28. Só Esta
Sábado, 14 de Dezembro de 2019
É só esta vida.
Não estou a dizer que gostaria de
ter mais uma. Nem que bom seria esta não ser o fim mas o princípio de outra
coisa, forma, dimensão, qualquer porra assim. Mas não. É só esta. Só este
corpo, o tempo dele.
Memória & projecção. Ah sim, a
Beleza. Ela existe, tanto existe que por vezes nem parece criação humana.
Entendo-a como necessidade profunda. Entendo outras coisas também – mas não são
tão importantes. Claro que demorei anos até isto. Não faz mal, demorou o que
demorou, mesmo que tivesse cá chegado mais cedo, seria aqui que continuaria,
como aliás continuo. Passa-se o mesmo – ou muito semelhante – com a população
que se vai contactando ao longo da corrida. Sim, isto é mais corrida do que
passeio. Também não faz mal.
Via-férrea pela extensão nevada.
Esparsos arvoredos, muito negros na distância – de facto, parecem aumentá-la.
Casario ainda mais esparso. A luz vai erguendo a tenda, há panos de noite ainda
por dissipar. Dá logo para sentir que o mar mora muito longe deste ponto. Antes
da ferrovia e das casas isoladas, os milénios não mexeram muito nisto. Aquele
pico pétreo já então subia àquele mesmo sempre novo azul. Mas é a primeira vez
(esta) que o lápis (depois tinta, se tudo correr bem) o toca.
Recordo um cavalo morto em certo
terreno baldio cercado de prédios deprimentíssimos. Os ciganos deixaram-no
morrer à fome, à sede, às moscas. Ninguém dos prédios alertou autoridade
nenhuma. Esta visão faz de tatuagem na pele da memória – e eu detesto tatuagens.
(Tenho – ou sou tido por – mais
disto. Por vezes, até me dá para inventar lembranças no intuito de me livrar
das verdadeiras. É mania inofensiva, não traz mal ao mundo. Também o não
alivia, valha a verdade.)
Pertenço ao Sábado-Novo, no
pré-crepúsculo do ano, como o gato perdido que hoje de manhã senti alhures
chiando à/de fome. Pirei-me de casa para rapar um trecho de tarde. Aqui estou.
Por enquanto, qual todos V. Trouxe comigo a 2.ª edição de A Idade do Jazz-band (Portugália, Lx., 1924) da besta do António
ferro. Já vou a mais que meio desse nada
que o gajo escrevia – nosso goebbelszito
de anti-estimação.
Pertenço ao meu lápis (tinta, por
vezes sem cura nem doença-para-já. E aos Gatos. O meu-em-casa & ao que lá
fora concretizava a perdição essencial do nascimento – para isto.
Para isto:
No Jardim da Manga espargi pão
envelhecido
que as pombas aceitaram por novo
& bem-vindo
(& até lindo), sim, isso fiz,
quási distraído,
isto ninguém me rouba, o, dando-me,
ir-me indo.
(Cachopada, graúdos & até velhos
– tudo açaimado aos smartcoisos. Não
há quem não. Cáfila roedora de esferovite. Artimanha do Império. Néon-realismo,
parece.)
(Caderneta Preta – é capaz de vir a ser o título desta porra.)
(...)
(O Sábado deixou de interessar-me
tanto. Em era irretornável, foi o favorito de meus então favorecidos dias. Nevermore, como dizia o Edgar Corvo, não
sei se V. já falei dele.)
(...)
Assim vai bem – se mal, o mesmo
daria – o que por natura tem de ir.
Há o capitão-doutor José Maria
Antunes. Há o seu homólogo Mário Coluna. Há o galês Ian Rush, bigodinho
matador. Há o escocês Dalglish, elegantíssimo, como também M. Van Basten,
voador & holandês. Dois santos-evangelistas: Cruijff & Beckenbauer: ou
João & Francisco, respectivamente. O Pelé nada (zero-nada deveras) me diz.
Eusébio faz na relva o que Amália & Paredes fizeram no tablado. (...)
O mínimo que me exijo – é ser
máximo predador da palavra-justa, do justo, do justo-verso. Mirai: este é um
(quase ex-)sábado coimbrão, impera a trémula cinza neónica, nem muito nem muito
interessada & interessante gente com quem falar. Mesmo assim, todavia:
António, meu Amigo, que não és já,
jazes só nome, osso sob mármore,
duas datas do além-mais-delá,
Ausenda, viva ainda tua Mãe, ar
more
fresco em minha inútil lembrança,
conversámos anos bem, isso nos
valha,
a puta-vida é grossa, fina porém
dança,
a puta-morte – a lembrança a quem a
trabalha.
*
Faço escrevivendo por merecer a
manhã,
entardenoitece porém sem remédio.
(Não me ligues, seria um tédio
pestífero dizer ah-sim?-o quê?-hã?)
(...)
Nomes batem latem
Na treva ladram perpetram
Quero tão-só esmolá-los
Dar-lhes aveia, dar-lhes a veia.
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