18/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 16

MaterAvó Catrina Abrunheiro




O meu paterAvô, José A., arrendou quarto na rua mesma onde ora dur(m)o.

Pouquíssimo sei desse pai de nove crianças.

Era condutor de eléctricos municipais, patrono em Antuzede.

Dominava as artes da poda & da enxertia de árvores-fruteiras.

Alfaiatava ele mesmo a roupa dos filhos.

Morreu aos 48 ou 50 anos, encerrados para sempre seus olhos azuis.

Mulher dele, a minha materAvó morreu por volta do meu nascimento.

Era Catrina, foi vendendo as courelas para não famelizar os filhos.

 

Tudo isto é remo(r)to, não tem torna nem remédio.

Escrevo no intuito de suportar o meu século: & a minha brevidade.

Ancoro-me a figuras que meu Pai adequadamente venerava.

Mal me não há-de fazer: como mo fazem estes dias sem horizonte.

Levanto-me muito cedo, revisto-me depressa, retomo da rua o deserto.

Falaram-me hoje de coisas hortícolas, gostei de aprendê-las.

Talvez comece a trabalhar pro-bono em uma horta comunitária.

Os versos sustentam-me – mas não me dão sustento.

 

Ciprestes vangoghianos em labaredas girassólicas?

Sim, siderais & sob estrelas auroraboreais, eólicas.

Muito pode a loucura demandando, indefessamente, a Beleza.

E para quê, senhor meu paterAvô, para quê?

O senhor, capaz de pôr laranjeiras a gerar limões: quem sois?

A sua Rua de Fora de Portas é veramente a minha da Figueira da Foz?

Nove filhos de uma mesma & só mulher: quantos limões.

Soube o senhor da Primeira Grande Guerra – e nada da Segunda.

 

Sou Hermínio, vi esta matina a mais desejável senhora-menina.

Ainda assomos-repentes de desejo me assolam? Sim, mas pouco.

Vi-lhe no sinistro anular o áureo (arg)anel de casada.

Respeitei-a em o mais devoto silêncio, sangue me não inchou os tecidos erécteis.

Aprendi coisas da hortícola ciência: cogumelos, milagres fúngicos.

Já a noite sitiou esta porra toda, dormirei a sós.

Está estragado o fecho da janela ocidental do meu quarto.

A corrente-de-ar às vezes neva-me a sonhadoria, a inquietude.

 

Hermínio aplicou esta semana dois euros & meio no euromilhões.

jackpot gordo: mudar-lhe-ia coisas rijas no sentido editorial.

Uma casa na Figueira da Foz, alguma cabana na Noruega.

Dez anos de prosperidade, repletas as Filhas de futuro-garantido.

Tirar gente da rua, criar uma sopa-dos-pobres-à-la-Sidónio.

Comprar uma bicicleta, deixar o tabaco, diminuir a aguardente.

Ser no mais como a demais gente: mas menos camusianamente.

E florir mais, muito mais, os mármores bidatados dos Mortos-Amados.


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Canzoada Assaltante