12/07/2020

VinteVinte - 39 (integral)




39.

Lulu

Coimbra, quinta-feira, 30 de Abril de 2020




Mais um Abril co’ caraças ido. Maduro de febre, Maio bate à porta. Aprendi ontem a palavra hipocorístico, que é o vocábulo trocado em família e/ou para com crianças, duplicando-se a sílaba: gugu, dadá, papá, lulu. (Esta última fez-me evocar o bonacho & maravilhoso Vasco Santana: “Chame-me Lulu… Chame-me quando quiser, que eu vou logo ter consigo.”)

Fui às ruas pela finimanhã, passava já da undécima. Tratei com suficiência dos papéis a tratar, comprei coisas que comer + com que escrever etc. Afivelei máscara & luvas de borracha: senti-me carnavalesco.

Releio Nemésio: com proveitoso vagar o rumino. Acho-o renascentista, iluminado & iluminista. Pertenceu-lhe boa porção do século XX: respirou entre 1901 & 1978. Este último foi péssimo: o ano levou, além de Nemésio, Ruy Belo, Jorge de Sena, milhões de anónimos. Do grande Açoreano sepultado ali em Santo António dos Olivais, neste antigo Emínio (como ele mesmo crismou Coimbra do latinório Aeminium), este trecho esplendoroso de sabença:

“(…) exigimos uma intimidade pura aos diários dos outros, como garantia de autenticidade ética e analítica, esquecendo-nos de que a personalidade é incoercível ao próprio portador. O nosso ‘eu’ não passa de um foco, uma central de contactos altamente sinápticos que apenas garante o funcionamento do sistema psíquico: não alcança os conjuntos. A inconsistência do ‘eu’ sente-se melhor no flagrante da apreensão do tempo, na pretensão – tão nossa conhecida – de apanhar num momento o todo da própria duração e chamar a isso ‘eu mesmo’. O semetipsum… Mas a verdade é que quando digo aqui ‘vou já!’ – já cá não estou…” [Da crónica Do Género à Variedade, data de pub. 14-4-1972, recolhido de Jornal do Observador, pp. 212 (Editorial Verbo, Lx., 1974).]

Não sei se classificar o Humano como género, se como estirpe, nestes tempos panvirais em moda global. Envelheço descrendo mais nos meus comparsas coetâneos. A História do Futuro parece estar mais do que meramente na do Presente. A do Passado, já bem o sei, é ao-gosto-do-freguês. A religião (qualquer uma & toda ela) é uma merda. (Desculpe-me – ou perdoe-me –, Doutor Nemésio, mas assim o penso, digo & escrevo. Aliás, o senhor mesmo: “Somos solidários com todos os nossos semelhantes no bem e no mal do mundo.” (p. 234, op. cit.)

Desconheço, nesta minh’idade, que idade ’inda há-de – ou não – acontecer-me. Ou: a-conta-a-ser-me. Importante: ainda não é & já é. Despeço este Abril como inútil serviçal a quem, afinal, servi – e de pasto.

Perto de onde escrevo, houve há tempos tiroteio. Tráficos, drogas, ciganices, bairrossocialismos do costume. Tem todavia sido branda a estação. Não sei se o confinamento obrigatório (que termina a partir de 2/5 próximo, parece, passando o estado-de-emergência ao de-calamidade) ajudou à pacificação. Talvez tenha. Digo “perto” mas é, felizmente, o afastado q.b. para que por aqui não cheire a pólvora nem a heroína fervida em limão. Dizem-me que estas (des)andanças já foram bem piores. Não sei. Tenho saudades do mar. Aqui não há mar. há lá em baixo um rio represo à força de açude. Há o que é, será como foi. Nada peço, que pouco posso. Passo.

Na marquise, sentindo a noite mundial: o mundo que à esquerda é Santa Clara & Rainha Santa, a mancha ominosa do Choupal em baixo, lampiões públicos pontuam laranjas como transparent’invisíveis laranjeiras, Estação Velha/Coimbra-B, Casal Ferrão, Loreto, Brinca, Relvinha – e Pedrulha longe, Antuzede muito longe. O que é depois não difere do antes que o preparou, urdiu, prenhou – e abortou. Morre-se, viveu-se (ou não), uma marquise tanto se me dá plateia como palco como bastidores, há muito soou & foi rodopiada a derradeira valsa.

Acmásticos meses – de intensidade pandémico-viral maior. Muita gente despedida, muita gente expedida. Há sempre quem, em tempos pânicos afins, especule & se afortune com a miséria alheia. O papa Francisco parece não-mau-homem. Peão como todos, porém & alfim, do sideral-tabuleiro-sem-Rei-nem-Roque-nem-Sentido-nem-Manual-de-Instruções.

À boca da meia-noite levo & trago camomila fervida em água-melada. Há serenidade, essa que vem de não-pensar-nisto-ou-naquilo. Parece que acomia é sinónimo de calvície. Giro, aprendi mais uma. O Dicionário é bom paliativo. Paliativo de quê? Paliativo para quê? Porquê? Quem pergunta? Chamai-lhe Lulu.

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Canzoada Assaltante