39.
Lulu
Coimbra,
quinta-feira, 30 de Abril de 2020
Mais um Abril co’ caraças ido.
Maduro de febre, Maio bate à porta. Aprendi ontem a palavra hipocorístico,
que é o vocábulo trocado em família e/ou para com crianças, duplicando-se a
sílaba: gugu, dadá, papá, lulu. (Esta última fez-me
evocar o bonacho & maravilhoso Vasco Santana: “Chame-me Lulu… Chame-me
quando quiser, que eu vou logo ter consigo.”)
Fui às ruas pela finimanhã,
passava já da undécima. Tratei com suficiência dos papéis a tratar, comprei
coisas que comer + com que escrever etc. Afivelei máscara & luvas de
borracha: senti-me carnavalesco.
Releio Nemésio: com proveitoso
vagar o rumino. Acho-o renascentista, iluminado & iluminista. Pertenceu-lhe
boa porção do século XX: respirou entre 1901 & 1978. Este último foi
péssimo: o ano levou, além de Nemésio, Ruy Belo, Jorge de Sena, milhões de
anónimos. Do grande Açoreano sepultado ali em Santo António dos Olivais, neste
antigo Emínio (como ele mesmo crismou Coimbra do latinório Aeminium),
este trecho esplendoroso de sabença:
“(…) exigimos uma intimidade pura
aos diários dos outros, como garantia de autenticidade ética e analítica,
esquecendo-nos de que a personalidade é incoercível ao próprio portador. O
nosso ‘eu’ não passa de um foco, uma central de contactos altamente sinápticos
que apenas garante o funcionamento do sistema psíquico: não alcança os
conjuntos. A inconsistência do ‘eu’ sente-se melhor no flagrante da apreensão
do tempo, na pretensão – tão nossa conhecida – de apanhar num momento o todo da
própria duração e chamar a isso ‘eu mesmo’. O semetipsum… Mas a verdade é que quando digo aqui
‘vou já!’ – já cá não estou…” [Da crónica Do Género à Variedade,
data de pub. 14-4-1972, recolhido de Jornal do Observador, pp. 212
(Editorial Verbo, Lx., 1974).]
Não sei se classificar o Humano
como género, se como estirpe, nestes tempos panvirais em moda
global. Envelheço descrendo mais nos meus comparsas coetâneos. A História do
Futuro parece estar mais do que meramente na do Presente. A do Passado, já bem
o sei, é ao-gosto-do-freguês. A religião (qualquer uma & toda ela) é uma
merda. (Desculpe-me – ou perdoe-me –, Doutor Nemésio, mas assim o penso, digo
& escrevo. Aliás, o senhor mesmo: “Somos solidários com todos os nossos
semelhantes no bem e no mal do mundo.” (p. 234, op. cit.)
Desconheço, nesta minh’idade, que
idade ’inda há-de – ou não – acontecer-me. Ou: a-conta-a-ser-me. Importante:
ainda não é & já é. Despeço este Abril como inútil serviçal a quem, afinal,
servi – e de pasto.
Perto de onde escrevo, houve há tempos
tiroteio. Tráficos, drogas, ciganices, bairrossocialismos do costume. Tem todavia
sido branda a estação. Não sei se o confinamento obrigatório (que termina a
partir de 2/5 próximo, parece, passando o estado-de-emergência ao de-calamidade)
ajudou à pacificação. Talvez tenha. Digo “perto” mas é, felizmente, o afastado
q.b. para que por aqui não cheire a pólvora nem a heroína fervida em limão. Dizem-me
que estas (des)andanças já foram bem piores. Não sei. Tenho saudades do mar. Aqui
não há mar. há lá em baixo um rio represo à força de açude. Há o que é, será
como foi. Nada peço, que pouco posso. Passo.
Na marquise, sentindo a noite
mundial: o mundo que à esquerda é Santa Clara & Rainha Santa, a mancha
ominosa do Choupal em baixo, lampiões públicos pontuam laranjas como transparent’invisíveis
laranjeiras, Estação Velha/Coimbra-B, Casal Ferrão, Loreto, Brinca, Relvinha – e
Pedrulha longe, Antuzede muito longe. O que é depois não difere do antes que o
preparou, urdiu, prenhou – e abortou. Morre-se, viveu-se (ou não), uma marquise
tanto se me dá plateia como palco como bastidores, há muito soou & foi
rodopiada a derradeira valsa.
Acmásticos meses – de intensidade
pandémico-viral maior. Muita gente despedida, muita gente expedida. Há sempre
quem, em tempos pânicos afins, especule & se afortune com a miséria alheia.
O papa Francisco parece não-mau-homem. Peão como todos, porém & alfim, do
sideral-tabuleiro-sem-Rei-nem-Roque-nem-Sentido-nem-Manual-de-Instruções.
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