42.
VAMOS BRINCAR À
POSOLOGIA
Coimbra, domingo, 3
de Maio de 2020
I
Às oito da manhã a luz dominga
a vasta restrição desta marquise.
Hoje o céu não chora – choraminga,
seja o Maio solar p’ra quem
precise.
II
Tiro proveito do confinamento
destes dias-já-meses mercê de fundas releituras: Nemésio, Wenceslau, Cesário,
Pessanha mormente. Para descansar a vista, entretive-me decifrando (leigamente,
claro está) um folheto medicamentoso a que, julgo, ainda (e também) se chama “literatura”.
Farmacológica literatura – mas literatura, alfim. E com que seu quê
de léxico-semântico papal – pois não é bula esse papel incluso
nas embalagens que são o pão-com-caviar de um dos maiores negócios do mundo, a
às (tantas) vezes sinistra Indústria Fármaca?
A bula (ou, mais chãmente, folheto
informativo) de que disponho, usa duas vezes uma palavra que eu desconhecia
– mas fá-lo com duas grafias. “O folheto foi revisto pela última vez em
setembro de 2017.” – esta a última linha do texto. O problema é a tal
palavra. À primeira, aparece como “acatísia”, com i acentuado. À
segunda, “acatisia”, com i. (Esta segunda forma é a correcta,
parece.) E parece significar aquele sentimento de agitação que impede a pessoa
de estar sossegada, quieta, serena – esteja ela sentada ou de pé.
Acatisia ou acatísia – não é a
única que eu desconhecia. Gosto desta literatura por causa da riqueza vocabular
que ostenta & patenteia. A olhos (haste-oculados, ainda por cima) como os
meus, é delícia exótica o palanfrório/palavreado que enforma & informa o
consumidor do remédio.
No caso, o medicamento tem
envergadura capsular de 20 (vinte) miligramas. A substância-activa (ou
princípio-activo) é a fluoxetina, que, sob a forma de cloridrato da dita,
agrega outros componentes, a saber: “amido de milho pré-gelificado, sílica
coloidal anidra, estearato de magnésio e talco.” Tudo ali certinho,
preto-no-branco, p’ra não enganar o freguês do boticário. As cápsulas são, em
si, “constituídas por gelatina, água purificada, amarelo de quinoleína
(E104), indigotina (E132), dióxido de titânio (E171) e eritrosina (E127).”
As coisas que & em que uma pessoa (se) mete…
Dos meus venerados Poetas &
Prosadores repouso aprendendo terminologias pragmáticas & ad-hócicas.
Exemplo: a fluoxetina tem família. A família da fluoxetina é a ISRS
(nada a ver com a família IRS, que essa é de outras devoções). Ora, o
clã ISRS é sigla de Inibidores Selectivos de Recaptação de Serotonina.
Ou seja: é um antidepressor. É remédio-quase-santo para cornaduras cabisbaixas,
tais como as depressivas-major(es), as perturbadas obsessivo-compulsivas &
as bulímico-nervosas, neste último caso ajudando a controlar a “ingestão alimentar
compulsiva” e a “actividade purgativa”.
Os meus velhotes Pessanha, Cesário
& Cia. (salvo seja) não devem ter tido muito acesso a esta gentil
fluoxetina. O Camilo dava-se a outro ópio. O Cesário era mais à colherada de
melancolia. Ao Raul, não faria decerto mal – a não ser que o discreto militar
reformado tivesse “problemas cardíacos, febre, rigidez muscular ou tremor,
alterações do estado mental incluindo confusão, irritabilidade e agitação
extrema”. Pessoa & Pascoaes, teriam eles “síndrome neuroléptica
maligna”? e “mania agora ou no passado”? Alberto Caeiro terá sido “episódio
maníaco”? Aquela agitação interjectivo-exclamativa do Álvaro de Campos
dar-lhe-ia direito a “perturbações hemorrágicas” ou “nódoas negras”?
Teria Ricardo Reis “o sangue mais fino”? Oxalá que não – pois que as
supra são todas elas contra-indicações estatutárias da inibição do inibidor.
Isto é, anda de cloridrato de fluoxetina par- a os senhores a esta mesa.
Porquê? Porque podem morrer, pá. Há
outra família que se não dá muito bem com a ISRS – é a família IMAO (nada
a ver com Tse Tung, o porco-gordo). IMAO é acrónimo (acho eu que acrónimo) de Inibidores
Irreversíveis Não Selectivos de Monoamina Oxidase. Mesclada com fluoxetina,
a iproniazida, por exemplo, pode mandar a pessoa para o galheiro, a pessoa que
andava deprimida sim-senhores mas não pensava matar-se por
tira-lá-aquela-palha. Já os insuficientes cardíacos – que muitos nem são poetas
– podem andar a tomar metropolol. Cuidado: com fluoxetina à mistura, os
batimentos cardíacos podem passar ao ritmo do caracol moribundo & sem
pressa.
Embora não por má-fé, a fluoxetina
pode, ainda, alterar o efeito de outras mèzinhas que o doutor achou fazerem-nos
falta. É o caso do tamoxifeno, se em má-hora andarmos com o cancro-da-mama.
É o caso de outros indivíduos do grupo IMAO-A, “incluindo
moclobemida, linezolida (um antibiótico) e cloreto de metiltiolina (também
designado por azul-de-metileno, utilizado para o tratamento de
metemoglobinema)”. Ora, tal risco não é poema.
Imaginemos – por mais absurdo –
que o bom Pascoaes sofria de uma alergia. Uma alergia, logo ele, à Saudade, por
exemplo. Naturalíssimo seria que o doutor-médico, apoiado pelo
doutor-farmacêutico, o crivasse de mequitazina. Dois perigos, nesse caso, caso
o Teixeira de Pascoaes andasse já fluoxetinando-se: um, arriscaria “alterações
da actividade eléctrica do coração”; dois, em vez de Saudosismo, a
História Literária Portuguesa & a revista A Águia doutrinariam o
esquisito Mequitazinismo – que até parece diabolismo de mesquita +
sion’azismo.
Suponhamos agora que aquelas performances
juvenis do Almada não eram coisa de dançarino-poeta-e-tudo mas sim pura &
simples epilepsia. Natural seria que lhe receitassem (“ora isto é
fundamental”, diria o patertirano Vasco Santana) nada menos que fenitoína.
Ora esta + fluoxetina juntas podem
influenciar & levar para más caminhas os níveis sanguíneos, ora nem menos.(...)
Sem comentários:
Enviar um comentário