29/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 27 & 28

© DA.




                                                                                              

Família merendando cervej’amendoins com tremoços na esplanada de fórmica negra. Os dois petizes lambem cones de gelado baunilha-morango. Quadro aprazível ao olhar de lápis. Casamentos, há-os ainda que se mantêm. Hermínio di-lo a Delfim. Delfim é casado & revoltantemente feliz com a única mulher da sua vida. A quietude campeia neste rincão da Cidade. A luz é de uma doçura perigosa aos diabéticos. Andorinhas de Maio voejam obliquidades ziguezagueantes. Os cedros da urbanização erguida há trinta anos, além, frapejam ao sabor eólico. Vai dando já para que, ao entardenoitecer mesmo, Hermínio se descasaque, que em mangas-de-camisa dê a pele dos antebraços ao manifesto. Uma menina brinca a sós em seu palácio imaginário. Não tem seis anos de nascida. Um velho atrelado a um cão, velho este também.

Matronas abarrotadas de mercearias evacuando a minimercearia local. Uma mulher de blusa escarlate santamente fumando cigarrilha enquanto contempla a colina de Santa Clara, lá onde a Rainha, Santa esta também. Hermínio respirando a ligeira aragem, já para poente se arroxeiam as primeiras másculas. Um rapaz de guedelhas cosmeticromadas portando uma litrada de coca-cola, pacote de batatas-fritas, maço de Chesterfield, pão-de-forma, vinte páginas de fiambre.

Não tarda se recolham a seus ignotos tugúrios as derradeiras aves da jornada. Hermínio consumiu parte da finimanhã curriculumvitalmente respondendo a anúncios de emprego(s). Como Pessoa na véspera da morte: “I know not what tomorrow will bring.” – etc.

 



****  




Esta ave leva o céu atrás do voo

Nenhuma solidão se lhe compara

Há muito tempo já que me não doo

Em vez de rosto já só uso cara.

 

Dão-se as boas-tardes os maus vizinhos

Curial é suportar vizinhança

O chulo vai ao bar, a puta dança

Por viver andamos todos mortinhos.




 

28/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 26

               

    Conversei com Rui Jorge Fernandes Pitua sobre realidades-alternativas:

    versos-pensados, extraterrestres chegados do futuro a bordo do comboio da linha Coimbra-Figueira da Foz das 5h13m, pensões de aposentação adequadas às vidas laborais efectivas, a união Camilo-Plácido, algoritmos (ou logaritmos?), bifes feitos de jornais reciclados, eventualidade de tanto ele como eu termos acertado em cheio logo ao primeiro matrimónio, a possibilidade de Deus ainda nos não ter abandonado (coisa que é sabido o Diabo nunca ter feito). Homossexualidade de espécies animais que não meramente a humana, palpite total no euromilhões.

    Rui Jorge confessou-me depois episódios relativos à mulher que mais amou.
    Era Ermelinda, trabalhava no pequeno-comércio a que chamam tradicional, julgo que ali na Rua Adelino Veiga, o poeta-operário-dos-guarda-chuvas & áugure do associativismo sindical-laboral. Despenhava Ermelinda farta cabeleira acobreada, focava olhos verdes como esmeraldas à chuva, apontava ao infinito os mamilos duros à guisa de gumes de sílex, ossatura de navio singrando em mar manso.
    Eu opus-lhe a mulher-da-minha-utopia,
    Era Delmina, secretariava um escritório de seguros, julgo que ali onde a Fernão de Magalhães é acossada pelo Arnado. Delmina era de mui meã estatura, olhos negros como intervalos de estrelas, mamas pequenas & citrinas, pèzitos que nem maioridade para votar tinham.
    Ficámos docemente amargos por tais reminiscências irrecuperáveis. Bebemos em conformidade. Ele convidou-me depois para cear, convite que declinei por sabê-lo quase tão mal de pecúlio quanto eu. Quedei-me a sós no derradeiro tasco, ali à face do estádio. Concebi alguma versalhada a propósito de inanidades, que, relida há pouco, me pareceu escrita por algum alienígena chegado em terceira-classe no comboio C/FF das 5h13m.

27/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 25

© DA.


 

Horas densas de pretéritos, vivo-as à guisa de quem vai embalando a trouxa. A velha igreja, rangendo ao vento algo forte, espera as suas velhas obscuras. Digo: as suas (o)velhas obscuras. Ao entardenoitecer, ainda alguma agitação económica fervilha por estes passadiços, cubículos, jaulas, estaleiros. Maio dito útil arrancou hoje. Caminha na luz já cediça, não espero que me nomeiem.

 

Pela vidraça dinâmica do penúltimo autocarro, miro inúmeros capuz’omens (digo: capuz-homúnculos) em tráfego-tráfico. Émulos acéfalos do amer(d)icanismo-hip-hop-gibberishit. Seres de uma metafísica die-young-curte-à-pressa. Sendo Hermínio-eu-mesmo émulo de sua transumância maninha & daninha, reconheço-os sem esforço à-força-toda. E leio o André Malraux de 1971, esse da evocação do general De Gaulle em Les Chênes Qu’on Abat

 

Hermínio relata a Delfim andar lendo Malraux. Já Delfim lhe disse de andar lendo outros gajos de livros-a-sério também, pois que publicados em papel encapado. Arrefece, não antarcticamente porém, pela hora-de-jantar. Aonde ir antes do sono em quarto cedido pela Santa Segurança Social? Fecham demasiado cedo os estabelecimentos-bebedouros em que dá para suportar a vida mercê da leitura & d’alguma escrita.

 

Delfim não se locomove a autocarros-públicos. Tem caleche própria, aliás paga-certinho-a-prestações-certas. O pai de Delfim aut’oficinava viaturas, encaminhou dois de seus quatro, ou cinco, filhos nessa direcção. Hermínio sabe coisas que a Delfim não podem já atrapalhar. Delfim encaminhou-se. Hermínio vagabulando vai. Densas horas também, estas – futuras algumas, como pretéritas lendas. 


 

25/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 22, 23 & 24

© DA.




 

“Isto é uma grande chatice, Maria Alice.”

Trio de professoras aposentadas em conclave.

É na esplanada larga que panoramiza o Mondego.

Dez & ¼ da matina de sábado, último dia de Abril.

 

Falam de uma quarta que foi a Londres ver a neta.

“Não é disto que se precisa, Maria Luísa.”

Divertem-se não-carnavalescamente.

Gozam a reforma, a sexualidade extint’apaziguada.

 

“É isto que procura, ó senhor Ventura?”

Um gato vadio aceita esmola em formato ração-seca.

E elas falam das mulheres descalças que vinham ao 4-de-Julho.

Calçavam-se ao chegar à ponte, prontas para a Rainha Santa.

 

O Sol abre-se em rosa omniluminosa.

Comentam que a tarde será cálida & calorosa.

Passa o marroquino dos tapetes ombreados.

“Não se poupe. D.ª Teresa, à certeza dos cuidados.”



**** 


 

Grand’enorme Delfim meu:

 

Escrevo-te no mais recente sábado da história da cristandade.

Nada receio, tudo me parece declinável como os casos sintácticos latinos. Falo-te de declinação ou – deveras & de facto – de declínio? Sou o teu Hermínio – pelo que interpretarás a teu bel-prazer, de facto & deveras bem.

Busco quási nada. Espero tão-só o passamento absoluto. Entrementes, versejo(-te) lances quotidianos – da quota dos dias. Se é pouco? Pouco é como todo-o-cuidado.

Durmo no quarto do meu paterAvô. Acumulo conservas & outros alimentos-secos no roupeiro. Vou comendo às colheradas lentas. Tenho bebido muita água. Possuo um quadrilátero de sabão-azul-branco, com que esfrego as minhas anfractuosidades mais íntimas. não cheiro mal. Não ainda.

Relato-te quanto ouço: septuagenários falando de um abastado que tem uma quinta “lá para Penela ou assim”. É como falar da principesca boa-fortuna alheia: casas-de-bonecas, valiosíssimas no mercado imobiliário, que os chineses dominam.

Delfim, meu caríssimo: escuto muito para sofrer pouco. Ou um pouco menos. Há festival-de-sopas no Terreiro da Erva. Alguma gente fazendo alguma coisa – já integrei tal clã. Mas ontem não é amanhã.

Fui ontem a uma entrevista pró-formação-+-emprego. Não fui seleccionado: a idade (des)conta. Crepusculo-me, por assim dizer.

Mais coisas? Algumas se rebelam & se revelam:

 

Os óculos-fumados à Camilo da recém-parturiente

O gato vadio que busca humanidade em afinal só-gente

As professoras aposentadas debicando chá-biscoitos

& a minha própria memória de tão antigos coitos.

 

Voeja a varejeira de volátil volúpia

De chuva não houve este Inverno cópia

Isto está por um fio, que cerce se esgarça

Escrevo-te no sábado – mas chegarei a terça?

 

Pessoas sentadas em suas vilas como em bancos de cais

Sabes de que te falo? De alternativas vi(d)as

Contemplo-as em meu tempo-vivente, pouco me demoro

Tudo & todos prévios a campo-santo, abençoado ou não.

 

Imagino Ruy Belo em seus dias de Espanha

Suas manhãs iodadas na Praia da Consolação

Agora que morreu, ninguém já o apanha

Agora que lido, sim só, em alguma boa edição.

 

Revejo-me lendo Júlio Diniz em vesperais horas

Tremulavam na ínsua os grilos cantores

Tenho quinze anos, não estou a desoras

Hoje sim assim sou, a preto-&-branco sem cores.

 

Amanhã é Maio, manda o calendário

É meu mês de nascido, pelo dia oitavo

De que(m) me perdi? Para que silabário

Tenho gaguejado meio-morto-idem-vivo?

 

Acabo de falar com um jurista reformado

É ex-fumador (mas só de há três anos)

Gaba-se (& bem) de um filho mui bem colocado

Diz-me que papava cigarros amailos charutos cubanos.

 

Tenho mais dívidas do que dúvidas, meu Delfim

O essencial desapercebe-me, receio-o bem

Sinto muitíssima falta da minha Mãe

& de meu Pai também, aliás & enfim.

 

André resolve do pasquim as palavras-cruzadas

Sabe de cor a pátria em que nasceu Abraão

Tem com a ex-mulher contas complicadas

Separaram-se logo que ele se soube cabrão.

 

Acordo antes das sete, pela aura da névoa

É em leito sozinho, a ninguém incomodo

Só que não em país nórdico, álgido & níveo

Ainda um dia destes ou renasço ou me fodo.



**** 


 

A noite ainda não é para já.

Devorarei a tarde como puder.

A manhã já não é, dissipou-se.

Nem sei que horas possam ser.

Domingo, malfadado dia eterno.

Sento-me & sinto-me. Para quê o quê?

Aves pequeninas, coloridas, engaioladas em varandas altas.

A Cidade desertada, raros autocarros.

O meu paterAvô, há um século, em seu/meu quarto.

A vida, também ela, de-Fora-de-Portas.

Como posso ainda criar alguma alternativa?

Mesmo outonalmente, alguma prova viva?

 

 

 

H. EM BUSCA DELFIM - 21

© DA.




As pessoas nos transportes-públicos: como em museu de máscaras de cera, aqueles rostos absortos (meio-vivos, meio-mortos).

Obras demoradas em diversas vias da Cidade. Profusão de homens que trabalham & abundância dispersa de seres irredimíveis, sentados no chão com cães a seu lado, pacotes de vinho-de-cozinha, mantas, sacos cujo lixo lhes resume as existências.

Sim, a glória de tudo isto – enquanto é possível olhar. Chávena de ponche escaldado com uma unha de limão. Cabeleireira de ademanes bruscos, galináceos. Cavalheiros-maltrapilhos compondo livros sem possibilidade de escaparate. Rapazes adoradores de motociclos.

Hermínio, seus dias estilhaçados como no firmamento o diadema estelar. Dorme sonhando pomares & ínsuas, estepes de gelo azul, pessoas amáveis mas adversativas como conjunções peremptórias.

Delfim, seus anos laboriosos, criadores, lubrificantes da maquinaria social. O rumor mudo dele neste livro sem possibilidade de escaparate. Também ele tem família-directa enferma – e o Tempo estende-lhe a rede, emaranha-o, fá-lo trabalhar de mais talvez.

Homens em fim-de-corrida-velha-viagem, crianças procrastinadas sem mais delação possível, sessenta anos, c’um carago, como é possível. Lotófagos de uma Cidade irremediável. Velhas-glórias de solteiros-casados em campo-pelado.

Esplende entretanto a matina de sexta-feira. Hermínio tem entrevista busca-laboral ao meio-dia. Alguém o avaliará quanto ao mês de Maio de depois-de-amanhã. Não sente ansiedade: será o que for, não será o que não puder ser. Um quarto em que o paterAvô dormiu suas noites seculares. Bolachas, conservas, acesso a cozinha partilhada.

Emílio Jorge Otero Valdevila: outro morto que se faz revisitante das linhas-hermínias. Alto, tímido, delicado como a gardénia, cultor (também ele) de lembranças o mor inventadas. Arrepiava-o qualquer falatório de teor máscul’obsceno. A delicadeza-em-pessoa. Filho de médico & de professora-primária. Oficial-de-contas. Defunto aos 45 anos. Nada mais.

Maria da Natividade Filipe Caniço: viva, 91 anos, cinco filhos (licenciados todos: Agronomia, Direito, Economia, Letras, Farmácia). Toma o seu carioca-de-limão, fuma a sua cigarrilha adoçada a anis-escarchado, charla sobre magistérios do regime salazarento, é livre como a ave cujo ninho sabe enxuto. Hermínio conhece Natividade por irrepetíveis instantes. Não mais se reencontrarão neste livro sem escaparate possível.

E no entanto. E porém a manhã-terra move-se, parafraseando o velho G.G. que António Gedeão epigrafou para-sempre, o absolutamente-relativo para-sempre da Poesia.

Sim, são infindáveis os róis – como um só o Sol. Esta pessoa ali assentada em seu organismo mesmo. Mandou vir um quartilho de água-mineral, que agora ingere lendo já o pasquim local. Vem de sapatilhas-marca-cigano, calças desportivas, t-shirt letrada, colete-de-serralheiro. Usa miniatura de aparelhómetro-ótico. “Ricardo Horta é sonho de Rui Costa” – manchete-grita o outro pasquim, o dos futebolómanos. Uma senhora, que foi explicadora nos anos em que a gramática ainda era curricular nas escolas, viu-se viúva na terça-feira passada. Alívio imediato da dita didacta. Compra legumes frescos na loja anexa ao café de Manuela & Adílio. Parla pàssaramente: insondável alegria. Ave libérrima. Fila de utentes dos autocarros-municipais (o meu Avô José dirigia eléctricos) à face do posto-bilheteiro de São José, aqui ao Calhabé. Raparigas-em-flor. Velhos carrancudos como fracções-de-lotaria sem estatística. Um rapaz-também-em-flor: mas usando na narina esquerda um arganel porcino. Escarros pintalgando o asfalto. Máscaras-covid atiradas ao chão. Cagadas de cães-(a)trelados. Por dez anos mais, redivive a cancerígena esposa de Sónio Ferreiro: Vitória Rodrigo, leucémica, combatente, peregrina de Santiago (não de Fátima, em que não crê). A recidiva a matará em 2032, isto é escritura. Chama-se Hélia Jesuína Vitória Rodrigo, esta tal-qual mulher de Sónio Ferreiro  - e o ano 2032 d.C. é tão bom ano para morrer quão outro qualquer.

Máscaras de cera, as pessoas-em-transporte. Alegria & agonia. Esperança & desespero. Ter ido a um sarau musical com alguém amado? Já aconteceu. Hermínio foi com Licínia ao do Ateneu em 1983: do programa, constavam o ruivo Vivaldi, o capelista Bach, o inefável Satie & o indefesso Chopin. Cearam depois nos galegos Ricardos (pai & filho), ali à Rua de São José ou Largo da Anunciada, Lx., se muito não erro. Hermínio manjou pernil-de-porco corado no forno; Licínia, rins-de-(-talvez-o-mesmo-)porco grelhados em banha. Divertiram-se muito. Dormiram naquela pensão aos Restauradores que avizinha o Éden: paraíso particular. Cera tudo isto: Licínia era casada com um homem decente & alentejano, Hermínio já então comia os pernis que podia. Que se (des)fez de tudo isso?

Tudo. Um quarto na Rua de Fora de Portas, anos 20/do/XX, ano 22/do/XXI. Um Avô remo(r)to. Um neto sem escapatória. Uma máscara-de-cera sem história. Nem escaparate. Nem escape.




 


 

22/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 20 (conclusão)

 

Aí está a hora a que as velhas senhoras terminam seu chá-protésico.

Transige a luz, o planeta range um pouco em seu eixo ingente.

No baldio que pato-bravo algum ainda acimentou, coelhitos & melros.

Edifícios dourados pelo pré-poente, a grande hipermercearia a sul.

 

Falatórios de d-existentes não esmorecem renitentes.

Gaiteiros lá muito antigamente vibraram a infância festiva.

Acho ter sido Joan Manuel Serrat a cantar os títeres.

E Georges Simenon a explicar a bruma de homens em canais nevoentos.

 

Telefonaram-me hoje, evento que se me volve precioso.

Há anos de mais ando com o aparelho no bolso, de/para pouco me serve.

Convites para baptizados & casamentos, poucos/nenhuns hei já.

Para velórios sim, agora que está em moda a cremação cinérea.

 

Gostaria de cear com alguém que se con’fe’ver’sasse ouvindo.

Nada de depois-hotel, esfuruncanço erótico, suor gemido, quinquilharias de pele húmida.

Alguém que se escutasse conversando-se entre azeitonas.

E um pouco de Mário Botas, Schiele, Osório, Pessanha.

 

Consulto sem pressa nem demora as necrologias-de-pasquim.

Fotos-tipo-passe, a idade, viuvez ou não, missa-de-sétimo-dia.

Também me interessa a Liga dos Campeões, coliseu de rematadores.

Entretém-me o absurdo-organizado, o IRS-ovelheiro.

 

Eis o instante em que a Cidade nada pode fazer por ti.

Reina a impiedade absoluta, as pessoas têm al que fazer.

A luz doura ainda a encosta-norte da Conchada.

É bonito sentir as matinées tardias da livre passarada.

 

Não penso morrer sem estar sentindo que vivi alguma coisa.

Parafraseando o grande Outro (1888-1935):

O que em mim pensa está sentindo.

Não penso morrer – nem viver dá assim tanto que pensar.



20/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 19 (integral) + 20 (fragmento)

© August Sander


Esplendor da sordidez dos domingos no deserto citadino. A mais degradada putaria – e, desta, os chulos mais infectos. Amargura intransigente de estar vivo. Os domingos consubstanciam & consagram o absurdo da vida do mais puro modo. Vielas avinagradas a mijo de gato, bêbados sem tecto, órfãos & deserdados a preto-e-branco. Salões da banha-da-cobra evangélica por muito lado. Heroína traficada em crioulo-hip-hop. Algum par de nórdicos perdido neste dédalo de cortiça-souvenir. É o exacto 28.º aniversário do passamento do Pai de Hermínio. O Tempo quieto nesse acontecimento. Um casal perguntando a Hermínio a direcção da Igreja de Santa Cruz. A vida em círculos. O pensamento, também. Histórias secas. Aridez dominical. Raros turistas. Uma necessidade premente: lixiviar a existência. Demasiado cáustico, o quotidiano às vezes poético. Como, ao menos por ilusão, derrotar o deserto?



****



Persiste obstinadamente aquilo a que chamamos realidade.

Dei hoje, Delfim, passos no sentido de uma possível auto-concertação.

Digo: remediação material-laboral-remuneratória, que mal não viria.

Não sei. Sei muito pouco. Tenho relido a minha biblioteca encaixotada.

 

Está bonito o pré-entardenoitecer, a luz é gloriosa, não sufoca.

Falei com três pessoas: duas senhoras & um cavalheiro.

Alimentei um gato & cinco pombas, não me demorei na Baixa.

Tenho defronte a noite – digo: dela, a impiedade.


(Assim é, que ora te não minto, bom Joaquim, perdão, Delfim.)

19/07/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 17 & 18 (integrais)

© DA.



 

Janta a sós como templário desempregado de jerusaléns

Meia-litrada de vinho, frango carbonizado, broa-de-milho

Além não havendo, fica-se ele por aquéns

De que é presa sem resgate, de pai-órfão-filho.

 

É em churrasqueira à noite mais desertada

Arde a frio no televisor uma qualquer futebolada

Deveria ter mandado vir uma salada

Mas não mandou, papou a seco & à garfada.

 

Combinou ontem encontro com quem afinal faltou

Adormeceu já tardito, pensando no desencontro

Adormeceu considerando: Procurando, não encontro;

Desprocurando, desconheço quem me desachou.

 

Ao todo, quatro fregueses – amailo o jantante patrão.

Viu muito disto em Lisboa, quando lá era eremitão.

Lá vai. Tudo já lá vai, ó senhor meu (dele) Pai.

Dez euros. Paga. Agradece o serviço. E sai.

 

Uma vez na vida, Hermínio mente a Delfim:

 

Uma mulher cor-de-anis há que me deseja.

Veste-se de seda-púrpura & deseja-me.

Alongo ante ela meu corpo branco inviolado.

E a acção lactífera ocorre parte-a-parte.

 

Demasiado fora, longe de mais,

o mundo não nos adentra o tálamo.

Somos ali par-em-um como por milagre.

Mil lágrimas se nos seguirão, apartados.

 

Enquanto não, floresço de fungo ao de leve borrifado.

Leite ela mana de seus pedúnculos róseo-mamilares.

Conversamos quase nada, tudo nos dizendo.

Minto-me-te, Delfim, mas por pura púrpura o faço.

 

Essa mulher emanada do leite em canteiro róseo?

Ela reside-me em pulsão, de que a morte só me aliviará.

Em sua solidão palaciana (um segundo-andar) toma porto.

Fuma longo mentol, segura de seu reinado, calma sem mim.

 

Sonho-a em meu quarto de caridade-social.

Acordo-a às sete da matina, devemos separar-nos.

Ela labora em pública repartição – eu, não.

Eu penteio-me à pressa, coço-me, saio ursamente às ruas.

 

Não nos acudiu qualquer filho sob salgueiros concebido.

Nenhum porvir nos inscreve em lista que nos espere.

Mas é vero que nos desejamos & almejamos?

Se te minto, Delfim, então sim. Se não, então não.

 

A verdade é tê-la eu desertado há décadas sem anagrama.

Ominosa rosa me é ela tão-só agora, que tarde se fez.

Na noite de cada manhã, algum perfume dela voeja, sim.

Mas mais a sinto no quanto minto, sim, que ela não há.

 

Não há & não é. Algum homem a devora este ano.

Não marcha para nova, floresce todavia ainda em leite.

Não enverniza as unhas, não se enlameia de cremes franceses.

É a papoila de beira-ervado, a codorniz sem costas.

 

(Como te dizia, uma codorniz há que me voeja.) 


 

Canzoada Assaltante