ali?
- Se vier cá o meu primo, vais ver.
- E então.
- Devagarinho.
- Ó João, ao meio-dia.
- Vai mais uma rodada, eu não bebo mai'nada.
- Até logo.
- Anda lá, Espanhol.
- Paga metade que eu pago a outra metade.
- Dois e setenta.
- Ainda se dissesses qualquer coisa.
- Do momento que toca a família.
- Isso digo eu: mulher e filho.
- Não tem nada.
- O meu genro chegou com o carro com a luz nos mínimos, lá em cima.
- Portem-se bem.
- E eu também.
...

(Os senhores do café falam no café. Noite alta. Eu ouço e estenografo. Eu estou calado. Nada do que não digo se aproveitaria. A TV ladra cores altas. "Impensável", diz a TV. Vou tentar ouvir mais um pouco, só mais um pouco. Nem parece que se está só, é um exercício muito higiénico.)

- A minha mãe, descobriram-lhe uma infecção urinária.
- Como é que sabem?
- Aquilo não é nada.
- Mas já lhe descobriram mais alguma coisa?
- Se fosse só para o lado do bom, mas a gente só fica descansado no fim de descobrir.
- Agora antes de nascer já se descobre umas coisas.
- Não é como eu.
- Posso estar muito mal, mas espaços, mas espaços.
- Uma coisa assim.
- Então quanto é que se deve?
- Metade de dois e setenta é um e trinta e cinco.


Botulho, 23 de Agosto de 2005

Colagem Portuguesa

Com versos "ipsis verbis" dos poetas portugueses indicados infra, esta bela quadra:


Como as cousas qu'hão-de ser
Logo dão no coração
Eu mesmo a mim mesmo estranho
Com as espadas na mão


vv. 1-2: Garcia de Resende
v. 3: Bernardim Ribeiro
v. 4: Garcia de Resende

Petisqueira Clássica

Os homens têm sessenta anos, têm VI mil anos, pouco mais ou menos.
Comem peixe frito ao balcão, que é de zinco.
Bancos de pé alto fingem-se de mármore, mas eu reconheço a baquelite até de olhos fechados.
Um canto da petisqueira é ocupado pelo assador: ferro morno e negro, a esta hora da tarde.
Pacífica hora: a décima-oitava do dia.
Setembro cumpre o que prometia: uma luz flava oura a vida, uma luz pacífica de merenda.
Mais homens entram para acrescentar a casa.
Vêm também em busca de peixes.
Cena quotidiana, toda clássica.


Viseu, 2 de Setembro de 2005

11/09/2005

Confeitaria Setembro

É um fim de tarde como alguns que vivi na moça idade. Não frio, mas fresco. Cinza plumada de umas poucas palhetas de ouro, lá longe. Setembro ténue para uma vida crepuscular. Café e cigarros numa confeitaria que diz "TRESPASSA-SE" na porta de vidro. Quase ninguém neste mundo. No outro, o das ruas, uma suave agitação comercial de ante-fecho de lojas: últimas compras, últimas vendas do dia.
É a hora dos cinzanos na velha vila (não consigo chamar-lhe cidade, embora o seja por decreto). Tenho um livro de Machado de Assis, limpei os óculos, reencontrei a caneta preta de que andava perdido. As coisas compõem-se.
Andava farto de Agosto, cansado da fornalha omnipotente, exausto por nada. Agora, devolvo-me este sossego serôdio de batedor de confeitarias em trespasse. Algumas moedas na algibeira: douradas umas, outras castanhas. Uma impressão na garganta, que alivio com ríspidos regougos. Uma rapariga com um balde verde na rua.
Imagino um rio que não vejo daqui. Vai para o mar, como eu iria também se pudesse mais que imaginar. Bordado de salgueiros diagonais e de pedras deitadas, é um rio bom. Absorve a luz cinzelada, faz dela uma faca dinâmica, uma folha de aço não matadora, antes sim avivadora de olhos.
Imagino a minha cidade natal (essa sim, cidade) sulcada por esse rio, essa lâmina benigna. Transporto-me no tempo, devolvo-me a moça (c)idade. Vivi perto desse rio este entardecer. O mesmo crepúsculo nas mesmas margens. A ponte? No tempo. No tempo crepuscular, a ponte é uma dedada de contracor. Automóveis mais lentos que pessoas - os meus mortos e os alheios vivos cruzam-se na ponte, cumprimentam-se surdamudamente, hologramam a visão cinemascópica, passam infinitamente como outros tantos rios.
Embalo belo, esmerada esmeralda - escreviver. Quietas hostes, adormecidas legiões, uma mala encarnada de cartão juncada de fotografias de bordos ondulados com o carimbo do fotógrafo no verso.
Um tractor carregado de lenha trota na calçada: há já quem se aprovisione de lenha para o inverno. Antecipo esses invernos individuais que não vejo daqui: as mulheres aquecidas nas cozinhas de pedra amanhando coelhos; os gatos, saciados de vísceras mornas, derramados ao lume do lar como trapos de flanela; as panelas negras aferventando a galinha gorda; os homens que chegarão do trabalho e dos cinzanos.
Nada disto é comigo, excepto por magia: imagino - imagi(a)nação - letrinhas pretas de caneta reencontrada. Atravesso setembros. Não é difícil. Já não é difícil. Um homem aprende a ser uma imagem de homem, um relógio de sol, um varredor de cinzas.
Que será o jantar? Peixe do rio não pode ser, que longe ficam ambos, rio e peixe. Sopa de tomate, quero imaginar, e depois peito de vitela com massa, doce de laranja, café. Água da fonte, que a da rede anda química de todo. Uma fatia de pão de segunda, uma lâmina de marmelada. Depois, sendo já noite, de Machado de Assis nos joelhos e ao rés do candeeiro, esperar o canto do vento nas laranjeiras vizinhas. O canto do vento nas laranjeiras vizinhas e o canto rouco dos cães à Lua molhada, à humana Lua que do alto nos vigia a inocência, o breve cromo do crepúsculo colado de costas à caderneta da idade, a esperança de um bom trespasse para a senhora da confeitaria.
Tondela, entardecer de 9 de Setembro de 2005

09/09/2005

Casas desocupadas

Gosto de casas desocupadas.
Ruínas que deixam ver o interior despojado do mais efémero adereço: a humanidade.
Onde era a cozinha, o diagrama de humidade onde outrora o fogão a lenha foi quente.
Onde era o quarto de dormir - todo o amor ali feito se dissipou, caçado e comido na persistente teia de aranha negra que drapeja num vértice como uma bandeira mortal e morta.
Uma perna de boneca de plástico, a junta redonda da virilha sem tronco a que juntar-se mais.
Uma asa de alumínio de desaparecido tacho.
Cagadas secas de vadios homens e cães humanizados.
Riscos de carvão na cal das paredes: obscenidades, futebol, política, datas.
Gosto destas casas onde só o tempo mora sem pagar renda.


Tondela, 8 de Setembro de 2005

08/09/2005

Graciano – Glória e Graças

Os pés nus por cima, calçados nas plantas pelo esterco híbrido de alcatrão e terriça de hortas, as unhas endurecidas de tempo amarelo e negro.
As calças entesadas de suor e chuva minerais, à cintura apertadas por cinto de plástico, que o achou Graciano no lixo.
Na mão esquerda um bolo velho, que lho deu a mulher do café, uma cristã de peito chato que sorri às moscas sem dia de encerramento para descanso semanal.
Na cabeça um boné sólido de Avelino Lima & Filhos, Construção Civil Lda.
Derramada de Graciano, a sombra de Graciano, igual a todas, vá lá.
A cada aldeia, seu louco manso.
E seu escritorzito ténue, lapijador de cadernos que não adiantam nem atrasam o relógio do mundo, também.
Glória a Deus e às obras no largo da igreja, empreendimento a encargo de Avelino Lima & Filhos, Construção Civil Lda.
Glória a Graciano e a nós glória, como para todos o Sol quando nasce ou se põe, e Graças.
Manso louco pedinte de cigarros e taças de vinho – Graciano.
A idade (a)lastrou-lhe o corpo seco, decerto saudável.
Ele é a Liberdade.
Fome, não.
Nem pobreza – não precisar de nada tudo é ter.
Gosta mais, Graciano, das sete da noite, quando os homens despegam dos trabalhos e vêm emborcar cinzanos antes dos jantares, que lhos preparam as mulheres ocultas.
Tem onde comer e dormir.
Há noites em que uiva, sobressaltando com a sua tristeza de lobisomem a canzoada sideral dos pátios da aldeia.
Noites em que imita as motorizadas, noites em que não.
Cheira a telhas partidas, a mijo, a tempo e a bolachas dadas.


Tondela e Botulho, 7 de Setembro de 2005

Gaveta

No fundo da gaveta agora electrónica,
um maço de papéis que resistem mal ao tempo.
Aqui estão, para aqui ficam. São do século passado.
I
O HOMEM QUE ACHAVA DINHEIRO
(uma sinopse norueguesa)

in memoriam Ruy Belo

Nenhuma Parte

Escreveu, afinal, um livro, não um homem. Um livro de um homem feito de, ou para, outros livros. Permitiu que a penúria e a pouca destreza na arte de contar histórias o acossassem. Utilizou o verbo beber com suficiência: talvez seja preferível estragar um fígado a perder uma obra. Sitiado pela noite, assistiu da janela do seu quarto ao dia erecto que uma laranjeira é. Auferiu do sexo, essa biblioteca de músculos e murmúrios. Contra a corrente, foi quase feliz em cafés povoados pela tristeza e pelo falso Oriente das garrafas de ponche. No bolso do casaco verde-ranho, algum livro argentino ou sueco pesou. Afiou muitos lápis alemães. Nas ranhuras da placa, acumulou a baba da mastigação: ovos verdes, fiapos de bife, broa, estilhaços de tremoço. Roçou a glória (essa íntima recompensa dos bebedores) quando se passou aquilo do cão batido pelo vento. Foi índio numa terra de Pizarros. Vigiou uma avenida de onde se vê o bosque municipal e se afere o conteúdo de lentos, insinuantes carros na noite. Num dos carros, um homem de uns cinquenta anos, não menos.
— Faço tudo, mas faço por dinheiro, senhor — escreveu. Ou disse.



Parte da História

As íntimas cizânias (as verdadeiras) são no cume de uma lenta montanha. A minha chegou-me num avião de regresso ao país a que, por falta de vocabulário, chamo meu. Era a madrugada. Pela janela, nuvens até ao infinito. Prata e rosa. A minha cabeça pensou para mim:
— A minha vida é um papel. Não tem nada escrito. Vai arder, como todos
os papéis. E não tem nada escrito.

Para aparente alegria do Universo inteiro, formei-me aos vinte e poucos anos. Foi meu patrono de estágio um correcto idoso chamado Marques Porto. Ao cabo de uns meses, ofereceu-me um lugar de sócio minoritário. Era o ouro do futuro. Exerci, com brancas mãos, durante sete anos. Comia bifes tão bons como a roupa que vestia. Era casado com uma tipa que se lavava. Morava num apartamento virado para o sol da manhã. Tinha um carro que era a materialização dos sonhos operários.
— ‘licença, doutor?
— Entre, homem. Como é que correu lá?
— Bem, doutor. Vou-me embora.
O sol da manhã vinha pela direita dele. Subia-lhe o ombro inglês, a orelha carnuda. A impecável cabeleira de leão envelhecido, um pouco à Léo Ferré, esparramava-se pelo sofá de couro castanho escuro. A luz parava no barzinho fechado à chave. Era um bom sol de despedida.
— Embora, como?
— Embora. Desculpe. Não posso viver só isto. Tem de haver outro lado, outra maneira.
— Homem, você explique-se. Outro lado, onde?
— Saio da carreira, doutor. Não durmo bem comigo mesmo.
— Homem. Você não fez sequer quarenta anos. Isso tenho eu de carreira, homem! Não dorme bem? Arranje outra mulher. Ou outras, várias, muitas!
— O senhor deu-me sociedade. Confiou em mim. Agradeço-lhe. Profundamente, doutor: obrigado por tudo.
Uma nuvem chumbou o ar do gabinete. Levantou-se, foi buscar uma bebida, não me perguntou se eu queria. Bebeu de pé.

— Tire um mês de férias. O Silvério e os estagiários hão-de dar conta do recado.
— Mande preparar os papéis, doutor. Devolvo a sociedade como a recebi. Não quero nem aceito um tostão. Tenho alguma coisa no banco. A César o que é...
— Deixe lá o César, caralho! Isto não se faz! Você está a ser pior que um mau inimigo, para mim e para si! Sobretudo para si, não vê?
— Vejo. Por isso me vou embora. Não quero andar a insultar-me a mim mesmo a todas as horas do dia. Tenho de fazer isto, doutor. Não lhe peço que compreenda. Não vim aqui para isso.
— Vai fazer o quê?
— Para já, arrendar um quarto na rua onde me criei. Ou me criaram, sei lá. Quero ver se há por lá outra ponta por onde pegar. Pus algum dinheiro de lado, deve dar para um ano de rendas e sopas. Entretanto, vou tentar não pensar em nada de especial.
— Você, isso é alguma paixão ou quê?
— É o contrário de uma paixão. Vinha no avião e pensei: «Eu quero mas é que vá tudo para o caralho!». Não me refiro a si, claro. O senhor é um bom homem.

Arrumei as minhas coisas e saí. À distância, parece fácil dizê-lo, fazê-lo, vivê-lo. E foi, foi fácil. Rebenta-se com tudo e não se fica a mirar os destroços. O menos bom foi ter regressado à rua das minhas primícias. Ninguém espera, nem aceita, que um advogado (um médico, um professor, um engenheiro, um chefe de vendas, um enfermeiro, um analista, um técnico, um polícia, um camionista, um gajo) deixe de ser o que era, ou parecia, e queira ser, apenas, um digno bardamerdas. A princípio, pensaram que era a ressaca do meu vago divórcio. Depois, que eu devia ter sido corrido. Finalmente, decidiram-se pelos copos. Então aceitaram-me de volta, mas só em parte. Foram os copos, mas também os livros. Sinto-me estúpido, mas é isto. Foram também os livros. Ele há tantos e tão bons livros, que é uma estupidez não os viver. São papéis escritos. Nenhuma outra vida me interessa. Final: os livros são para guardar na cabana que vou ter na Noruega, subida a montanha da cizânia.



Primeira Parte

A minha vida, entreguei-a aos livros. Mas tenho cada vez mais livros e menos vida.
Poderia ter feito entrega da minha vida (do meu corpo, das recordações que bebo) a uma substância, a uma tabela salarial, a uma seita teófila. Mas não. Qualquer livro me serve. Uma lista telefónica, por exemplo: puro, extenso cemitério de vivos, perfeito campo de silvas e de santos obedientes ao deus do alfabeto.
Acessórios do meu corpo, ocultos na pele falsa da roupa, lápis, afiadeiras, bilhetes de autocarro, lenços assolados pelas lamas excretórias — uma bagagem de vivo minucioso.
Nos bebedouros da noite, os niagaras da cerveja. Ambos os cotovelos oxidados no balcão inox, ouvindo sem querer a televisão tonitruante do pobre, triste, molhado café de província.
Amigos, também. As vidas deles, quase sempre profissionais, murmuradas em confissão de bebedores. O meu vago prestígio de carrega-livros, de autoridade ortográfica para concursos da TV, com ésse ou com zê, com tracinho ou sem tracinho. A tristeza mansa de cordeiro de talho. Os grandes entusiasmos do relatado sexo dos outros, indicado por fugazes aparições de automóvel na chuva, uma mulata no lugar do morto.

Balcão inox, máquina registadora, garrafas de conhaque e latinhas de atum para as merendas urgentes dos bebedores. Estamos instalados nas noites individuais do café. Chove com força, as águas batem no toldo amarelo da entrada. No toldo amarelo, as letras pretas: o nome do café. O nome do café é o da filha do dono, um café com nome de menina.
Uma mão amarela pousa, como uma pomba doente, no meu braço. É Basílio, um bebedor calcinado. Bom homem. Tem o coração entaramelado pelo conhaque. Olho em volta, mas a cortina azul que separa o bilhar das mesas não esconde um companheiro de fuga. De modo que a única salvação é ser brutal para com Basílio. Ou então, meu Deus!, ouvi-lo. Na televisão, para onde fujo pelo olhar, arde um programa de variedades. Os números são interpretados por talentos amadores. Muito mais amadores que talentos, mas enfim. Basílio percebe que lhe não estou a ligar nenhuma. Larga-me o braço (a pomba voa), ladra-me:
— Doutor do caralho!
Digo-lhe, macio:
— Bebe um copo que eu pago, Basílio.
Ladra-me:
— Basílio o caralho, um copo o caralho, doutor do caralho!
Saio do balcão, menos uma sombra nos bancos altos. Procuro o jornal. Está usado como uma mulher a dias, lido por dezenas de mãos distraídas. Abandono logo essa morta pele de palavras.
Na rua, um vento de motorizadas. As empenas das casas do largo, para que o café se vira, estão da cor do chumbo. Volto para o banco do balcão. Basílio está na ponta do balcão, um cotovelo fincado na vitrina dos bolos, a chatear o dono. O patrão está meio bêbado, como desde sempre. Com a metade enxuta do cérebro, ouve Basílio.
Basílio Bazelina, bebedor, ex-tudo: pedreiro, pastor, cantoneiro, marido. A mulher fugiu-lhe. Daqui ninguém se vai embora. Foge-se, por emigração ou por cornos. Bazelina, por causa da história das ovelhas. Escreveram a queixa para a capital. O dono da quinta, um barbudo com nome de hotel, despediu-o na vinda do Natal. Isto foi há anos. A chuva está a lavar tudo na rua, mas os pés e os chapéus dos bebedores que chegam, sujam o chão do café. Um amador canta uma canção muito popular. Alguém bate o compasso no chão, ouve-se a sola no molhado, o ritmo entra-me frio nos ouvidos, música de Novembro. Volto à mesa do jornal, procuro as palavras cruzadas. Estão meio resolvidas, mas a maior parte mal. Tenho vários lápis e afiadeiras nos bolsos. Afio um lápis e entrego-me às horizontais. Uma pomba de nicotina pousa no meu ombro.
— Desculpa lá aquilo de há bocado, companheiro.
Digo-lhe que não há crise, que está tudo bem. Minto, é claro. Novembro, etc. Basílio sai. Sai para a chuva sem um gesto de protecção. Como se fosse Agosto, sai a direito, estranho, sóbrio, inteiro.
Tenho um livro no bolso, mas não fica bem ler em público na província. Na TV, uma comédia de risos gravados. Os companheiros olham, mas não riem. As piadas são muito rápidas, muito americanas, muito fora do Novembro nacional. Bebem, comem fritos frios. Chega Júlio, um bilharista. Convida-me para uma série à melhor de nove. Digo que sim. Quarenta minutos depois, estamos empatados 4-4. Jogamos a negra, ganho eu. Ele paga duas canecas, dividimos a despesa do bilhar. Júlio empresta-me quarenta paus para perfazer a minha parte. Fico teso. O dono sorri-me:
— Se quiseres beber, à vontade.
Agradeço, peço mais duas canecas, Júlio escolhe a mesa do jornal. Procuro as palavras cruzadas.
— Cabrão, já aqui estiveste!
Digo-lhe:
— O que é que um gajo pode fazer aqui, pá?
E ele:
— Um gajo como tu, pá...
Um gajo como eu. Na televisão, futebol espanhol. Real Madrid-Valladolid. Brancos contra roxos. O pessoal calou-se, a chuva calou-se, a miséria desaparece. Um relvado enorme, jovens milionários cheios de vigor, destreza e calções, um árbitro de boa planta física. Intervalo, conversação geral. Júlio manda vir mais duas. Tremoços e amendoins. A chuva volta. Entra um tipo com a cara cheia de sangue. Barulho de cadeiras arrastadas pelo pessoal que se levanta. O dono quer chamar uma ambulância, o tipo do sangue não quer. Caiu da motorizada, rasgou as mãos como um Cristo de blusão de napa. O patrão pergunta:
— Se não queres uma ambulância, o que é que queres?
— Cheio – responde o do sangue.
O dono enche de vinho um copo alto. «Sangue do teu sangue», penso. O tipo bebe de «penalty», só então se vai lavar. As feridas não são profundas, estanca-as com toalhas de papel pardo. Os outros querem saber pormenores do desastre, ele conta, o futebol recomeça. O Real deu a volta ao resultado, 0-1 para 2-1. O do sangue bebe mais vinho, paga uma rodada geral. Mais duas canecas, mais dança o toldo amarelo. Um gajo como eu.

Mesmo no Verão, tem os olhos frios. Esta cara no espelho por cima do lavatório do café. Os olhos frios, arrefecidos pela ubiquidade desumana da água de Inverno, quase gelada na canalização. Esta cara – a minha cara no espelho de uma tasca de província. A noite vai alta, a noite vai cerrada no frio como uma árvore preta. Numa tasca de província, a cara de um gajo como eu. Um livro de História Universal no bolso (Lutero, Reforma e Contra-Reforma, Apogeu do Estado Espanhol, etc.). Alguma azia, algum azar.
Júlio foi-se embora no momento em que o Real espetou o terceiro lá dentro. Fico por aqui. O toldo amarelo canta a canção do vento com as mãos dentro das pernas da chuva. Debandada lenta a seguir ao jogo. Estamos eu e o dono. Um bebedor sai da retrete. Adormeceu a cagar, o dono goza um bocado à pala do gajo. Ofereço uma rodada, o dono aceita e toma nota. Entro no vinho como numa igreja: calado, respeitador de um mistério adoçado pelo silêncio dos santos e das açucenas de papel de prata. A Literatura — ponho-me a pensar na Literatura, mas estou a mijar ao mesmo tempo. Com o jacto de mijo, lavo os trilhos roxos de um vomitado recente, insígnia do Homem. Consulto a parecença do sangue com o vinho vomitado. De modo que a Literatura, ínvia, ínclita, lá me volta à caspa. Retomo o meu lugar à mesa do jornal. Secreto, abro o livro que recorda Lutero entre as páginas de classificados. Sublinho as partes interessantes. Mas quando se está bebido, toda a leitura revela urgências de sentido, ouros de estilo, toques de Deus ou Jim Morrison, profundidades de mar-oceano. Desisto.
Na cabeça, como uma estrela riscada por unha infantil, a frase nova:

É como se a minha vida conhecesse o meu corpo de cor.

Guardo o Lutero no bolso, tento guardar a frase no mesmo sítio cosmológico onde nasceu – a cabeça. Vai ser o corpo de um capítulo útil para um livro sem préstimo. Mas a televisão passa um interlúdio musical. Um pianista solta uma bailarina de tule azul. A cabeça perde-se-me da frase e segue para o televisor. A música não é grande espingarda, mas a bailarina é boa como um bife licenciado em Belas Artes. Carne e leite, cor e pó: corpo. Ninguém conhece tão bem o seu mesmo corpo como o bebedor.

Existir: ter a vida ao mesmo tempo que o corpo. A morte arreda a vida como um trapo, depois devolve o corpo à selva exuberante da biologia (da necrologia, mesma coisa). Acabou o interlúdio musical. Há uma, há duas horas? O dono está a varrer as piriscas, a empilhar as cadeiras de plástico branco. Mexo os bolsos à procura de dinheiro. Nem uma moeda. Esqueci-me de ter dinheiro, a minha vida esqueceu-se de ganhar o dinheiro. Peço fiado um maço de cigarros, coisa que obtenho sem que o dono sorria. Um gajo como eu, etc.

Quem tivesse dinheiro no século XVI, podia pecar à vontade. Para limpeza da alma, comprava indulgências, uns títulos de pré-perdão vendidos pela Santa Igreja Católica. Roma tinha feito um acordo comercial com o príncipe Alberto de Brandeburgo e com o Banco Fugger de Ausburgo. Era papa o décimo dos Leões. Uma boa canalha. Até que, aos 31 de Outubro de 1517, o monge Martinho Lutero, um agostinho esperto, prega, na porta da capela do castelo de Vitemberga, as logo depois famosas 95 proposições contra o abuso das indulgências. Consigo lembrar-me disto enquanto regresso ao quarto de rés-do-chão que tomei de renda a uma viúva sem anátema. Oblíqua, uma motorizada de cremalheira partida dorme no adro da igreja da terrinha. Uma motorizada: indulgência de operários de fim de milénio sem moléstias morais e sem nada, mas com chuva, tanta chuva.

Pouco barulho, pá. Nenhum barulho, de preferência. Há um portão baixo que range nos gonzos. Uma pista de cimento sob a latada. Depois, a porta das escadas. As escadas. A porta. Não é aqui, caralho. A viúva é que é aqui. Para baixo outra vez. A porta do rés-do-chão. O silêncio escuro dos adormecidos, a fria áfrica do sono dos outros. A minha porta. Chamar minha a uma porta, que carago. A luz, as calças, a minha cabeça: tantas coisas aí moram sem pagar renda. Um belíssimo cigarro, lareira da boca. Cama, sudário, religião deitada. Frio, jogo do amparo e do desamparo, minha vida. Livro:
De pai para filho, alimentamos a lâmpada do Islão com o azeite tirado ao coração dos infiéis.
Palavras de Maomet, parece. Azeite, coração. Mais adiante:

os seus quadros escaldantes de brilho, quentes como a carne e francos como a luz.

Palavras de Grimberg (ou de Svanström?) a propósito do trabalho de Rubens, pintor. Na cama, registo: azeite, coração, carne. Mais infra:
e a sua espuma reforça o sabor salgado dos corpos ondulantes.
E, ainda por moto de Rubens,

o sol da tarde e a cerveja confundem os homens com os deuses.

Azeite, coração, espuma da cerveja, sal da tarde, sal do corpo. A minha vida nas entrelinhas de todas estas pastas do sentido. Século XVI, etc. Basílio, o sangrento homem da mota, Rubens, a chuva no toldo amarelo. E as outras coisas fundamentais: o sono viúvo do primeiro andar, as rendas dos quartos, a delícia, o sexo, as silveiras, o dinheiro, as consoantes palatais. A pequena esquizofrenia que é preciso ter para nada ter.
Antes de sucumbir no sono, a delícia arrepiada do toldo amarelo na minha cabeça cercada pelo escuro do quarto. Um título, lido anos antes (mas de quê antes?), emerge:

Uma Luz com um Toldo Vermelho.

Lembro-me, não agora de um verso preciso e recortado (lá para a frente, sim), mas da atmosfera harmoniosa dessa poesia. Não se deve decorar à força. O que me fica dos livros é o que vai ficar de mim: uma ardência, um ardor, um ar ardido como uma laranja de queimaduras. Adormeço antes de conseguir ser feliz com isto, esquecido já o toldo amarelo, sua voz na chuva, sua pele de rapariga, de tormento, de candeeiro têxtil.

A manhã — ouro e águas respiratórias. O prédio está sitiado por um horto. Os pássaros habituaram-se à frota automóvel e à buzina dilacerante do peixeiro. Um cigarro antes de levantar, pedra de giz e pólvora mandada para os fundos do cavername pulmonar. Não pensar e quase não sentir — magia corporal da manhã. Magia breve. O mundo desperto volta a atacar com a lembrança de telefonar a Virgílio. «É preciso arranjar alguma coisa», diz o mundo. Afio as orelhas: não se ouve rumor na casa de banho. De modo que enrolo a toalha amarela e descalço-me para o chuveiro. Porta trancada: alguém caga em silêncio como um urso polar. Pode ser a Czerny do banco. Impossível ser o estrepitoso Tavarede das feiras, o pássaro madrugador que vende roupa e talvez também heroína cigana, marada. (De certeza que não vende heroína, mas eu gostaria que vendesse por causa de ser muito mais livresca uma situação de Droga no Quarto ao Lado.) O Tavarede é apenas feirante de mercado rural, não há poesia. De volta ao quarto para esperar a minha vez, papo meio pacote de bolachas e bebo água da botelha de plástico. Faço a puta da cama, em que há que tempos se não deita uma. Alinho a roupa para o dia, ponho as vésperas no saco repelente dos sujos — meias enceradas pelos pés, cuecas seladas para o correio-expresso do desamparo, camisas partidas pelo cansaço. Porta abre. Porta abre e fecha. A Czerny já cagou, minha ocasião. Tomo uma chuveirada rápida, azul e branca, sem dinheiro para o shampoo. Moedas, rapar moedas esquecidas: dão para um café. Paragem do autocarro, como se pudesse apanhá-lo. Truque antigo: ficar por ali como se não fosse nada comigo, ligeiramente afastado da placa verde. Um aperto de miséria por cada autocarro que passa sem parar. Até que acontece a boleia no 127 de Lucas. Já na cidade, um café-charcutaria com nome francês. Recatados ambos, eu e o estabelecimento. Um café e Vitorino Nemésio. Cigarro precioso da minha alma, prumo azul antes do caos.

Não estou seguro do Bazelina, da Czerny, do do sangue, da viúva dos quartos. Quero dizer (quererei?) que não estou seguro do que quer que seja. Figuras assombradas, não pelo terror mas pela criação de um homem que bebe na companhia dos seus pequenos, ridículos demónios. Não estou seguro. Há a ossatura sem tempo humano das estrelas da noite, há a vaidade do mar, a friúra das pedras em recordadas sestas ao pé de um poço, ardia o Verão. De nós, para nós ou por causa de nós — o quê? O tabaco está-se-me a acabar e a mão direita parece-me um relógio partido.

Quem não almoça, não tem a certeza de a tarde já ter chegado. É pois numa manhã espúria que ambulo sem linhas contadas. Chego à Avenida, assim maiúscula por causa das sucessivas agências de seguros. Prédios cinzentos a que chega o falso calor das luzes e das cores dos reclamos. Há um banco de fachada verde e um banco de fachada verde-rubra. Cheira a dinheiro dos outros, a dinheiro tratado em escritórios de ar condicionado. Com a barriga vazia, é mais fácil perceber que também estes tempos são condicionados, incondicionais, penitenciários. Da paragem do autocarro, no lado de lá quando penso nisso, hei-de ver o bosque municipal. É uma boa paragem de autocarro: coberta, verde, rareada. Instalo-me nela. Passam os autocarros: Hospital, Cruz, Olival, Norton, Roxo. Vou apanhar nenhum (a pequena mão da miséria a cada um que passa sem me levar). A minha aldeia (bairro agora, por causa do cinturão industrial) é a três quilómetros. Virgílio ou Vicente, sim ou não a um empréstimo de vinte mil, ou coisa assim? Ou uma cunha para um empregozito qualquer, desses que dão para o povo ficar contente contigo. Se comer uma refeição quente, o dia nunca me fica por menos de duas mil coroas, com tabaco e café. Duas refeições quentes são um binómio da Utopia. Thomas More, etc. Arroto em seco à porta da Safra Seguradora. Dezasseis horas da manhã. A meio da Avenida, mesmo por trás da paragem, a Fábrica, em ruínas, de Artefactos de Borracha Siracusa. Ruínas: a eternidade.

À candura desses anos de merda que sucedem aos primeiros leites produzidos (paradoxalmente) pelo corpo masculino, seguem-se o desencanto e a acidez metafísica. Não consegui, e ainda bem que não, antecipar a porcaria desta madurez — acertei nos livros, esgalhei o resto. Com os livros, paginada maravilha. Mas, ao levantar a cabeça da página, a realidade, como uma sonsa gata enorme, espera-me e tem unhas. Realidade bancária, flectida mas inflexível, transmitida mas incomunicável, bilheteira para nenhum barco, nenhum cinema. Em outro tempo integrei, contente e tolo, as efémeras comunidades de uma sessão de cinema com seu regresso de autocarro. Aí comecei a ler a dispersão, essa mãe de todos voltando a ser um por si. Gémeas siamesas, a fome e a falta de apetite, como esta tarde (mas talvez Virgílio, ou Vicente). De costas para a Fábrica de Artefactos de Borracha Siracusa, o corpo encostado à barra verde da paragem. Vem vindo a noite, e, com ela, a possibilidade do engate automóvel. Fumo o último cigarro, o futuro começa a acabar no clique do isqueiro.

Quando comecei a deixar de ser menino, os mais velhos conversavam ainda. Falavam das tascas da Baixinha, antros povoados pela antiguidade e pelos seres da mitologia mais genuína da cidade. Hoje, sei que são, apenas, homens que bebem vinho. Apenas, afinal, gente rouca com frio. No chão, a serradura é pontuada por escarros, semelhantes, na dimensão e na consistência, a ovos estrelados. Aquário do vinho, as tascas rescendem a sardinha frita e a sarro de pedestres. Os mais fracos sentam-se em bancos corridos. Sobre a folha de mármore das mesas nadam as mãos amarelas. Ao balcão, rápidos, bebem os empregados: fiscais, polícias, taxistas, cobradores, ourives, engenheiros e os que vivem de mulheres. Fauna e flora, tundra e taiga — o mundo dos que bebem, regougam, crocitam, corvejam, cuspinham, gemem, escrevem, citam, esquecem. É o meio de uma tarde. Na véspera nocturna, achei uma nota de dois mil dentro de uma carteira, na Avenida. Como, bebo, fumo e escuto. Estou vivo, sobra-me algum dinheiro. Comi ovos verdes, bebi um quartilho. Depois, bebi outro quartilho. Então, olímpico, fumo os melhores cigarros dos meus dias. A História da Literatura não é uma ciência porque não pode dispor de um método próprio.

O dia acaba de todo, eu em parte. Células morreram hoje no meu corpo, outras lhes tomaram o lugar. Corpo meu, pai de ti mesmo. Células e dias, uns e outras separados por noites. Época de grandes chuvas, Dezembro já no lugar de Novembro, mas hoje janto um bife pequeno acossado de batatas fritas. E um ovo estrelado, que, na consistência e na dimensão, traz o recado de um escarro de bebedor em serradura de chão de tasquinha. Com vinho, café e conhaque de engaço, oitocentos dele. Os trocos hão-de dar para dois conhaques pobres e um maço de sem filtros. Aleluia. Antes do bife, caía o dia. Vim a pé desde a Avenida. Rasei a estação ferroviária, onde os comboios e as mulheres que vendem bolos, suportam, como flores à chuva, a usura do tempo e a linguagem dos carregadores.

A propósito do quadro Virgem dos Rochedos, de Leonardo de Vinci, Grimberg (ou Svanström?) introduz uma formosa passagem de Fred Bérence. Diz Carl Grimberg (ou Ragnar Svanström?):

Igualmente estranhos são a construção do quadro e o movimento das mãos, onde Fred Bérence pretende ver um quarteto vocal (...)

Movimento das mãos? Quarteto vocal? Formosas, dúbias, deslizantes palavras. Escreve Bérence:

...notar-se-á que Isabel está a abençoar, mas, ao mesmo tempo, executa um acorde, que é retomado pela Virgem, a qual, com o dedo, dá o tom ao pequeno São João, que, por sua vez, num gesto de adoração, o transmite ao Menino Jesus. A ilusão de um quarteto é de tal modo perfeita que julgamos ouvi-lo glorificar a Luz que resplandece na caverna do mundo.

A minha cabeça está dentro do Renascimento, metida (diluída) na bruma alegórica da História. O capacete ósseo que guarda os miolos está dentro do restaurante, comandando o mecanismo da digestão (bife, conhaque, tabaco). Chove na noite fria, delícia. Compro os sem filtros, sobram-me centavos, limpos átomos da riqueza nacional. Está tudo bem, eu estou bem, a chuva é boa, os violinos são anjinhos de madeira e corda nervosa.

Uma ocasião, vi uma mulher muito antiga num hospital. Parecia um livro muito antigo. Estava parada na cadeira de rodas. Tinha os olhos parados num canto da História. Um canto só dela. Ou um canto a que já só ela, por entretanto lhe terem morrido os coevos, pertencia. Na enfermaria ao lado, uma mulher berrava histórias fragmentadas: uma voz de caco cerâmico da Antiguidade. A antiga via para lá do que lhe restava olhar: o mundo branco da enfermaria, o chão esfregado por robustas mulheres, os impecáveis lençóis impessoais. Quando, duas semanas depois, renovei a visita à pessoa que me ali levava, vi-a uma última vez. Estava a morrer, como é nosso costume. Nessa mesma noite morreu. Mas, então, eu não achava ainda dinheiro na rua.

A manhã ali está, olhando para dentro do quarto. Cheira a horta fria. Suponhamos que isto é no dia 4. As rendas pagam-se até 8. De modo que me ponho a pé (duas bolachas, um golpe de água) para a cidade. Nas horas crepusculares de Siracusa, acho dinheiro. Aqui cinco mil, ali doze, etc. Quando o dia se torna um incêndio, volto a pé para casa. Tenho envelopes. Ponho a renda dentro de um, subo ao primeiro andar. Suporto o lábio frio da velha, o gozo antecipado da recusa de adiamento. Estendo-lhe o envelope com a massa. Olha-me, fula. Não estava à espera.
— Um bom Natal, minha senhora — ladro-lhe.
— Igualmente, menino — ladra-me.
Desço, atrapalhado com a fadiga toda nervosa das pernas e com a emergência de pensar no que me acontece, nas coisas que estou a fazer acontecer.

A manhã acaba. Hoje, com dinheiro, tenho direito a que seja a tarde a suceder-lhe. Uma tarde decente, uma tarde como as tardes dos outros, larga, infinita, rigorosa, horária, uma dura tarde de calendário. Começa a chover quando entro no restaurante. Como um bife com batatas fritas, um caldo de galinha, uma fatia de pudim de pêssego, dois cafés, dois conhaques. Compro um maço de tabaco no quiosque, a caminho do café com nome de menina. Pago o meu papel: canecas, cigarros, duas sandes de ovo frito. Volto para o meu quarto. Deito-me. Tento ler o Proust (vivo o terceiro volume da Recherche). Impossível estar vivo e acordado ao mesmo tempo. A chuva bate na horta. Fecho os olhos e fumo. A minha vida na espiral azul. Tento adormecer na cabana sitiada pela neve e pelos abetos, a casa de madeira onde frito toucinho e faço café num púcaro de folha sobre lume de lenha.

De modo que é outra vez a noite aquilo que mais acontece no mundo. Acordo ao contrário da hora. O ar interior, flanela preta. Ouço a viúva a falar para fora da vedação. Vou à janela. A velha fala com uma mulher negra. Vou à casa de banho. A Czerny esteve aqui: cheira a mulher sozinha. Do Tavarede, nem rasto. Atravesso a rua, entro no restaurante, janto copiosamente. Quando saio, já é amanhã. Vou para o café do toldo amarelo. Pago quatro copos: Júlio, eu, um vendedor de café e um técnico de máquinas de lavar. A Humanidade é una na diversidade, como Fernando António Nogueira Pessoa (1888-1935).

Fico até às quatro e meia da matina. O dinheiro achado, em maço contra o coração, aquece-me a literatura. O dono varre o chão, aceita um copo, olha-me sem me ver. Estamos bebidos. Aleluia. Hossana. Fiz as palavras cruzadas. Ninguém lhes tinha tocado. O dono diz-me que Herculano, o velho que as tenta resolver, está no hospital. Caiu do tractor, bateu com a cabeça algures. Não é grave, garante-me o patrão, mas parece que ficou com as palavras todas cruzadas na fala.

Abro a porta do quarto, fecho a porta da cabana. Dispo-me às escuras. O pirilampo do cigarro tirita na noite norueguesa. Deito-me devagar. O vinho rebolsa no corpo. Levanto-me para mijar. Há luz na casa de banho, mas a porta está entreaberta. Encontro a Czerny a chorar na retrete. Levanta-me um olhar de coelho acossado pelos cães do destino. Fecho a porta com as três palavras de fechar a porta. De volta ao quarto (a visão do láparo Czerny queimou todas as possibilidades de dormir na cabana), leio o Proust com a deficiente oftalmologia do bebedor saciado. Pouso o Proust (genial menino mimado, escritor-escritor entre tantos escritores amanuenses) ao lado do cinzeiro. Não desligo a luz. A velha pendurou calendários do Sagrado Coração em todos os quartos. Miro o sumarento e ardente pêssego da fé, visão e utopia de velhas damas e de médicos reformados que não conseguiram vencer a Morte. Mijo na botelha de plástico. Estranhamente, acordo fresco e vivo pelas oito da manhã. Levanto-me, mijo-me, visto-me, vou despejar a garrafa onde Czerny chorou. Desprezo a última bolacha. Tenho dinheiro.
E da bibliografia vão saltando múltiplas imagens,
está escrito numa folha que Helder foi beber a Ernesto Cardenal. A citação é um punhal que viaja. As imagens da bibliografia são facas viajantes. Esta serve-me para sinal de encontro com alguma coisa que eu já sabia e já tinha vivido, mas não fora capaz de escrever. É outra vez aquela história de os melhores livros serem os que nos lêem a nós mesmos. Alguém disse isso, não me lembro de quem. Lembro-me, sim, de o ter contado a Filomena, uma rapariga que voltou à terra. Isto foi na página 9. A páginas 25, lembra Helder:

Tu, bebedor nocturno,
enverga as vestes de ouro,
tuas vestes de ouro e chuva!

Cá está: «Tu, bebedor nocturno...». Isto é comigo. E é com o Bazelina e os milhões de alcoólicos, sós e acompanhados, deste mundo. Livros, copos, livros, copos. Com o dinheiro novo junto ao coração, voltei à cabana da Noruega. A ideia é viver para sempre na cabana. «Para sempre» é sempre pouco tempo. Mas a Noruega há-de ser o chão da cabana: tem neve, tem abetos, tem frio, tem toucinho. À noite, fico a ouvir a canção do vento metendo as mãos nas pernas da neve. Nenhum toldo amarelo, nenhum vinho, nenhuma televisão. Um púcaro de café, a cabeleira das chamas desgrenhada pelo vento interior do fogo. Na Noruega, vou pensar nisto de aqui. Nas laranjeiras do quintal da velha, por exemplo. Na manhã fria, uma laranjeira é uma cabeleira verde cheia de caspa de ouro. O frio gosta de lacar a pedra com uma pátina de verniz e outra de rasto de lesmas. Vou meter o corpo na fronteira desses mundos, o da neve e o da fogueira. Claro que vou ter de achar muito mais dinheiro. A Noruega é um bem caro, uma mercearia utópica, sal e salvação da minha vida. Enquanto não chego à cabana, o melhor é ir assegurando os dinheiros do quarto, dos cigarros, da livraria, dos bifes e das noites. A possibilidade mais moral é arranjar um trabalho (Vicente, por exemplo). A mais literária é achar dinheiro na Avenida. A mais triste é seguir vivo na província urbanizada, dormitória, hoje de autocarro, ontem a pé, amanhã a pé. Montalbán, Calvino, Yourcenar — santinhos das minhas velas sopradas. Neste quarto, verticais, calmos. Espanha, Itália (com Cuba), França (com Japão): atlas de Carvalho, de Palomar, de Adriano. Eu sei estas coisas, não preciso de outras. «Da bibliografia vão saltando...», etc. Fecho os olhos, o vento canta no gelo. Um animal branco corre na neve através de árvores pretas. O animal corredor pousa as mãos brancas no silêncio branco do chão. Uma lebre ou um predador de lebres? Os assassínios entre animais são puros. Não decorrem da moralidade. O corpo do animal que vai comer pensa: «Tenho a boca viva.» O animal que foge pensa: «Ainda tenho as mãos vivas.» Estas são as duas peças de cartaz do teatro maravilhoso da Noruega. Não sei se há lebres na Noruega, mas há de certeza literatura dramática desta qualidade, cf. Ibsen (1828-1926). Compro coisas para a cabana: latas de carne e pescado; toucinho e peixe escalado; sabão em barra, fósforos, velas, cobertores; mel, farinha, tabaco. Numa selha, tomo banho em água a ferver. Ferve na selha um ramo de eucalipto. É preciso que não faltem eucaliptos na Noruega. Abro os olhos no quarto de renda. Por momentos (de grande delicadeza, juro), desconheço o nome da hora. Pode ser a pré-manhã, o entardecer com seu rubro incêndio vegetal, pode ser a noite. É uma formosa perdição da hora, do corpo, da gasolina queimada em internas combustões. Chiadeira, explosão de ferros: na rua, dois carros chocaram o ovo do desastre. Uma velhota ficou ferida num joelho. À saída do prédio, contorno a rápida multidão dos desastres, a opinativa multidão dos desastres. Entro no café dos bifes, olho as horas no relógio posto alto. É a hora de ninguém — hora e meia antes do jantar. Tenho no bolso um policial fraquito de Patrick Quentin:
— Compreendo como terá sofrido ao ler a carta. Deve ser uma sensação horrível, semelhante à que me invadiria se descobrisse rapidamente que Neddy não me amava!
Quem me dera, antes de me soltar para a Noruega, dormir com uma fulana que falasse assim, assim como se escreve, assim com os condicionais e os imperfeitos do conjuntivo no sítio certinho, com o verbo amar a existir oralmente, em vez de só na escrita quase literária dos policiais quando fraquinhos. Um tordo é um pardal pesado. Tenho um na mão: uma chávena de café quente. Um dia, prometo-mo sem fé, será um tordo de púcaro de folha. E o vento, a neve e as coisas restantes.
Quem matou a «green-eyed monster» de Quentin? Andrew, o marido? Ned, o cunhado? Rosemary, a prima? Quevedo? Lope de Vega? Jean-Paul Sartre? Marcel Proust? Eu? Eu, não. Eu bebi umas coisas antes de jantar e é tudo. Não matei ninguém. Não matei a Czerny, que talvez mo agradecesse. Tavarede também não foi o assassino de Maureen. Conseguir viver nos livros. Um dia mais, sobreviver por fora e viver por dentro. Por dentro, não há pobreza e não há esterco. Há viagens, há iluminações, há sangue e há matadores honrados.

Fiz hoje uma coisa que já há muito não fazia: bebi vinho do Porto. Tinha acabado o bife, tinha acumulado cafés, estava a morrer devagarinho perante a televisão sem sal que é o castigo dos homens que jantam sós. Veio Lucas, a quem ofereci um copo. Aceitou, sentou-se em frente. Combinámos um bilhar para o serão, chovesse ou não. Foi então que veio o porto. Macio, solar, conversador — um vinho para a penumbra. Dourou-nos a sintaxe. Rimo-nos com revivalismos da Preparatória (o vesgo da turma era o Cisco Kid) — esse tempo inacreditável em que se acredita em tudo.

Como de repente, é a outra tarde, esta. Num café velho da cidade, sentado perto de mulheres que merendam chá e pastéis de Tentúgal. Uma rapariga, loura como um cordão de ouro, espera. Um homem desata a falar sozinho. Nas mãos dele, um jornal aberto como uma borboleta enorme. Sempre gostei da suave loucura dos bebedores de café. Apresentam bebedeiras nervosas de grande teor humanista. São a erva propícia às vacas da solidão. Uma comedora de pastéis mira de viés o fala-só. Está divertida, procura a solidariedade dos circunstantes com um olho clínico de entendida. O homem soletra os resultados do futebol distrital, escandaliza-se com os números, gesticula. O empregado chega, pousa-lhe a mão (uma pomba de cafeína) no ombro:
— Calma, senhor Leonardo.
Acalma-se o senhor Leonardo. O empregado desaparece num bastidor, onde um cigarro arde à espera.

Essa cobra espapaçada, toda mental, a que os desentendidos na matéria chamam, em grosseiras maiúsculas devotas, Cultura Geral. Cobra triste, desempregada, inaplicável. A minha é feita como a dos outros: de nomes soltos, voadores, riscos de tinta num céu abafado, interior, surdo, calado. Fecho os olhos no café. De imediato, escrevem-se-me no écran os ésses e os zês difíceis de Liszt e Nietzsche. Quanto mais estrangeira, melhor aparece a Grande Cobra da Cultura Geral: Assurbanipal, Teseu, Sri Lanka (ex-Alto Volta?), Pérsia (actual Irão?), Alto Volta (actual Burkina Faso?), Shakespeare, Ceilão, Real Madrid, Aníbal, Ramsés (& Filhos), Port Royal, Montgomery & Rommel, Buenos Aires (capital da Argentina), Amundsen, Galileu e Amancio (Real Madrid, anos 60). Que almocei hoje? Não me lembro. Lembro-me da constelação chamada Jacques Brel (belga?, flamengo?, francês?, taitiano?). Lembro-me de Gilberto Gil, dos canadianos April Wine, do Max da Madeira. As minhas mãos no ar do café: rosas de ossos, vias rápidas do sangue, escavadoras de caspa. O ócio é tão parecido com a tristeza. Uma cobra amortecida, afinal minúscula, ao alcance de coisa nenhuma.

Uma coisa que me é preciso esclarecer é essa coisa de a Literatura ser um modo de vida, ou, diferente, a vida de outro modo. Muitos mortos pensaram nisto quando eram vivos e tinham de pensar nalguma coisa. A Literatura não é peremptória no lavar das perguntas: está-se morto «agora» ou «sempre»? O «agora» é «sempre-agora» ou «nunca-mais»? O «agora» resulta do «sempre-menos-nunca»? E a minha vida a ver com isso? «Nascituro» é o que sobra do particípio futuro do latim: o que vai nascer. Para quê? Literatura, Ortoépia, Gramática — âncoras de papel numa ribeira seca. A noite. Estou na noite. Uma parte do problema da noite (da morte) pôde ser resolvido quando me chegou a leitura do conto Ahí Pero Donde, Cómo, do gigante argentino Julio Cortázar. A minha morte, entreguei-a aos livros.

Se a minha vida, esta, pudesse emigrar para uma história em que o vigor físico e a juventude da pele voltassem a ensacar o meu corpo, como hera a uma casa, eu seria talvez outro — porque talvez feliz. Seria outro gajo, teria outra tosse. Aprenderia trabalhos técnicos, resolveria enguiços mecânicos, eléctricos, hidráulicos. Ou então, estudaria muita História. E um dia uma velha senhora haveria de contratar-me para tratar dos papéis do seu ilustre defunto. Mas sim, é claro, tudo isto está na Aura, do mexicano Carlos Fuentes:
Distraído, deixas que a cinza do cigarro caia dentro da chávena de chá que estiveste a beber neste botequim sujo e barato. Relerás. Solicita-se historiador jovem. Ordenado. Escrupuloso.
Mas esta vida, a minha, não é a do jovem Felipe Montero. Se pudesse, projectar-me-ia no protagonista desse livro, dessa história espessa, rarefaciente, mortífera. Já me enganei o suficiente ao crer na minha ilusória necessidade de uma história. Não a tenho, nem, se a tivesse, seria capaz de a contar. Por exemplo: às três da manhã (depois de Bazelina, Lucas e outros passos em volta), voltava para o meu quarto. Do muro lateral da igreja, como um vento de quilogramas, saiu-me ao caminho um tipo de cara tapada por uma máscara de lã preta. Apontou-me uma faca (uma citação) ao sítio onde ele terá pensado que eu levava o coração. Dei-lhe o dinheiro que levava, o ferro que eu acho ao pé da Siracusa. Achei justo. Ele trabalhou. Foi-se embora como se não levasse pressa de gastar o meu dinheiro. Não me armei em herói nem fui cobarde. Voltei para casa, se um quarto pode ser a casa de um homem. «O trabalho liberta», lá estava escrito à entrada de Auschwitz. Cultural Geral, claro.

[A mentira e a verdade (o Borda d’Água e The Waste Land). A manhã e a noite. As histórias das crianças e as histórias para crianças. Perrault e as meninas degoladas. A conquista do espaço (deixa-me rir). Os sacrifícios para Quetzalcoatl. Eu sou o que tapa a cabeça com uma máscara de lã, mas por causa do frio, não para embuço de assaltante faquista. Passei, na fria madrugada, por um tipo que tinha bebido até o cabelo lhe ficar molhado por dentro. O tipo foi advogado (ou professor, não sei bem). Mas eu juro que o não assaltei. Tirem-me daqui, que eu não sei ler este livro. Achei dinheiro no chão da minha terra. Peguei nele e guardei-o no bolso do lado do coração.]

De pequeno, mamei o peixe de só a tristeza ser literária. A literatura dos anos seguintes pareceu confirmar o bom senso desse axioma imbecil: a amargura é que é. Raras excepções não me partiram a regra (how do you do, Tom Sharpe?). As santíssimas trindades do futuro, que agora lembro, riscaram mais fundo o furor do triste estilete: Camões, Camilo, Pessoa; Rodoreda, Sciascia, Strindberg; Faulkner, Mishima, Mann; Belo, Osório, Filipe. Se a tristeza se torna hilariante, mais triste pincha no sangue: Twain, Eça, Calvino. Manhã. Não ouvi rumores, nem da Czerny nem do Tavarede. Fiz as abluções. Devo ter bebido coisas maravilhosas, ontem: não tenho um tostão no bolso. A minha cara à janela: pintadas no vidro (como naquele Magritte, A Condição Humana, em que a sobreposição das superfícies respectivas torna indistinguíveis a pintura à janela e a natureza vista da janela), as couves (seu ar de mães verdes) e as laranjeiras (sua caspa de ouro).

Quem esqueceu A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro?

A realidade é insuficiente, se compendia apenas o tudo que existe. A realidade torna-se uma mulher melhor quando assalta o seu violador íntimo – o porquê. Vivo na cáfila de sentidos, instintos, sinais, alimentos, ofícios, autocarros, livros. Mas quero viver na cabana da Noruega, que não existe o suficiente para mudar de cor com uma demão de tinta. Rosto dentro de máscara de lã, faca na mão, o dinheiro para cá, a Noruega para lá. O meu essencial (não digo a minha essência, igual) teve de deslocar-se do quotidiano, esse fio de dias capados. Não tenho finalidades, embora me esteja guardado um fim. Aleluia. E não uso as coisas: vizinho-as, quando muito. Como um bêbado, alta madrugada, tenta mijar, e se perde na contemplação de sua pobre, engelhada piça de diurético, assim atento eu na realidade: pequena, desdobrável colecção de cromos. Ter um sistema (Deus, Buda, Real Madrid) é ter menos que uma anedota de putas para contar num convento. Implicar sempre me foi, confusamente embora, melhor que explicar. Interessa-me o Homem, não tanto os homens. Interessa-me a desonestidade da Literatura. É uma morfina, um lance ventoso, uma manhã no campo, uma cabana, um chamar mãe à couve condenada, pela realidade, a ser couve.

Nunca nos pudemos contentar com a existência das coisas, e com a nossa própria, na medida em que toda a realidade é conhecimento e consciência dessa realidade, na medida, portanto, em que toda a consciência e todo o conhecimento são indício de uma separação, de uma fraqueza, de uma carência. O ser implica o não-ser como sua condição.
Até um francófono (Lefèbve) soube perceber isto, carago. De modo que fui e não fui assaltado. Tinha de achar dinheiro, pelo menos enquanto não Vicente, ou não Virgílio.

Podes ser, embora não devas, inferior a um pequeno. O que não deves, mesmo que possas, é ser pequeno por dentro. Não é de moral que te falo. Eu nem me chamo Morales. O moralismo é um mongolismo, cromos e somas, mal colados, mal feitas. Se eu fosse uma viúva das de García Lorca e me chamasse Angustias. Ou Cristales, como aquela Amparo Cristales, aquela rainha de beleza colombiana que semeou o desassossego na minha vida. Por vezes, lembro-me dela. E na minha vida dá-se então a
desolação sem pensamento de uma folhagem que a chuva fustigava e o vento contorciona.
Esse Marcel, pequenino corpo exposto às fumigações. Recusou a pequenez. Mas se tivesse podido, teria feito de viúva espanhola ou de miss colombiana.

De modo que o Natal veio e o Natal foi: para o caralho. Janeiro, o mês das formosas (as rosas), pôs-se no cio dos gatos. Na horta da velha, os felinos cantam as loas da reprodução. Bebés vocais, lancinantes, incómodos. Tenho continuado a achar dinheiro na Avenida. Duas mil coroas aqui, três mil rupias acolá, etc. O dinheiro não falta à chamada. A minha cara inchou o espelho: olhos de boga, dentes de alho chocho, beiços de carne de melancia. Paguei a renda no dia 3. A Czerny matou-se na noite desse dia.

Caralhos te fodam. Morta no quarto do Sagrado Coração. Puta. Sozinha, puta, empregada, sozinha, doida, inteligente, chorosa puta Czerny. Foi uma confusão com a polícia, a ambulância, a velha, o quarto tornado enorme pela remoção do corpo. Menos uma formiga contribuinte. Menos um telefone na agenda de remotos machos. Para a longínqua família, um aborrecimento. Para mim, uma ocasião para escrever asneiras.
Uma morte-Marilyn: comprimidos. Levaram o corpo à hora de almoço. A hora de almoço não a quis receber. Tinham telefonado do Banco a saber dela. A velha veio cá a baixo. Ouvi-a rosnar. Levou as mãos à cabeça. Foi assim que as encontrei: a velha com a cabeça atada pelas mãos, a Czerny sem necessidade de mãos, de cabeça, de dinheiro, de chorar na retrete.


Bibliografia
(Primeira Parte)

1. História Universal, tomo 10, Carl Grimberg, Publicações Europa-América, Lisboa, Dezembro de 1967. Tradução de Jorge de Macedo.
2. Uma Luz com um Toldo Vermelho, Joaquim Manuel Magalhães, Editorial Presença, Lisboa, 1990.
3. História Universal, tomo 9, Carl Grimberg, Publicações Europa-América, Lisboa, Setembro de 1967. Tradução de Jorge de Macedo.
4. Poemas Ameríndios, mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997.
5. O Monstro de Olhos Verdes, Patrick Quentin, Editorial Minerva, Lisboa, 1963. Tradução de Eduardo Saló.
6. Octaedro, Julio Cortázar, Alianza Editorial, 2ª ed., Madrid, 1995.
7. Aura, Carlos Fuentes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 1971. Tradução de Pedro Lopes de Azevedo.
8. Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa, Maurice-Jean Lefèbve, Livraria Almedina, Coimbra, 1980. Tradução de José Carlos Seabra Pereira.
9. Em Busca do Tempo Perdido, 3, O Caminho de Guermantes, Marcel Proust, Livros do Brasil, Lisboa, s/d. Tradução de Mário Quintana.
10. E outros.






Segunda Parte

Estás quase às escuras — como o quarto onde, de olhos semicerrados, levas a mão ao coração para tocar uma dor que lá não está. Mas que é como se estivesse — estás a ouvir música. Arte e técnica da organização dos sons, a Música é também o ofício da dilaceração humana. Na obscuridade, vês as peles mortas da roupa na barra da cama: como jornais grossos. Uma estante onde vais caçar a bibliografia da tua pancada de homem só. Deixas o lado esquerdo da cama aos teus mortos. Estão sossegados, esta noite. Não bebeste nada o dia todo, talvez por isso. Pensas em 1933 (ou 35, ou 37), quando Benny Goodman articulou o quarteto que levava o seu nome de néon a Los Angeles. Mais o branco Gene Krupa (drums) e os negros Teddy Wilson (piano) e Lionel Hampton (vibes). Hitler galgava então o poder, nascia Ruy Belo em S. João da Ribeira (Rio Maior). Hitler só queria louros de olhos azuis, mas Goodman tocava com negros. Ganhou Goodman, perderam a Alemanha e o mundo. Sem notação sensível, já tiraste a mão do peito. Também tiraste o casaco, as calças, as botas. No quarto sem aquecimento, conservas o camisolão, a camisa, as meias. Janeiro entra pela janela fechada. Sentes, na horta-jardim, os risinhos das flores sonâmbulas, o cio das gatas e as lutas mortais dos gatos tentando capar-se uns aos outros. Os machos trincam-se os colhões. As manhãs nascem e nascem, nunca se fartam de nascer, parece impossível. As pessoas sim (mesmo Goodman, como José Gomes Ferreira), cansam-se. Uma noite, acordam, sem ter chegado a adormecer, num quarto vigiado pelos gatos de Janeiro. Sinatra está doente, mas é jovem na rádio, canta qualquer coisa viva num Setembro antigo. O peso do corpo aumentado pela lenha do sangue e pelas postas de gordura, afiado pelas unhas dos pés, penteado pelas tristes pestanas, amortecido pelo sal da música – o corpo na sua noite instalada. A fonte de luz é o candeeiro da rua: pontos de prata na persiana. Se, no lugar dos mortos, tivesses aí uma mulher, poderias ouvir a outra música: a respiração da adormecida. E poderias verificar como continuam aritméticas, no sono, as mulheres. Regulares, fortes, mães de mães. Todas as mulheres: aquela terrível de A Leste do Paraíso, de Steinbeck; aquela tão confrangedora de A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda; Madame Francinet, a que foi contratada para fazer de mãe de um morto, por Cortázar; e a Dinamene, do Luís (Luiz). No quarto, as mulheres levam-te, finalmente, a dor ao coração. Acaba-se-te a música, a hora, o capítulo.

Adeus, Czerny. O Tavarede chorou, quando lhe disseram. Tão longe, as vidas. E tão perto sempre, as lágrimas, esses cães de água. Achas tudo isto muito bem enquanto mijas, tomas banho, mijas, te vestes e sais para a casa dos bifes. No bolso do coração, dinheiro para dois dias mais. Ou para um dia e um livro de mil e quinhentos, mais ou menos. Júlio e Lucas estão por ali, saúdam-te, três vermutes com gin. Lucas, mais velho, explica a Júlio a ordem de aparição dos prédios da rua.
— Onde agora estamos a beber, era um baldio. No Inverno, enchia-se de água (salvo seja) até à anca dos miúdos, a gente. Alguém tinha despejado aqui (por assim dizer) uma espécie de cortiços industriais. Barcos de pirata logo, claro. No prédio do supermercado, era um monte: futebol, tropas de cowboys e porrada.
A conversa segue nisto, morna, prazenteira, três gatos à lareira do gin. A rua de hoje é de três balcões — os dois restaurantes e o supermercado-bar. Alvorada alcoólica a partir das dez da manhã. Até ao meio-dia, branco e vermute. Almoço, tinto. Pospasto, conhaque de engaço. Tarde (até 20 horas), tinto, branco e cerveja. Jantar, tinto. Pospasto: tinto, branco, conhaque, cerveja, whisky, gin, licor, porto, amêndoa, vodka, espumante, verde. Os reformados cirandam em roxa campanha. O Tavarede é, quando ocioso, um dos ases do copo. A senhoria assiste a tudo da sua janela-trono. Feliz, grita para dentro:
— Etelvina, vem-me ver a piela que o Eucaristia já leva agarrada às calças!
Por vezes, andas com eles. Lucas e Júlio, raramente. Vão almoçar a casa, embora seja sábado, dia de ossos e pratinhos de moelas. Comes ossos, bebes vinho escuro, lês no Grimberg (a propósito de Ticiano):
A sua Dánae não é a jovem adolescente de Correggio, mas uma mulher de formas soberanas, cuja garganta freme sobre a amorável nuvem de ouro.
Boa prosápia (pó e rosa, prosa, prosódia). Um conhaque, um café, um cigarro. Na televisão, um programa sobre pumas. Mais Grimberg, por favor. A propósito do conflito (já então, caramba) entre germanizantes e hebraízantes na Alemanha de Quinhentos, refere-se um título delicioso de Ulrich von Hutten:
Cartas de Homens que Procuram no Escuro
Este von Hutten é o mesmo que vai morrer na ilha de Ufenau, no lago de Zurique, e de quem disse Zuínglio:
Não deixou nada de valor. Na verdade, não tinha livros em casa.
Pensas instantaneamente que a miséria suprema deve ser isso: morrer numa casa sem livros.

Eucaristia (Mário) é o nome do reformado dos Correios. Sessenta anos de vinho e tabaco. Rijo como a lama. Bebe doze horas por dia. É um milagre da medicina. A mulher diz que não dorme há quarenta anos, mas não precisa se é por causa dele.
O que me causava pena era ver como quase todas as casas eram habitadas por gente infeliz
— lá está no Proust. Em Dezembro, a questão era a realidade, e a realidade era granulada e instantânea como os sucedâneos de café. Hoje, prandial, o teu pó é o da felicidade. A digestão amortece o nervo. Em outro Outubro, tinhas já enunciado algumas pontes para chegar (ou regressar, dá no mesmo) ao problema. Assim:

«A felicidade dos homens», dizem. Dizem mal, porque só estes existem, não aquela. O sistema é, na aparência, simples: ganhas de um lado, pagas no outro. A não ser que sejas americano, isto é, mais frio que a própria sombra. Ao balcão, a sombra do teu vizinho bebe, ou é feia, ou é mortal: mortalha que já espera. Não explicas bem as marés, a nudez da Lua, a vontade de dormir contra o relógio, a corte impraticável ao sexo oposto. É-te mais doce reprimir que exprimir, idolatrar que perguntar, explicar que implicar. Na tua miséria, uma vela arde em honra de Nossa Senhora da Humildade.

Uma palmada mole nas tuas costas: Rolando, técnico de máquinas de lavar. Corno assumido, não se quer lembrar da história em plena rua. A mulher acabou por não fugir. Esteve para isso há coisa de dez anos, mas o outro tipo deu as fodas e fugiu ele. Nem era de cá. Era, por assim dizer, um artista de fora. Já é quase noite, é noite já. Tinto e cerveja. Um conhaque, agora, seria perigoso. Rolando oferece cerveja. Há futebol espanhol marcado para hoje. No fim, Lucas, Júlio, bilhar. Rolando bebe, paga, talvez apareça logo no café do toldo amarelo, a casa de homens com nome de donzela.

Noite toda feita de pele. Prata e água, fermento e indústria de homem só. Bêbado de mais, se caísses no chão terias de ser apanhado à colherada. Lembra-te de quando trabalhavas, quando ganhavas o teu. Lembra-te de como já sofrias no escuro a palpitação da cabana. Respiravas para compreender com exactidão o quanto os fins da vida se parecem com os fins de mês. Noite enorme, maior que o século e maior que o teu corpo. Os anos passam como comboios de sentido único. Toma uma bebida, come uma sandes de ovo, olha o teu Grimberg: no original, Varldshistoria, Folkens Liv och Kultur. Pois. Apertado no bolso do casaco verde, agora mais verde por causa da chuva que o alcançou contigo dentro. Só é possível pensar numa História Universal quando as histórias individuais são uniformes, uniformizadas, toca a marchar.

Recordando o francês Rabelais (o que inventou a palavra “nefelibata”), Grimberg chega às bebedoras e humanistas lições do herói Pantagruel. Panta (“tudo”, do grego) e Gruel (“alterado”, do agareno) — O Rei dos Sedentos. “Um colega famoso”, pensas. Pensas bem. À saúde, Rabelais:

e nós sustentamos aqui que não é o rir, mas o beber, que é próprio dos homens, e não digo o beber simples e absolutamente, pois também os animais bebem, mas sim o beber vinho bom e fresco

— grande François! Que diria o Eucaristia, se tivesse ao menos ouvido falar desta literatura de meados de XVI? Humana, humanista, humaníssima: enóloga, pronto. A Czerny não bebia. Antes bebesse, rematas.

Bilhar completo: tu, Lucas, Júlio, Rolando. Rodadas. Séries grande e pequena. O proletariado todo-o-serviço da bola branca. O ar papal da preta. Rodadas. No regresso a casa, sentes-te homem pelo pior dos lados. No cu da alma, a visão de um cãozito espancado pelo vento. A fome, a pequenez, a completa solidão de um cãozito. Esses olhos terríveis de cãozito, punhais de licor num coração de cristal. Não tinhas nada para lhe dar, impossível voltar ao café para um pão com carne. Para mais, o dinheiro destes dias tem ido pelo ralo de bolas, fumos e copos. Já na cama, fumaste de olhos fechados. Mas o cão subia no fumo do cigarro. Uma glória insensata: ter uma vida anotadora de cães de rua. Nem soubeste que foi encontrado morto na manhã que se segue. Outro que deixou de beber, vês.

(Na cabeça, a colecção de cromos – as brancas mãos onde achas dinheiro nocturno. Neste livro, jantas, bebes e fumas a partir do dinheiro de secretas mãos, brancas mãos surgidas do preto da noite. Beber como um bidão de cal. Uma cor encarnada nos lugares da humilhação: as bochechas, menino. Mas continua, diz que é de manhã quando achas dinheiro na paragem do autocarro.)

«Lá estava ele, dentrinho de uma saca plástica com flores: trinta e quatro mil coroas. Eram dez e meia da manhã, tinha vindo para a cidade de táxi, ou de tipóia, ou de avião. Pus o dinheiro no bolso do coração.»

Estás noutro café da terra, à espera de Óquio, um subchefe de armazém. Vicente telefonou-lhe para que te arranjasse um emprego nocturno. Explicou-lhe mais ou menos a situação. Não se pode viver para sempre na oposição. Em Inglaterra, pode-se, mas já é um sistema antigo, os lordes e os comuns habituaram-se a estar como desempregados do poder alternado. Para melhor suportar a espera, bebem porto e fumam charutos, comem bifes e louras oxigenadas.

Óquio fez tudo o que pôde. Resultado, nada. O doutor-chefe do armazém queixou-se, de mãos na barriga global, dos maus tempos económicos, do difícil que é precisar de empregados, do impossível que é pagar-lhes uma decência mínima. De modo que sorris na penumbra da chuva que cai lá fora. Enquanto ouves de Óquio a gentil escusa (em figura de epânodo, notas), peixes de cor nadam no aquário da TV por cabo. Vais ter de continuar com a brincadeira de achar dinheiro. Ou, então, rumar já a Noruega, a cabana, os abetos, o chiar do toucinho na brasa, o café no púcaro de folha a dizer que é um tordo.

Todos os fios soltos. Ao telefone, Vicente garante-te que vai telefonar a outro doutor, que tenhas calma. Que sim, garantes, que não há crise. Mentes, claro. Janeiro, etc. Et coetera e as coisas restantes. Para ti, que resto, rosto, rasto? Ris-te, em riste, das ilhas de troca: as palavras, essas minhocas fluorescentes. Curto horizonte. Vai a noite a caminho de si mesma, toalha, véu, folga de Deus. Os santos operários voltam da fábrica de azulejo. Cordeiros balem numa calçada cheia de carros parados. Uma chuva transversal chama a hora da sopa. O bolor arde nas velhas senhoras.

Recolhes-te já à mansão dos bifes, onde te convidas para uma bebida. Um copinho de aguardente para convocar a febre. Já horas passaram sobre o pobre, solícito Óquio. Não apenas os caminhos da literatura são ínvios. Também os da cabeça o são: razão, emoção, essa imagem convocada por ninguém e que te surge por dentro, ao mesmo tempo que, com um brusco golpe do pescoço, engoles a aguardente: o pé esquerdo da Adormecida acumula a luz precária, a primeira do dia, numa cama que vais partilhar. Na língua, convivendo com o rasto de terra queimada escrito pelo bagaço, o sabor, a beleza e a tragédia da besta erótica: a atracção e a repulsa, o tacto, o paladar das aranhas. Chuva na noite, e ambas em ti. A vida complicada pelos sentidos. O olhar de bebedor, já impermeável às cabeças agora estrangeiras. As cadeiras anunciam o labirinto, onde, na morte ou na insónia, terás de buscar os teus resíduos. A comida é-te servida, comes com a cara de girassol virada para o astro televisivo. Uma salada: alface e cebola lavadas em azeite frio e esporradelas nervosas de vinagre. Os lobos rondam a quinta-feira urdida pelo teu coração. Seria bestial, talvez, teres arranjado o emprego. Poderias deixar de achar dinheiro, de escrever, de olhar o teu espelho com um remorso cristão. Goethe, morrendo, pediu mais luz. Pessoa, os óculos. Tu, vivendo, café e um conhaquinho, assim palatal. A tua vida é um peido com aspirações a desodorizante. Espera: ao balcão, um bêbado (um tipo dos comboios perdido de bêbado) começa a cantar. Voz fadista, ferroviária. A dona, que jantava na cozinha o jantar secreto das patroas de restaurante, acode à boca de cena. Manda o homem calar-se. O homem cala-se. Baixa os olhos, começa a chorar sem ruído. Os outros evitam olhá-lo. Homem em sua ilha de sal. Homem que bebe entre homens que bebem, homens sem ofícios gentis. Mamas devagar a cena. Não conheces o nome do ferroviário, mas é indiferente: os que bebem, usam o nome do que bebem. Pedes a conta, que pagas assaltado pela dispneia. Deixas-te, ronceiro, no mesmo sítio. Já se foi embora o cantor que chorou. São as onze da noite, restam sete ou oito homens, cada um em sua mesa. A rapariga gorda ciranda com um pano à cintura. Cita, ou recita, qualquer coisa. Proust:
Mas justamente porque o instante pesava sobre nós com tamanha força, aquela tela tão fixa dava a impressão mais fugitiva, sentia-se que a dama ia em breve mover-se, os barcos desaparecerem, a sombra mudar de lugar, a noite descer, que o prazer acaba, que a vida passa e que os instantes, mostrados ao mesmo tempo por tantas luzes que se lhes avizinham, não tornamos a encontrá-los.

Os números funcionam como ossos da realidade. A realidade, prateleira de dias com suas ressacas inumeráveis. E os dias numerados, que, afinal, negam a sucessão — oito de Junho, nove de Março, onze mil de Janeiro. O número deste dia. O número deste mês. O número desta boca. O número desta mão. Os números da conta riscados pela gorda mão da rapariga na toalha de papel. O número do bebé fulminado pela trovoada inglesa (notícia da rádio) é um número de anjo electricista. Desligas a música, lês até a madrugada se sentar numa cadeira de cantor. Desligas a luz para dormir, mas sobem-te ganas de vomitar o coração. Gemes até à sanita, onde Czerny e as coisas restantes. Despejas-te com uma inclinação competente: a eficiência é filha da repetição. Regressas à cama, já a aurora penteia de listras a parede da cabeceira. Olhos fechados, uma grande paz falsa no corpo. Ouves, no sonho, o cristalino cantar de crianças. Tuas filhas: a solidão tóxica e o anis da tristeza.

Na manhã (na noite), achas mais dinheiro num sítio qualquer, de quaisquer mãos. Sentas-te na paragem do autocarro. Faz sol (de prata). Ficas a ver passar a comida do tempo: os homens, as mulheres, as cores das casas. Vês a corrida de um homem que enlouqueceu há muitos anos. Professor de Direito Romano, respeitado (mas todos os professores de Direito são respeitados, não se sabe porquê), casado e o resto da fita. Um dia, enlouqueceu. Despiu-se na rua várias vezes. Internaram-no, aposentaram-no. Já sai à rua, não se despe já. A pancada dele é andar depressa. Pões-te na cabeça guiadora dele, como naquelas filmagens feitas dentro dos carros da Fórmula 1. Vês o V da velocidade, o V da vertigem, do valor do vento de Ruy Belo, o V da Avenida com todas essas pessoas que se afastam do écran dos teus olhos como árvores ou postes de iluminação. És obrigado a parar para retirar os insectos que se esmagaram contra as lentes dos óculos. Voltas ao teu corpo central, narrador. Do banco da garagem, vês quanto emagreceu o professor, quando se precipita para a final dieta da dissipação. Voltas a pé para o bairro dos teus cafés. Mesmo com o novo dinheiro, voltas a pé. As estações ferroviárias são exposições permanentes, e universais, do mundo. Passas a estação (onde trabalha o cantor de ontem), passas o tempo, esse rio de onde tiraram todo o ouro. Neste ponto do regresso, poderias reunir-te ao Jack London da corrida ao ouro no Klondike, Yukon, a partir de 1896. Mas és de momento um pedestre apenas, apenas um imperador de pernas atiradas para o fim da manhã, não um exegeta mineiro. Há um atalho pelo monte. Segues pela ferrovia. Há aí casas em ruínas, antigos dormitórios de maquinistas. Entras numa. Evitas pisar as cagadas humaníssimas que todas as casas abandonadas usam em lugar de móveis. O cheiro inequívoco do sítio faz estremecer a carne: uma baforada de peixe excretado por dezenas de piças e de cus sem nome sem número de contribuinte. Mijas o mais depressa que és capaz de, os dedos em anel de força no prepúcio. Aprecias o esguicho, agrada-te que essa torrente seja grossa e pessoal, que seja a mais fervente das tuas assinaturas. Um solipsismo: o teu mijo é aromático; o dos outros, fétido. Guardas-te, corres o fecho, sais para os carris da manhã. À direita, o monte que vais subir e descer. Em baixo, o carreiro guardado por cedros velhos aponta a tua rua. Chamar tua a uma rua, que carago. Os operários da fábrica de azulejos (casados com as operárias da fábrica de bolachas) almoçam ao meio-dia. Ei-los, uma horda de gente invadida pela sílica. Falam de futebol. Vão ser felizes por uma hora. A vida de toda a gente é um salto mortal na vida dos outros, aqueles que, somados a ti e a mim, dão toda a gente. Isto é formoso e verdadeiro. Mas aí está Óquio à tua procura. Tem novidades.

Num dos sítios, tomais café e água mineral habitada por invisíveis mergulhadores. Óquio tem uma mirada de cãozito. Cheira a pêssego e a coral fresco. Trata-se bem, não ganha mal. Explica-te que há possibilidades de seres admitido no armazém, sim senhor, mas só lá para Fevereiro ou Março. Tu pagas, mesmo com tanta insistência indignada dele. Ele não sabe que tu és um achador.

A tarde estende-se, maravilhosa. Tarde januária, clara, fria. É o grande mês das rosas:

Não há pão como o pão alvo
Nem rosas como em Janeiro
Nem luar como o de Agosto
Nem amor como o primeiro

De pão e de amor, pouco sabes. De luar e rosas, um pouco, sobretudo quando estas e aquele são elementos do banquete literário. Sim, porque há palavras que sobrepassam o hímen referencial para chegar à polpa uterina que dá sinais de luz. É quando a palavra-operária se torna palavra-turista. Noite, dinheiro, sangue, água, vinho, etc. Uma velha atravessa a rua a cerca de duzentos metros desta história. Passa devagar, levada pelas maneiras lentas dos leões. Na grade do jardim da casa de quartos, o sol e um pássaro cheio de glória pessoal. Eucaristia e mais dois convidam-te para um dominó. Aceitas. Sempre é uma maneira de juntar as pedras do esquecimento.

A noite ouve-se com a pele. Cada bico paga uma rodada. A vaga alegria que antecede as sopas da noite. Só depois, no famoso pós-prandial, é que a merda se põe a ler-te o global estado do coração. A esplanada dos bifes é coberta por um toldo vermelho. Faz frio, mas sentas-te numa dessas cadeiras de plástico branco. De onde esteve o pássaro, em frente à tua janela (chamar tua a uma janela, que carago), voa o cheiro a rosas cortadas, doidas de minério e de mijo de magros gatos. As flores embebedam o ar. Tempo para Astecas e Herberto Helder:

Pergunto, sacerdotes,
De onde vêm as flores que embebedam o homem,
o canto que embebeda, a beleza que embebeda o homem.

As flores respondem-te que foram incendiadas pelo sol, o que se voltou para os funerais do dia, do mundo vermelho. Cada flor, cada voo de cheiro. Cada cheiro, cada nota para o desemprego do coração. Sentes que és o sul da chuva, mesmo quando, como agora, não chove. É uma noite lavada por deusas robustas. Uma mulher antiga, numa cadeira de rodas, pode estar a manobrar os panos da noite. Sobes a aldeia até o café com nome de menina. O teu nome sobe contigo para ser fumo. Escreves na confusão humana: viste todos os barcos porque viste um. Mesmo que não seja verdade. Mesmo que o desespero não seja a tua virtude, mas o teu vício. A tua vida numa antemão de comboios. A tua vida com o teu corpo todo dentro dela: grande foda. E já na prática se torna ontem o que hoje, sem préstimo, escreves. Basílio está a rir num tom altíssimo. Percebeu uma piada da televisão. Mais ninguém se ri. O Bazelina cala-se. Rosna:
— Cambada de cabrões!
É no momento em que sais do urinol. Pensar é difícil por causa da luz e dos pulmões. Cinco ou seis gajos na meia-noite. Cinco ou seis gajos no nadir do sol. Todos tratamos a vida e o dinheiro como putas iguais. A todos, os dias pesam como vísceras de peixe. Virilhas, ilhas viris, precisamos de beber uma coisa qualquer. Rolando, presente. Escolhe taças de vinho.
— O vinho é mais rápido que a cerveja – explica-te.
A noite, lá fora: do tamanho do Brasil. Basílio, o dono, Rolando, os outros e tu: matéria de ventos corredores. Muitíssimo vinho para que o corpo leve porrada. Cá dentro, os olhos dos homens: estrelas despidas pelo excelente luar de Janeiro. Rolando conta que a mãe está a ficar cega. Diabética, entrevada, continuou a deitar três colheres de açúcar na caneca de chicória. Uma senhora que já só suporta a vida nas usuras do açúcar. O dono lamenta a sorte da senhora.
— Sorte o caralho — corrige o Basílio. — Azar, caralho, azar!
— Vai dizer asneiras para o caralho! — envia o dono.
Rolando passa ao assunto de uma guerra esquisita na Polinésia (ou Indonésia, não sabe bem). É uma guerra de azuis contra verdes, uma coisa de religião.
— Essas merdas da religião só dão nisso — interpreta o dono.
— Houve lá uma coisa do caralho. Um gajo da ONU levava para a zona verde o coração de um gajo que tinha morrido na zona azul. ONU ou Cruz Vermelha, uma merda dessas. Era para um transplante, se não o outro gajo morria. Vai, os sentinelas verdes não sabiam quem era o gajo e espetam-lhe um tiro na molécula. O gajo é claro que deixou cair o coração do outro gajo e estragou-se. Quando deram por ela, tiveram de utilizar o coração do gajo da ONU para a tal operação.
— Ele há coisas do caralho! — sintetiza o dono.
— Foda-se, c’um caralho! — concorda o Bazelina.

Na tua cabeça, o cinema duplo da conversa. A imagem de um gajo com o coração nas mãos (como Cristo) e a imagem destes companheiros a falarem de coisas que tão mal percebem (como na sátira O Bilhar, de Nicolau Tolentino, 1740-1811). Tu, igual, mal percebes o que seja e sejas. Estás no cinema das frases, das imprecações, dos pedacinhos de saliva e de comida atirados pelas bocas falantes dos bebedores. Numa noite de maior descanso, ouve-se aqui a voz altifonada do homem da torre da estação. A voz chegada parece vir de um longe aprofundado pela noite. Comboios fervem na massa da chuva, gemem no ferro como parturientes, comboios na noite carregada de maus poetas e mães solteiras. Uma cintura de tabernas marca a constelação ferroviária. Muitas vezes aí engordaste a espera e o destino. Soldados cheios de oxiúros berravam asneiras e M64s.
(Escrevo para impedir a leitura. Fiz alguns homens automobilistas. O verbo fazer dá para quase tudo, agora. Fiz a fábrica de artefactos de borracha. Às vezes, é como se tivesse pontes dentro, e eu me encontrasse a olhar para mim na outra banda. Um gajo como eu.)

Noite, História Universal da Pele. Dá para derivar na tonsura do prepúcio, molhada pele de histórias, esperas, esporas. Herculano não recuperou a fala escorreita de outros dias, todos os dias antes. É velho, teve um ataque ou caiu do tractor falado e falador de António Osório. Não faz as cruzadas.

(Lembro-me de a geada ser o verniz do mundo. Pensei sempre: se esta terra está aqui sem um casa ou uma estrada em cima, então está aqui desde sempre e assim desde sempre. Terra do tempo de Madame de Sévigné, do tempo de Carlos V, das tardes improváveis de Gil Vicente, Isabel de Este, Amundsen, Scott, Cook, Magalhães, Joyce, do tempo de tantos mortos. A geada é a neve possível deste país. Um país em que nem o frio mete respeito. O calor sim, às vezes. Lembro-me de ontem. Zarlos não aparecia há coisa de quatro meses, talvez mais. De modo que comemorámos a reunião com uma monumental. Trouxe-me de carro até à porta. Devia-lhe mil e quinhentos, quis pagar-lhos, não aceitou. Deu-me um genuíno aperto de mão, desejou-me boa sorte e foi-se embora. Fiquei a ver as luzes vermelhas até que se derreteram na névoa. Seis da manhã, já havia geada.)

Esta noite, achaste mais dinheiro junto ao portão da fábrica de artefactos de borracha. Uma nota de cinco mil, um lance rápido. Baixou, levantou. Vieste a pé para a rua, o dos bifes estava quase a fechar. Bebeste três copinhos altos. Na televisão, um filme policial. Puseste os olhos pisados no filme. Poucos gajos vivem em volta, e todos vêem o filme.

Os amigos, tal como os mortos e as cidades, colaboram em cada homem.
É Borges, antes da cegueira.
— Colaboram, como? — pergunta Óquio.
— Colaboram, ou seja, é como se a ideia que temos dos mortos e das cidades ajudasse a nós percebermo-nos a nós mesmos.
— Pois, é capaz — trava Óquio.
Pequeno pardal, Óquio. Óptimo rapaz. Estudou à noite até poder. Depois, e para sempre, a família, o trabalho, os livros do outro lado da pele.

A tua mão direita é mineral, dedicado pisa-papéis. A tua mão direita, estrela de cinco pontas, «pensa primeiro num rio que queira morrer». Escreveu estas aspas há anos, há muitos anos, há demasiados anos, que é o que se diz dos anos quando já se não pode contá-los. Foi quando a poesia se tornou uma floração material, uma cabana toda interna, refúgio da miséria moral já anunciada no tempo da primeira escola. Piso de ventos corredores, a tua cabeça atirou-se à ilusão e à alusão constantes. Para poderes ser pobre, fizeste-te passar por muito pobre. Como então, hoje são outra vez esses teus versos:

As larvas do sono e do anonimato que fazem
cair a pele dos dedos e a água dos olhos.

Na noite viva da tua cama, o sono adocicado dos teus mortos. Os mortos morreram todos ao mesmo tempo. Leva-los ao mar quando vais ver o mar. Oceano carregado dos grandes julhos da infância. Infante, o que não fala. Depois, a paixão, já escrita, pelas enumerações: o crescimento da barba, a cabana na montanha, a canoa para o rio e o peixe, o cometa a mostrar o firmamento aos inquilinos, um pensamento de raposa, a chicotada do esperma numa frase de engate. Sonhas, e és triste dentro do sonho. A tua gordura, cera de fim de século. A tua sombra, linda, de homem vulgar. No sonho, de frente para tudo, de perfil para algumas coisas, de costas para nada. Anjo. Tesoura. Repetes-te a material lição: somos sacos de vísceras apertados em cima por um olhar. Hélice, escuramente. Um torso de mulher através da chuva, um rosto de cavalo. Um pescador à linha, um sentido proibido pintado de azul. Estás vivo na onda salina. Aritmética, astrologia, azeite. A cona de um deus andrógino. Cartas à família, cigarros sem filtro e cobertores ásperos. Percevejos, chuva suja, guerra. O bolo alimentar. Muita chuva e o desenho da mão esquerda durante um sono, este. Veia. Levantas-te para mijar, o sonho percorre contigo o corredor, toma nota da tua pobre piça trabalhadora, que mija para os joelhos transparentes da morta Czerny sentada na sanita sem chorar. No espelho da casa de banho, paciente, esperava-te Mauro. O rosto de Mauro fala-te, embora o desenho animado da boca do morto não corresponda ao desenho das palavras ditas. Pastagens do céu para o mal-aventurado. A vida não verbal do morto Mauro. As flores tóxicas de cada amigo, a natureza anti‑respiratória dos bebedores e das velhas que vieram à celebração. O padre da voz resignada. O féretro automóvel. A circulação dos bens e a estagnação do mal. A falta que passou a fazer, etc. Foi assim, então, o mundo dos primeiros dias sem ele: a guerra da Jugoslávia, etc.
— Queres o quê, Mauro?
— Quero que saibas que há vida depois da morte, mas é pior — diz-te o espelhado.
Dormes, apaziguado, um minuto depois.

Vais sair para o café da menina do nome. Mesmo que te não apeteça, vais sair. Assim pudesses sair de ti como sais do quarto de renda. No café da menina nomeada, a notícia da morte do cruzadista. Herculano, nos seus sessentas, tractorista caído em mau jeito. Bebedor de poucos contos, falador de poucas e cordiais palavras. Não escreveu nunca, nem nunca leu, um livro. Se o tivesse feito, de nada lhe adiantaria, agora. Agora, é o velório, para onde segues com Lucas. Numa sala da igreja, perto de onde esteve a mota quebrada do homem com sangue. Um cheiro a flores cortadas há muitas horas, um ar menos respiratório por causa da obstinação ardente dos círios. Murmúrios, olhares abafados para ver quem chega. Procuras o filho mais velho. Está cá fora a fumar e a falar de trabalho com dois homens velhos. Morte na Agricultura, uma obra do Engenheiro Bacelos. Sangue no Campo, um drama do Professor Ribeiro. Tragédia entre Hortaliças, uma peça radiofónica de Maria da Luz. Uma Merda Triste, pensas tu. Na tarde do outro dia, o enterro. Faz um sol frio, mas de repente desata a chover tanto que se não vê um metro à frente. Estoira um trovão, as velhas ganem como cadelas pontapeadas. Quase ninguém trouxe chapéu. Uns acolhem-se a beirais; outros, seguem na esteira estóica do carro funerário. À beira da cova, o padre encomenda depressa a alma de Herculano, o homem vertical posto na horizontal perpétua dos idos. O coveiro tem de sacar à baldada a água do buraco. Põem Herculano na lama, atiram-lhe duas de cal e mais lama, está feito. Enquanto regressas, agora com Júlio, Lucas e a dona do café dos bifes, ao café com nome de menina, pensas na moratória negada a Herculano. Cair de um tractor, vir do hospital mais ou menos, achar a morte deitada na cama à espera que adormecesse. Há um poema de António Osório chamado Fala o Tractor. Osório inventou a voz da máquina, que lembra coisas:

Constante sou, trepido, usam-me,
servo da gleba.

Nada de estranho, uma máquina pensar, dizer um poema. Quando morremos, como agora Herculano, passamos de pensadores a coisas que fazem pensar. Lembra o Ricardo Reis perante a morta:

A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
No abafo subterrâneo,
Da húmida, imposta terra.

Pronto. Quer dizer: tudo o que aconteceu está já escrito. Escrever e viver são repetições. Para Borges, as repetidas vazas dos jogos de cartas no tempo provam a eternidade, demonstram a possível refutação do monstro Tempo. Herculano, esse, age agora como repetidor dos mortos, um morto novo para um funeral perpétuo. Consideras que tudo isto é muito consolador, que tanto se morre de miséria como de fartura, de frio como de fogo, de livros como de revistas. Herculano. Tantos do tantos a tantos do tantos.
O outro, o Herculano da História, foi-o entre 1810 e 1877, entre Lisboa e Vale de Lobos. Meteu-se, inteiro, na poesia, no romance, na História. Andou na guerra: foi um dos sete mil e quinhentos do Mindelo. Os quatro tomos da sua História de Portugal saem entre 1846 e 1853. Negou a lenda da aparição de Cristo em Ourique, o que lhe valeu os aziúmes da padralhada. Foi a sombria silhueta da Torre do Tombo, homem totalmente dentro de papéis. Mandou quase tudo à merda e foi para a Quinta de Vale de Lobos, em Santarém. Herculano cultivou a terra, como Herculano, mas sem tractor.
Dois ou três copos in memoriam H. no tasco de cima e regressas à tua rua no carro da dos bifes. Antes do jantar, um salto ao quarto. Uma citação mais? Menos uma citação que um truque de falsa nostalgia de leitor. Rebuscas algo sobre pêras e Alexandre Herculano. Cá está:

(1853) — Agosto 29. (...) Descida áspera para um vale extenso, onde aqui e acolá no meio dos matos se vê algum raro olivedo ou campo cultivado: meia légua pelo vale abaixo a pequena aldeia de Meimoa. Paramos aí e comemos queijo e pêras numa taberna. (...).

Então: ambos os Herculanos mortos e enterrados, mas o mais famoso comendo, ainda, queijo e pêras num descanso da volta a Portugal que fez para copiar documentos históricos. Tinha quarenta e três anos de idade. Esteve na Sé desta cidade de avenidas e seguradoras, a copiar. Talvez não tenha vindo nunca a esta aldeia de Herculano, o morto de Osório.

Devolves-te ao café. Jantas uma coisa qualquer, mas não encomendas uma qualquer coisa para sobremesa. Pedes, e és servido, pêras e queijo. Estranha vida, essa que os livros dos mortos prolongam por nós. Somos os degraus dos livros e o rasto dos livros. Sentes-te bem com a ideia. O poente de um dia de funeral é sempre tranquilizador, alegre.

Por causa da religião (por causa dos medos à custa dos quais todas as religiões se mantêm vivas e fortes), a morte é mais prestigiosa que o nascimento. Por isso (para contrariar isso) contas que nasceu uma neta à Faladora. A Faladora é uma mulher que sobe e desce ruas e autocarros sempre a falar. Entra e sai dos dois cafés sempre a falar. Supermercado, falar. O marido da Faladora diz que ela fala a dormir. Que até já lhe bateu duas vezes por causa. Mas diz que foi pior: acordou e desatou a falar. A neta da Faladora (filha de filha) é uma rosa de três quilos e meio. Duas vezes menina, filha da minha filha. Trouxeram-na em andor aos estabelecimentos comerciais. A avó explicou o parto, os médicos, as contracções, os intervalos das contracções, as ecografias, as leituras de sangue e urina, o acto sexual de origem. A menina nasceu no primeiro dia do mundo sem Herculano. Terá de estudar alguma História, comerá decerto muitos queijos e pêras. Ver-se-á envolvida, toda a vida, em palavras cruzadas.

Daniel Abrunheiro, Século XX










Canzoada Assaltante