40.
NORMAS DE MAIO
Coimbra, sexta-feira,
1 de Maio de 2020
Eis-nos Maio. Meu mês natalício.
Mês tão bom quão os demais para exercício do meu – chamemos-lhe assim –
palanfrório, o meu palavreado não-raro palilógico, repetitivo em palavra,
ideia, estilo até. Este quarto sirva de palatinado, jurisdição de confinado
ainda não finado.
(Muitos foram os anos & muitas
as gerações que perderam Bach & Gil Vicente. As obras estavam encarceradas
em pó de velha madeira susceptível dos piores carunchos: ignorância &
olvido. Kafka & Cesário não foram incinerados porque Max Brod & Silva
Pinto etc. Temos nós – é nossa, se & quanto a quisermos – tal fortuna. Há
mais nomes & obras que salvar. Isso eu sei. Mas quais? Há que fazer por
saber.)
Maio, lá fora uma pouca (mui
pouca) de sol logra romper a cinza movediça. Recordo o primeiro 1.º de Maio
livre, o de 1974, alinhámos na manifestação como família, há uma fotografia
desse momento, ali em frente à Escola Jaime Cortesão, o Jorge era vivo e está
na imagem, vivo & feliz. Este é outro Maio, aquele não volta, esta é a Lei.
Brama o vento. Não é chilido de pássaro mas sim uivo grosso. São as cinco da
tarde. Pus em demolho uma postita de bacalhau para ser alho-acoentrada em
açorda aguada. Resulta caldo bom, perfumado, forte & delicado ao mesmo
tempo. Assim vai a mente: da fotografia histórica de há 46 anos para um
projecto de petisco sem história alguma. Também é da tal Lei de que acima V.
falei.
Um documento me espera leitura,
sublinhados, digestão & reciclagem. É rico em vocabulário
técnico-científico. Muitas palavras me esperam bom trato. É a minha vida, não
mero entretém de ocioso. Não me justifico: apresento-me, tão-só. (E tão só quão
fiz, felizmente, por merecer.) Mostro as cartas – e jogo-as na mesma. Nem
valentia, nem pusilanimidade – sim a vida-por-escrito, linha a linha, até que a
Lei etc.
Recordo:
O vento forte nos canaviais robustos,
entre o derradeiro lagar de vinho na aldeia P. & o primeiro lagar de azeite
na aldeia A. Eu fiz & refiz esse caminho eterna e ternamente. Há muito o
não refaço, por outras bandas me desbando, outras aragens me desairam. Aquele
vento privado, íntimo, meu, dando de varejo nas canas altas, espessas, raianas,
fabulosas. Uma vala já então poluída sondava, como maligna serpe, esse meu
segredo, esse meu éden-de-pobre. Quando, agora-século-XXI, me deito &
medito à toa, é muitas vezes aquele vento naquele canavial o que à janela de hoje
brama. (Hoje, 1974? Também. Recordo – ergo, minto. Mas sinto.)
Ao parágrafo anterior (a que dei
término entreparentético) acrescento ainda que:
Recordação é coisa treda (id est,
traiçoeira) & trefa [ou trêfega – como Nemésio diz do nosso
D. Afonso III (in Jornal do Observador, pág.ª 249). Seja: ardilosa,
astuta, buliçosa, inquieta, traquinas.] E crêde-me que lo é deveras & de
facto.
Pessoas levando o que as leva,
digo: a vida, o interlúdio, a morte, tudo à guisa de precária brincadeira com o
fogo.
Sei nada delas. Sei pouco delas.
Sei alguma coisa delas. Espelhamo-nos & espalhamo-nos. Seguimos a
Grande-Régua – que Norma é.
Algumas são belas, algumas pessoas
são portadoras de beleza. É verdade. É tão verdade – que mesmo mortas seguem
embelezando estas vargens, margens, aragens & paragens. As pessoas vivas
são menos do que as mortas. Em número, digo. O planeta é cada vez mais escasso
para tão inflacionada população – mas os mortos continuam a ser maioria (nem
sempre silenciosa).
Berçários & túmulos irmanam-se
impiedosamente. Os animais não-humanos moram noutra dimensão, embora possamos
matá-los. Não podemos humilhá-los, porém – como alegremente (des)fazemos
cada-dia-a-toda-a-hora-pelos-séculos-dos-milénios.
Nomes habitam-me, rumorosos. Uns,
mortos (os mais, como hei dito): outros, nem tanto (vamos lá com calma).
Américo C., que conhecia muito o
bich’umano. Luís M.N., consumido de febres gráficas & más-companhias.
António B., mitómano & chapeleiro-louco sem Alice possível. Gente como
esta, isto é: única-em-si-só.
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