08/07/2020

VinteVinte - 36 (terceiros & derradeiros fragmentos)






Heloísa Benilde Alarcão d’Andrada – 82 anos, 22 milhões guardadinhos na Suíça, longe dos netos toxicoisos. Deixá-la sorrir.

Neto de açoreanos (gosto mais de açoreano do que de açoriano; o mesmo quanto a caboverdeano), Joe Moraes é camionista endurecido. Faz muito a linha Eugene-Corvallis-Salem-Ellensburg-Olympia-Burlen-Lake Sammamish-Spokane. Portugal em & para nada lhe interessa. Gosta de pesca fluvial, o Columbia faz-lhe bem. Deixá-lo rodar.

Odília, Odília só, completou 48 anos em 2008. Empregada há dezassete no Café Avenida-Parque. Leal, não-faladeira, sem homem na história – nem mulher. Cria duas afilhadas pobrezinhas que mandou vir do torrão-natal (distrito de Viseu). Tem um sinal roxo sobre a sobrancelha-esquerda. Chamam-lhe Três-Olhos por causa disso. Ela não se rala. Tem dinheiro no banco, a prazo o tem, mesmo sendo os juros uma merda. Tem folgas às quintas, que goza só ela sabe como, onde – e porquê.

Belarmino, Belarmino só, gosta de líderes fortes – gajo que se costuma apodar de carismáticos. Nixon, Cavaco, De Gaulle, Napoleão, Ramsés II – por exemplo. Churchill, menos: porque bebia & fumava de mais. São gostos, inclinações, tendências. Na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o Professor Doutor Júlio da Costa Pimpão não suportava que chamassem “maneirista” ao Camões – para Pimpão, era o mesmo que amaneirado, amaricado portanto, panilas, rôto, adelaide-das-ínsuas. Belarmino teria gostado de Costa Pimpão – era um líder forte. De nariz, perdão, cariz mático.

Já pratiquei a aventura-mor do dia: fui ao lixo. Saí às 22h32m. Levei um cigarro, que fumei devagar no deserto da rua. Em marquise próxima, um vizinho fumava também. Dissemo-nos as boas-noites. Eu ia de luvas descartáveis mas sem máscara, má-cara apenas. Não sei a cor dos olhos desse fumador vizinho. Noite, gatos pardos etc. regressei à solidão escritória sem esforço nem pressa nem esperança nem desespero – regressei, é tudo.

No exacto dia em que a mãe de Raul A.S.L. fez 50 anos, uma rapariga foi assassinada do outro lado do mar. Chamava-se, a pobre, Melissa Smith, e as datas dela são 4/7/1957-27/10/1974. Foi o próprio Raul a apontar-me a efeméride, que, ele o disse, o perturbou muito. A mãe de Raul era Maria Luiza, morreu de causas naturais em idade pós-madura.

É preciso imaginar mais um pouco. A suposta realidade não alimenta o corpo todo, há sempre uma parte que precisa de nutrir-se alhures – um pouco à maneira de quem vai, de vez em quando, jantar fora. Imaginar no sentido fílmico: imagens-em-moção. O veado na neve, o vapor da respiração materializando-se nuvem privada dele. Privada por ser só dele – e privada dele por sair dele sem retorno a ele possível. As árvores perto da imagem do veado-respiratório. A paz resultante dessa imagem.

Um carro amarelo, novo, ao sol forte do Sul. Recordo a praça térrea em que o estacionaram. Sei que era Agosto, um desses (muitos, já demasiados) meses felizes em que a luz não doía o dia, antes soía a de sempre para sempre. Não era. Só foi. Duvido de que ainda ande. (O carro.)

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Canzoada Assaltante