25/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 21

© DA.




As pessoas nos transportes-públicos: como em museu de máscaras de cera, aqueles rostos absortos (meio-vivos, meio-mortos).

Obras demoradas em diversas vias da Cidade. Profusão de homens que trabalham & abundância dispersa de seres irredimíveis, sentados no chão com cães a seu lado, pacotes de vinho-de-cozinha, mantas, sacos cujo lixo lhes resume as existências.

Sim, a glória de tudo isto – enquanto é possível olhar. Chávena de ponche escaldado com uma unha de limão. Cabeleireira de ademanes bruscos, galináceos. Cavalheiros-maltrapilhos compondo livros sem possibilidade de escaparate. Rapazes adoradores de motociclos.

Hermínio, seus dias estilhaçados como no firmamento o diadema estelar. Dorme sonhando pomares & ínsuas, estepes de gelo azul, pessoas amáveis mas adversativas como conjunções peremptórias.

Delfim, seus anos laboriosos, criadores, lubrificantes da maquinaria social. O rumor mudo dele neste livro sem possibilidade de escaparate. Também ele tem família-directa enferma – e o Tempo estende-lhe a rede, emaranha-o, fá-lo trabalhar de mais talvez.

Homens em fim-de-corrida-velha-viagem, crianças procrastinadas sem mais delação possível, sessenta anos, c’um carago, como é possível. Lotófagos de uma Cidade irremediável. Velhas-glórias de solteiros-casados em campo-pelado.

Esplende entretanto a matina de sexta-feira. Hermínio tem entrevista busca-laboral ao meio-dia. Alguém o avaliará quanto ao mês de Maio de depois-de-amanhã. Não sente ansiedade: será o que for, não será o que não puder ser. Um quarto em que o paterAvô dormiu suas noites seculares. Bolachas, conservas, acesso a cozinha partilhada.

Emílio Jorge Otero Valdevila: outro morto que se faz revisitante das linhas-hermínias. Alto, tímido, delicado como a gardénia, cultor (também ele) de lembranças o mor inventadas. Arrepiava-o qualquer falatório de teor máscul’obsceno. A delicadeza-em-pessoa. Filho de médico & de professora-primária. Oficial-de-contas. Defunto aos 45 anos. Nada mais.

Maria da Natividade Filipe Caniço: viva, 91 anos, cinco filhos (licenciados todos: Agronomia, Direito, Economia, Letras, Farmácia). Toma o seu carioca-de-limão, fuma a sua cigarrilha adoçada a anis-escarchado, charla sobre magistérios do regime salazarento, é livre como a ave cujo ninho sabe enxuto. Hermínio conhece Natividade por irrepetíveis instantes. Não mais se reencontrarão neste livro sem escaparate possível.

E no entanto. E porém a manhã-terra move-se, parafraseando o velho G.G. que António Gedeão epigrafou para-sempre, o absolutamente-relativo para-sempre da Poesia.

Sim, são infindáveis os róis – como um só o Sol. Esta pessoa ali assentada em seu organismo mesmo. Mandou vir um quartilho de água-mineral, que agora ingere lendo já o pasquim local. Vem de sapatilhas-marca-cigano, calças desportivas, t-shirt letrada, colete-de-serralheiro. Usa miniatura de aparelhómetro-ótico. “Ricardo Horta é sonho de Rui Costa” – manchete-grita o outro pasquim, o dos futebolómanos. Uma senhora, que foi explicadora nos anos em que a gramática ainda era curricular nas escolas, viu-se viúva na terça-feira passada. Alívio imediato da dita didacta. Compra legumes frescos na loja anexa ao café de Manuela & Adílio. Parla pàssaramente: insondável alegria. Ave libérrima. Fila de utentes dos autocarros-municipais (o meu Avô José dirigia eléctricos) à face do posto-bilheteiro de São José, aqui ao Calhabé. Raparigas-em-flor. Velhos carrancudos como fracções-de-lotaria sem estatística. Um rapaz-também-em-flor: mas usando na narina esquerda um arganel porcino. Escarros pintalgando o asfalto. Máscaras-covid atiradas ao chão. Cagadas de cães-(a)trelados. Por dez anos mais, redivive a cancerígena esposa de Sónio Ferreiro: Vitória Rodrigo, leucémica, combatente, peregrina de Santiago (não de Fátima, em que não crê). A recidiva a matará em 2032, isto é escritura. Chama-se Hélia Jesuína Vitória Rodrigo, esta tal-qual mulher de Sónio Ferreiro  - e o ano 2032 d.C. é tão bom ano para morrer quão outro qualquer.

Máscaras de cera, as pessoas-em-transporte. Alegria & agonia. Esperança & desespero. Ter ido a um sarau musical com alguém amado? Já aconteceu. Hermínio foi com Licínia ao do Ateneu em 1983: do programa, constavam o ruivo Vivaldi, o capelista Bach, o inefável Satie & o indefesso Chopin. Cearam depois nos galegos Ricardos (pai & filho), ali à Rua de São José ou Largo da Anunciada, Lx., se muito não erro. Hermínio manjou pernil-de-porco corado no forno; Licínia, rins-de-(-talvez-o-mesmo-)porco grelhados em banha. Divertiram-se muito. Dormiram naquela pensão aos Restauradores que avizinha o Éden: paraíso particular. Cera tudo isto: Licínia era casada com um homem decente & alentejano, Hermínio já então comia os pernis que podia. Que se (des)fez de tudo isso?

Tudo. Um quarto na Rua de Fora de Portas, anos 20/do/XX, ano 22/do/XXI. Um Avô remo(r)to. Um neto sem escapatória. Uma máscara-de-cera sem história. Nem escaparate. Nem escape.




 


 

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Canzoada Assaltante