12/07/2020

VinteVinte - 38 (conclusão: VIII a XI)



VIII

Por contraste, a neve enegrece tudo.
O arvoredo passa a semelhar pelotão de obscuras sentinelas do Grande Nada.
Os mais previdentes empilharam lenha no Verão, ardem-na agora aos serões confinados, quando lá fora só a Lua, só os lobos, uma que outra lebre, de vez em quando o carro-de-patrulha ou a ambulância com um cardíaco ou um bêbedo dentro, às vezes os dois-em-um-mesmo.
Por estas bandas, o Verão demora-se pouco – tão pouco, que nem propriamente chega a ser estival, antes sim espécie de osmose outono-primaveril, mal dá para colher do lago algum peixe capitoso antes do enregelamento, que certo é, este, como a morte & como a contrastante negrura imposta por nevão trás nevão.

IX

Túlio Caio Domingues, ferrador de bestas, nada mau homem de & para sua mulher, Maria das Mercês Lavareda Domingues. Túlio tem antro oficial ao cabo da Rua Formosa, trinta ou poucos mais metros da Ópera Real, uns duzentos do Comissariado de Polícia.
Os pasquins-tablóides da época têm-no como incendiário de prostitutas. Guilhotinado foi, por tal. Hoje, o ADN revelaria Mercês como feitora de jus a seu apelido de solteira.

X

Enurese em adulto, sofreu-a Alípio Hernando Oliveira, dito Pia-Cabra entre os sem-abrigo do Viaduto-Norte, no Verão de 1999. Perdera-se algures de toda a gente, isso ele percebia – por que raio se perdera ele do que era para ser, isso é que o não percebia ele. Urinou-se sem controle possível. Foi gozado, claro. Gozaram-nos os comparsas do Viaduto-Norte, sob que habitavam cartões, colchões, lonas, alimentando-se de comida plastificada às vezes trazida por gente como Ana Ouvebem, a quem Alípio nunca se esquecia de gratificar com um belo sorriso sem sombra de um dente sequer, à parte o fedor a mijo velho.

XI

Duas senhoras já genárias residiam além, naquele palacete branco entre abetos. Conheceram-se a bordo de um cruzeiro intercontinental. Carpiam alegremente, a bordo do grande barco, a recém-viuvez com que cada uma dela fôra premiada ao cabo de muitas, demasiadas, décadas cremadas ao lado de maridos medíocres. A do palacete azul arrendou-o a uma fundação de filatelistas, vindo tomar aposentos no branco, a convite da amiga. Quatro serviçais as acomodavam, gasalhando-as a troco de honrados salários.
Não conheci em pessoa essas pessoas. Os livros da branca original, sim – conheço & admiro & releio-os muito. As telas da azul, também – relevantes materializações de paisagens sonhadas (lunares algumas). Morreram ao cabo de dezassete anos em comum, tendo os óbitos sido intervalados de duas semanas.
Os herdeiros dissiparam tudo o mais cerce que puderam. Menos os manuscritos brancos – que a Biblioteca Nacional conserva - & os quadros azuis, que a Fundação Filatélica Tenesmo esplende por as paredes do cerúleo palacete que acabou arrendando sine die.

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Canzoada Assaltante