11/07/2020

VinteVinte - 38 (V a VII)






V

Recordo:

O corpo imerso no largo do bosque, muitos anos antes de o terem poluído. Rapazes festivos nadando estardalhaçadamente, primeiro, pela euforia da nudez, da frigidez benigna ao sol filtrado de choupos, mais calmos depois, aproveitando a pureza que resulta de o porvir não ter vindo, não ainda. Esse sabor a demasiad’outrora, não o nego, a boca figurada da lembrança. Um lápis é quanta ferramenta tenho para nos ver(mos) nadando naquela água diamantinamente poalhada de luz. Tenho caneta, sim, mas isto precisa de ser a lápis. Antes da hora a sós por ora – e amanhã também, desde que ontem nunca mais.

VI


Rêverie – sonhambulação – dizia-Vos pois.
Não me refiro a preambulações romântico-nirvanas pasmando à Lua com o terceiro-olho (que as pessoas de siso sabem ser o do cu, não o do Lobsang Rampa).
Refiro-me às Línguas como ferramentas cosmovisoras, cosmo(a)gónicas até & mesmo.
As pessoas portuguesas menos plácidas & mais dadas ao repetitivismo repentista dos papagaios grunhem à saciedade que “lá fora não sabem o que é saudade” & que “é palavra sem tradução” para outras línguas. Disparate. Saudade & rêverie são, por assim dizer, legíveis em qualquer idioma desde que trabalhadas com senso & bom-gosto mas sem orgulho nem preconceito, parafraseando a Jane(ca) e o velho Antero.
Por desgraça, grassa entre nós o aborto do desacordo ortográfico com que alguns meliantes, em 1990, bulímico-anorectiram, por assim dizer, a nossa Língua.
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa” – é o verso de uma vida, como também a epígrafe em pedra de uma Identidade Nacional. A este tipo sonhambulant’andante me referia – e prossigo referindo-me. A lápis, a lápis. A caneta é p’ra outras tintas (não meias- nem de troca-).



VII

Jaime Robertes, delinquente profissional desde os doze anos. Matou premeditada & voluntariamente outro presidiário. O assassinado era Francisco Arthur. Este sempre saiu da prisão. Cremaram-no, deitaram ao aterro de lixo as cinzas, família nenhuma as reivindicou. O assassino está de plantão naquele corredor que leva, ou há-de levá-lo, ao mesmo & tal aterro, depois de cumpridas certas formalidades legais.
Ana Ouvebem, assistente social do sistema penitenciário. Vive disso & nisso há mais de duas décadas. No tempo-livre, voluntária de caridades: católicas, protestantes, mórmones, municipais, raciais, trans-sexuais – todas & mais algumas. Vive sozinha em uma mansarda flagrante & fragrante de alegres encarnados ramalhetes de sardinheiras.
A execução de Robertes está marcada para 2 de Maio. Nenhum remorso de última-hora foi ou vai ser apresentado a instância alguma: o algoz de Arthur quer sair do corredor pela porta da morgue.
Ana O. mantém um diário-ficheiro a partir de cujo teor pensa um dia arquitectar um relatório pseudónimo do que viu, sabe, imagina, deseja. Não pretende poetar, no sentido pró-lacrimal, o(s) relato(s) – mas também ainda não sabe o que deveras pretende. Anda há anos nisto. Vai cuidando das bonitas sardinheiras que lhe alegram o balconete.
Francisco Arthur? Esparso, como por aí tanta literatura jamais coligida em tomo.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante