a) Quinta-feira, 19 de Dezembro de 2019
O temporal canta lá fora, não é
grave, é como é, cantor. O ar & a água partilham o mundo. Uma parte da
atenção, dedico-a à dinâmica dos elementos. Outra parte, a imagens interiores,
espiral de recorrências, por assim dizer. O Gato lava-se, minucioso. Eu na
Língua, ele com a língua dele. Iço-me de meus escombros, vou fazer chá, chá cá
dentro & chuva lá fora combinam-se sempre bem, muito bem.
Aprendi coisas sobre William Booth,
cadáver há 107 anos. O vento deu conta dele, como de todos dá. Parece que ele
era de Nottingham, como Alan Sillitoe. Tenho de ir verificar se sim. E se ele
também nasceu a um 10 de Abril como o senhor meu Pai.
Em um sítio chamado Rocascura, um
cavalheiro de chapéu claro fuma charuto depois de se abrigar da chuva num
alpendre de solteironas, as Manas Pereirinha. Juro que não sei a numeração do
ano. Desconfio que seja pela altura da morte do general salvacionista Booth. É
por aí, quando já muito não falta para que estoire a Grande Guerra.
Este senhor-fulano safou-se muito
como representante de mercearias-finas. Casou-se mais bem ainda com uma viúva
decentíssima, amiga das Pereirinhas. A ex-viúva está lá dentro agora, a chá
& à conversa com as irmãs. Por tanto de delicadeza como de fastio, beltrano
veio também charutar para o alpendre. É homem de não pensar para lá do
suficiente. Contas certas, contas
arrumadas – lema dele, no negócio como no resto. O resto, agora que já não
negoceia artigos importados de refinado quilate, é a vida de casado com a de lá
dentro. Planeia livrar-se dela – pela morte, claro. É nisso que pensa enquanto
deixa consumir-se o cubano sem quase o levar à boca.
Certa violência dos elementos
exteriores (chamam-lhe “Depressão Elsa”)
serve de contraponto ao que, aconchegado em casa, vou tendo de dia, trabalho
& pensamento. Faço por abarcar, relacionar, cristalizar átomos de sabença. Há pouco, li um pouco: Calvino
sobre Queneau. Poucos trechos de cada vez: tem sido a minha leitura no
trono-de-louça durante duas semanas. Cozi vaca com batatas & espinafres,
além de cebola. O caldo ficou no ponto: chilro, a pedir a esmola de um fiinho
de azeite. Faltou-me nada. Até um resto de broa marchou. Pena não ser da minha
ida materAvó Cândida.
A noite já abriu as ingentes asas,
tinta preta saraivada de riscos de prata. Vento valente, arvoredo de cerviz
vergada. E eu no catre, forrado a flanelas. Falta-me aqui ninguém.
*
Um jovem regressa a casa.
A casa é a do outeiro.
Do outeiro vê-se o mar.
É do mar que ele regressa.
Um velho espera na gare.
Duas horas até o próximo.
O das 23h19m ruma o norte.
O velho vai para sul.
Casa de Amália face à praia.
O mar sempre, já não ela.
Longe, outra casa.
É a do outeiro.
Do outeiro vê-se o mar.
O rapaz regressa (a) velho.
*
Gente em hotel termal, sem
problemas de capital. Purga-se sulfuricamente, come verdes, passeia de manhã e
à noitinha pelo saibro ajardinado da cercania. O parque é gradeado, interdito a
qualquer público que não hóspede. Poroso, o arvoredo é farfalhado pelo vento
nocturno. A fonte original do estabelecimento foi rodeada de altos painéis de
azulejos em 1933. O mar dista doze quilómetros em linha recta, dezasseis pela
estrada municipal. Os velhos visitam-no pouco, ao mar. Os de meia-idade, um
pouco mais. Uma matrona suíça gere o hotel. As criadas são portuguesas e
moçambicanas. O recepcionista das 6 às 14 é de Braga. O das 14-22 é de Tomar. O
restante faz também de guarda, não sei de onde é. Preciso de versos para
demandar algo a tal respeito – de onde (se) é.
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