31/01/2020

CADERNETA PRETA - 33 - a)





a) Quinta-feira, 19 de Dezembro de 2019


O temporal canta lá fora, não é grave, é como é, cantor. O ar & a água partilham o mundo. Uma parte da atenção, dedico-a à dinâmica dos elementos. Outra parte, a imagens interiores, espiral de recorrências, por assim dizer. O Gato lava-se, minucioso. Eu na Língua, ele com a língua dele. Iço-me de meus escombros, vou fazer chá, chá cá dentro & chuva lá fora combinam-se sempre bem, muito bem.
Aprendi coisas sobre William Booth, cadáver há 107 anos. O vento deu conta dele, como de todos dá. Parece que ele era de Nottingham, como Alan Sillitoe. Tenho de ir verificar se sim. E se ele também nasceu a um 10 de Abril como o senhor meu Pai.

Em um sítio chamado Rocascura, um cavalheiro de chapéu claro fuma charuto depois de se abrigar da chuva num alpendre de solteironas, as Manas Pereirinha. Juro que não sei a numeração do ano. Desconfio que seja pela altura da morte do general salvacionista Booth. É por aí, quando já muito não falta para que estoire a Grande Guerra.
Este senhor-fulano safou-se muito como representante de mercearias-finas. Casou-se mais bem ainda com uma viúva decentíssima, amiga das Pereirinhas. A ex-viúva está lá dentro agora, a chá & à conversa com as irmãs. Por tanto de delicadeza como de fastio, beltrano veio também charutar para o alpendre. É homem de não pensar para lá do suficiente. Contas certas, contas arrumadas – lema dele, no negócio como no resto. O resto, agora que já não negoceia artigos importados de refinado quilate, é a vida de casado com a de lá dentro. Planeia livrar-se dela – pela morte, claro. É nisso que pensa enquanto deixa consumir-se o cubano sem quase o levar à boca.

Certa violência dos elementos exteriores (chamam-lhe “Depressão Elsa”) serve de contraponto ao que, aconchegado em casa, vou tendo de dia, trabalho & pensamento. Faço por abarcar, relacionar, cristalizar átomos de sabença. Há pouco, li um pouco: Calvino sobre Queneau. Poucos trechos de cada vez: tem sido a minha leitura no trono-de-louça durante duas semanas. Cozi vaca com batatas & espinafres, além de cebola. O caldo ficou no ponto: chilro, a pedir a esmola de um fiinho de azeite. Faltou-me nada. Até um resto de broa marchou. Pena não ser da minha ida materAvó Cândida.
A noite já abriu as ingentes asas, tinta preta saraivada de riscos de prata. Vento valente, arvoredo de cerviz vergada. E eu no catre, forrado a flanelas. Falta-me aqui ninguém.

*

Um jovem regressa a casa.
A casa é a do outeiro.
Do outeiro vê-se o mar.
É do mar que ele regressa.

Um velho espera na gare.
Duas horas até o próximo.
O das 23h19m ruma o norte.
O velho vai para sul.

Casa de Amália face à praia.
O mar sempre, já não ela.
Longe, outra casa.
É a do outeiro.
Do outeiro vê-se o mar.
O rapaz regressa (a) velho.

*

Gente em hotel termal, sem problemas de capital. Purga-se sulfuricamente, come verdes, passeia de manhã e à noitinha pelo saibro ajardinado da cercania. O parque é gradeado, interdito a qualquer público que não hóspede. Poroso, o arvoredo é farfalhado pelo vento nocturno. A fonte original do estabelecimento foi rodeada de altos painéis de azulejos em 1933. O mar dista doze quilómetros em linha recta, dezasseis pela estrada municipal. Os velhos visitam-no pouco, ao mar. Os de meia-idade, um pouco mais. Uma matrona suíça gere o hotel. As criadas são portuguesas e moçambicanas. O recepcionista das 6 às 14 é de Braga. O das 14-22 é de Tomar. O restante faz também de guarda, não sei de onde é. Preciso de versos para demandar algo a tal respeito – de onde (se) é.


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Canzoada Assaltante