V
Recordo:
O corpo imerso no largo do bosque,
muitos anos antes de o terem poluído. Rapazes festivos nadando
estardalhaçadamente, primeiro, pela euforia da nudez, da frigidez benigna ao
sol filtrado de choupos, mais calmos depois, aproveitando a pureza que resulta
de o porvir não ter vindo, não ainda. Esse sabor a demasiad’outrora, não o nego,
a boca figurada da lembrança. Um lápis é quanta ferramenta tenho para nos
ver(mos) nadando naquela água diamantinamente poalhada de luz. Tenho caneta,
sim, mas isto precisa de ser a lápis. Antes da hora a sós por ora – e amanhã também,
desde que ontem nunca mais.
VI
Rêverie – sonhambulação – dizia-Vos pois.
Não me refiro a preambulações
romântico-nirvanas pasmando à Lua com o terceiro-olho (que as pessoas de siso
sabem ser o do cu, não o do Lobsang Rampa).
Refiro-me às Línguas como
ferramentas cosmovisoras, cosmo(a)gónicas até & mesmo.
As pessoas portuguesas menos
plácidas & mais dadas ao repetitivismo repentista dos papagaios grunhem à
saciedade que “lá fora não sabem o que é saudade” & que “é
palavra sem tradução” para outras línguas. Disparate. Saudade & rêverie
são, por assim dizer, legíveis em qualquer idioma desde que trabalhadas com
senso & bom-gosto mas sem orgulho nem preconceito, parafraseando a Jane(ca)
e o velho Antero.
Por desgraça, grassa entre nós o
aborto do desacordo ortográfico com que alguns meliantes, em 1990,
bulímico-anorectiram, por assim dizer, a nossa Língua.
“Minha Pátria é a Língua
Portuguesa” – é o verso de uma vida,
como também a epígrafe em pedra de uma Identidade Nacional. A este tipo
sonhambulant’andante me referia – e prossigo referindo-me. A lápis, a lápis. A
caneta é p’ra outras tintas (não meias- nem de troca-).
VII
Jaime Robertes, delinquente
profissional desde os doze anos. Matou premeditada & voluntariamente outro
presidiário. O assassinado era Francisco Arthur. Este sempre saiu da prisão. Cremaram-no,
deitaram ao aterro de lixo as cinzas, família nenhuma as reivindicou. O assassino
está de plantão naquele corredor que leva, ou há-de levá-lo, ao mesmo & tal
aterro, depois de cumpridas certas formalidades legais.
Ana Ouvebem, assistente social do
sistema penitenciário. Vive disso & nisso há mais de duas décadas. No tempo-livre,
voluntária de caridades: católicas, protestantes, mórmones, municipais, raciais,
trans-sexuais – todas & mais algumas. Vive sozinha em uma mansarda flagrante
& fragrante de alegres encarnados ramalhetes de sardinheiras.
A execução de Robertes está
marcada para 2 de Maio. Nenhum remorso de última-hora foi ou vai ser
apresentado a instância alguma: o algoz de Arthur quer sair do corredor pela
porta da morgue.
Ana O. mantém um diário-ficheiro a
partir de cujo teor pensa um dia arquitectar um relatório pseudónimo do que
viu, sabe, imagina, deseja. Não pretende poetar, no sentido pró-lacrimal, o(s)
relato(s) – mas também ainda não sabe o que deveras pretende. Anda há anos
nisto. Vai cuidando das bonitas sardinheiras que lhe alegram o balconete.
Francisco Arthur? Esparso, como
por aí tanta literatura jamais coligida em tomo.
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