25/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 22, 23 & 24

© DA.




 

“Isto é uma grande chatice, Maria Alice.”

Trio de professoras aposentadas em conclave.

É na esplanada larga que panoramiza o Mondego.

Dez & ¼ da matina de sábado, último dia de Abril.

 

Falam de uma quarta que foi a Londres ver a neta.

“Não é disto que se precisa, Maria Luísa.”

Divertem-se não-carnavalescamente.

Gozam a reforma, a sexualidade extint’apaziguada.

 

“É isto que procura, ó senhor Ventura?”

Um gato vadio aceita esmola em formato ração-seca.

E elas falam das mulheres descalças que vinham ao 4-de-Julho.

Calçavam-se ao chegar à ponte, prontas para a Rainha Santa.

 

O Sol abre-se em rosa omniluminosa.

Comentam que a tarde será cálida & calorosa.

Passa o marroquino dos tapetes ombreados.

“Não se poupe. D.ª Teresa, à certeza dos cuidados.”



**** 


 

Grand’enorme Delfim meu:

 

Escrevo-te no mais recente sábado da história da cristandade.

Nada receio, tudo me parece declinável como os casos sintácticos latinos. Falo-te de declinação ou – deveras & de facto – de declínio? Sou o teu Hermínio – pelo que interpretarás a teu bel-prazer, de facto & deveras bem.

Busco quási nada. Espero tão-só o passamento absoluto. Entrementes, versejo(-te) lances quotidianos – da quota dos dias. Se é pouco? Pouco é como todo-o-cuidado.

Durmo no quarto do meu paterAvô. Acumulo conservas & outros alimentos-secos no roupeiro. Vou comendo às colheradas lentas. Tenho bebido muita água. Possuo um quadrilátero de sabão-azul-branco, com que esfrego as minhas anfractuosidades mais íntimas. não cheiro mal. Não ainda.

Relato-te quanto ouço: septuagenários falando de um abastado que tem uma quinta “lá para Penela ou assim”. É como falar da principesca boa-fortuna alheia: casas-de-bonecas, valiosíssimas no mercado imobiliário, que os chineses dominam.

Delfim, meu caríssimo: escuto muito para sofrer pouco. Ou um pouco menos. Há festival-de-sopas no Terreiro da Erva. Alguma gente fazendo alguma coisa – já integrei tal clã. Mas ontem não é amanhã.

Fui ontem a uma entrevista pró-formação-+-emprego. Não fui seleccionado: a idade (des)conta. Crepusculo-me, por assim dizer.

Mais coisas? Algumas se rebelam & se revelam:

 

Os óculos-fumados à Camilo da recém-parturiente

O gato vadio que busca humanidade em afinal só-gente

As professoras aposentadas debicando chá-biscoitos

& a minha própria memória de tão antigos coitos.

 

Voeja a varejeira de volátil volúpia

De chuva não houve este Inverno cópia

Isto está por um fio, que cerce se esgarça

Escrevo-te no sábado – mas chegarei a terça?

 

Pessoas sentadas em suas vilas como em bancos de cais

Sabes de que te falo? De alternativas vi(d)as

Contemplo-as em meu tempo-vivente, pouco me demoro

Tudo & todos prévios a campo-santo, abençoado ou não.

 

Imagino Ruy Belo em seus dias de Espanha

Suas manhãs iodadas na Praia da Consolação

Agora que morreu, ninguém já o apanha

Agora que lido, sim só, em alguma boa edição.

 

Revejo-me lendo Júlio Diniz em vesperais horas

Tremulavam na ínsua os grilos cantores

Tenho quinze anos, não estou a desoras

Hoje sim assim sou, a preto-&-branco sem cores.

 

Amanhã é Maio, manda o calendário

É meu mês de nascido, pelo dia oitavo

De que(m) me perdi? Para que silabário

Tenho gaguejado meio-morto-idem-vivo?

 

Acabo de falar com um jurista reformado

É ex-fumador (mas só de há três anos)

Gaba-se (& bem) de um filho mui bem colocado

Diz-me que papava cigarros amailos charutos cubanos.

 

Tenho mais dívidas do que dúvidas, meu Delfim

O essencial desapercebe-me, receio-o bem

Sinto muitíssima falta da minha Mãe

& de meu Pai também, aliás & enfim.

 

André resolve do pasquim as palavras-cruzadas

Sabe de cor a pátria em que nasceu Abraão

Tem com a ex-mulher contas complicadas

Separaram-se logo que ele se soube cabrão.

 

Acordo antes das sete, pela aura da névoa

É em leito sozinho, a ninguém incomodo

Só que não em país nórdico, álgido & níveo

Ainda um dia destes ou renasço ou me fodo.



**** 


 

A noite ainda não é para já.

Devorarei a tarde como puder.

A manhã já não é, dissipou-se.

Nem sei que horas possam ser.

Domingo, malfadado dia eterno.

Sento-me & sinto-me. Para quê o quê?

Aves pequeninas, coloridas, engaioladas em varandas altas.

A Cidade desertada, raros autocarros.

O meu paterAvô, há um século, em seu/meu quarto.

A vida, também ela, de-Fora-de-Portas.

Como posso ainda criar alguma alternativa?

Mesmo outonalmente, alguma prova viva?

 

 

 

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Canzoada Assaltante