© DA.
As pessoas
nos transportes-públicos: como em museu de máscaras de cera, aqueles rostos
absortos (meio-vivos, meio-mortos).
Obras
demoradas em diversas vias da Cidade. Profusão de homens que trabalham &
abundância dispersa de seres irredimíveis, sentados no chão com cães a seu
lado, pacotes de vinho-de-cozinha, mantas, sacos cujo lixo lhes resume as
existências.
Sim, a glória
de tudo isto – enquanto é possível olhar. Chávena de ponche escaldado com uma
unha de limão. Cabeleireira de ademanes bruscos, galináceos.
Cavalheiros-maltrapilhos compondo livros sem possibilidade de escaparate.
Rapazes adoradores de motociclos.
Hermínio,
seus dias estilhaçados como no firmamento o diadema estelar. Dorme sonhando
pomares & ínsuas, estepes de gelo azul, pessoas amáveis mas adversativas
como conjunções peremptórias.
Delfim, seus
anos laboriosos, criadores, lubrificantes da maquinaria social. O rumor mudo
dele neste livro sem possibilidade de escaparate. Também ele tem
família-directa enferma – e o Tempo estende-lhe a rede, emaranha-o, fá-lo
trabalhar de mais talvez.
Homens em
fim-de-corrida-velha-viagem, crianças procrastinadas sem mais delação possível,
sessenta anos, c’um carago, como é possível. Lotófagos de uma Cidade
irremediável. Velhas-glórias de solteiros-casados em campo-pelado.
Esplende
entretanto a matina de sexta-feira. Hermínio tem entrevista busca-laboral ao
meio-dia. Alguém o avaliará quanto ao mês de Maio de depois-de-amanhã. Não
sente ansiedade: será o que for, não será o que não puder ser. Um quarto em que
o paterAvô dormiu suas noites seculares. Bolachas, conservas, acesso a cozinha
partilhada.
Emílio Jorge
Otero Valdevila: outro morto que se faz revisitante das linhas-hermínias. Alto,
tímido, delicado como a gardénia, cultor (também ele) de lembranças o mor
inventadas. Arrepiava-o qualquer falatório de teor máscul’obsceno. A
delicadeza-em-pessoa. Filho de médico & de professora-primária.
Oficial-de-contas. Defunto aos 45 anos. Nada mais.
Maria da
Natividade Filipe Caniço: viva, 91 anos, cinco filhos (licenciados todos:
Agronomia, Direito, Economia, Letras, Farmácia). Toma o seu carioca-de-limão,
fuma a sua cigarrilha adoçada a anis-escarchado, charla sobre magistérios do
regime salazarento, é livre como a ave cujo ninho sabe enxuto. Hermínio conhece
Natividade por irrepetíveis instantes. Não mais se reencontrarão neste livro
sem escaparate possível.
E no entanto.
E porém a manhã-terra move-se, parafraseando o velho G.G. que António Gedeão
epigrafou para-sempre, o absolutamente-relativo para-sempre da Poesia.
Sim, são
infindáveis os róis – como um só o Sol. Esta pessoa ali assentada em seu
organismo mesmo. Mandou vir um quartilho de água-mineral, que agora ingere
lendo já o pasquim local. Vem de sapatilhas-marca-cigano, calças desportivas, t-shirt
letrada, colete-de-serralheiro. Usa miniatura de aparelhómetro-ótico. “Ricardo
Horta é sonho de Rui Costa” – manchete-grita o outro pasquim, o dos
futebolómanos. Uma senhora, que foi explicadora nos anos em que a gramática
ainda era curricular nas escolas, viu-se viúva na terça-feira passada. Alívio imediato
da dita didacta. Compra legumes frescos na loja anexa ao café de Manuela &
Adílio. Parla pàssaramente: insondável alegria. Ave libérrima. Fila de utentes
dos autocarros-municipais (o meu Avô José dirigia eléctricos) à face do posto-bilheteiro
de São José, aqui ao Calhabé. Raparigas-em-flor. Velhos carrancudos como
fracções-de-lotaria sem estatística. Um rapaz-também-em-flor: mas usando na
narina esquerda um arganel porcino. Escarros pintalgando o asfalto. Máscaras-covid
atiradas ao chão. Cagadas de cães-(a)trelados. Por dez anos mais, redivive a
cancerígena esposa de Sónio Ferreiro: Vitória Rodrigo, leucémica, combatente,
peregrina de Santiago (não de Fátima, em que não crê). A recidiva a matará em
2032, isto é escritura. Chama-se Hélia Jesuína Vitória Rodrigo, esta tal-qual
mulher de Sónio Ferreiro - e o ano 2032
d.C. é tão bom ano para morrer quão outro qualquer.
Máscaras de
cera, as pessoas-em-transporte. Alegria & agonia. Esperança & desespero.
Ter ido a um sarau musical com alguém amado? Já aconteceu. Hermínio foi com
Licínia ao do Ateneu em 1983: do programa, constavam o ruivo Vivaldi, o
capelista Bach, o inefável Satie & o indefesso Chopin. Cearam depois nos
galegos Ricardos (pai & filho), ali à Rua de São José ou Largo da
Anunciada, Lx., se muito não erro. Hermínio manjou pernil-de-porco corado no
forno; Licínia, rins-de-(-talvez-o-mesmo-)porco grelhados em banha. Divertiram-se
muito. Dormiram naquela pensão aos Restauradores que avizinha o Éden: paraíso
particular. Cera tudo isto: Licínia era casada com um homem decente & alentejano,
Hermínio já então comia os pernis que podia. Que se (des)fez de tudo isso?
Tudo. Um quarto na Rua de Fora de Portas, anos 20/do/XX, ano 22/do/XXI. Um Avô remo(r)to. Um neto sem escapatória. Uma máscara-de-cera sem história. Nem escaparate. Nem escape.
Sem comentários:
Enviar um comentário