02/01/2020

CADERNETA PRETA - 25 (trechos)




25. Tartamudeadas Circunstâncias
    



a) Terça-feira, 10 de Dezembro de 2019


Monstros emergem do olvido, o surto medonho de suas acções segue vibrante em escândalo – exemplos conspícuos ingentíssimos, Myra & Ian. Sim, Hyndley & Brady. Na desolada charneca, as crianças inumadas por nada.
Ou os pequeníssimos horrores domésticos, décadas a fio de quotidianos miserabundos, malévolos como vírus urdindo a destruição sistemática do hospedeiro.
E no entanto certos aspectos do real louvam o nascimento individual, refrescam na pessoa certas alegrias ricas, avulsos contentamentos que fazem sorrir por dentro à tontinho-feliz-da-vida. Sim, isto mesmo assim.

Conheci vastidões meladas de sol criador, talvez mais a sul de onde tenho agora os sapatos. Só por escrito posso revivê-las, de resto há que ir tecendo a teia das terças-feiras etc.

Livram-nos em dispersão pelo acampamento, cabe-nos apreender (mais do que compreender, acho) as regras, praticá-las até em pousio ambulatório. A liberdade é obra interior, assim como certa misantropia advém & devém portátil.

Pessoas da minha criação (no Tempo como na Área) vão perdendo os progenitores, como aos meus perdi já nos (muitos, demasiados) anos. Vêm chegando tais notícias ao meu reduto escrito (&estrito).
Algumas das pessoas neo-órfãs parecem placar bem a lei inexorável – mas cabalmente democrática, posto que regra sem excepção nem para os abastados. Outras, todavia, tremem desde seus fundamentos mais freáticos. Recentemente, estive em pessoa com uma destas.
É F. M. (José a seguir a F.) Foi em certa finimanhã de dúbia claridade. Eu dera já a pombas & pardais quanta ração lhes trouxera, preparando-me para acampar ali no brasileiro do Bota Abaixo no intuito muito são de me botar a ler coisas portuguesas setecentistas. F. José M. surgiu de bandas da Loja do Cidadão. Trazia dois sacos com secos alimentícios-. Dão-lhos num núcleo de caridade pública. Disse-me ele que a mãe lhe morrera no sábado imediatamente anterior. Notava-se-lhe bem nos olhos, sou & dou disso testemunho fiel. Dei-lhe as minhas, aliás leais, condolências. Tartamudeámos ainda algumas circunstâncias, separámo-nos após um abraço já sereno. Eu sabia bem que país habitava ele agora. Ainda sei.

*

Habitamos singularmente a sem-razão
do mundo, da vida que o fervilha,
em fila horrenda, em escamoteação,
febris a frio, gratos ao que nos calha.

Por mim, nego, renego & arrenego
quanto posso da consuetudinária vileza,
não mau de mais é o meu desassossego,
enfim não pior que o da geral pireza.

Solenes óbitos, comezinhos hábitos
(tenho a sopa ao lume, volto já)

(dizia:)
Solenes óbitos, comezinhos hábitos,
talentos aos zeros dos génios inéditos,
paspalhos de cátedra, professoritos,
plebe afamada, burros com cornitos.

Juramos corduras que gorduras são,
quais pontes de pau já rangem os anos,
encanecidos infantes de arribação,
somos mais bentinhos pois quão mais profanos.

Tenebrosas mitras tipo dickensianas,
idem hipermercados do fruste rebanho,
casotas infectas, dilectas, insanas,
corruptas cloacas pingonas de ranho.

Por mim só nos digo sermos nós nenhuns,
isto é por si cada um, nada de ilusões,
rebéubéu-pardais-ao-vinho
(ao vinho sim – e aos garrafões).

A vida é só uma apesar de haver tantas,
cantas mal, ó cèguinho, e p’ra mais não encantas,
chorar n’é remédio, nem cura há-de vir
para o desgraçado que se não sabe rir.

Cada praia resguarda diferentes infâncias,
ao sol-solidó é muita a solidão,
só da morte se não salvaguardam distâncias,
minha rica sopa de porca & feijão.

Resido em espuma, não sou diverso,
esboroo-me areia  que sou como todos,
o pão do meu dia é da farinha dum verso,
desde que venha justo aos 5-sentidos.

Literatura sim, jamais literatice,
vade-retro, ó torgas, ó pargos-alegres,
em Setembro 100 anos fez a Dona Alice
Duarte, de arte bonita & olhos álacres.

Saio esta tarde, tenho uma obrigação,
fica-me sozinho o gatinho em casa,
levo roupa lavada com mui bom sabão
& água corrente que à pia vaza.

E vou de sapato, não de sapatilha,
de couro no tronco o bom casacão,
singularmente vestido de minha sem-razão,
meu mundo & a vida que nele fervilha.

*

“Acabou de se imprimir em 31 de Janeiro de 1940, na Imprensa Artística Limitada, Rua do Diário de Notícias, 113-115, Lisboa – Telefone 2 8761” – o volume Compasso de Espera, de Bastos Guerra. Na mesma página final, o aviso: “DIREITOS RESERVADOS PARA TODOS OS PAÍSES, INCLUINDO DESDE JÁ, Á [sic] CAUTELA, TODOS OS QUE VENHAM A SER CRIADOS OU RECONSTITUÍDOS DEPOIS DA PRESENTE GUERRA”.
É obra de humorista. Páginas 65-66: “Os mortos mandam. A morte representa uma garantia, uma superioridade, uma situação muitíssimo respeitável. Para levar um defunto, são precisos quatro homens; para levar um vivo, basta um polícia.”

(...)


b) Quarta-feira, 11 de Dezembro de 2019
  
(...)

Anda comigo a imagem daquele homem retornando, via zona portuária, a casa ao cabo do dia de trabalho, julgo que em algum escritório. Tanto esse homem pode ser poeta grego quanto não, nem por isso ou até antes pelo contrário. Importa-me mais ele gostar de barcos crepusculares. Depois, ele não conta comigo. Vai a um café escrever cartas, tomar algum calorífero, pasmar por dentro às moscas inventadas.
Essa imagem antiguece em mim. Não me faz mal nem me engorda. Anda-me por assim dizer aos ombros – mas não me pesa. Ela é como palavras justas ditas por homens como Vítor Silva Tavares & Alberto Pimenta. Escutei tais palavras, assimilei-as, não me engordam, é certo, mas.
É meu poder deitar sombra própria até, se me apetecer, à própria luz. Há quem estranhe eu ter passado a abominar o Verão – é por não terem perdido a Mãe. A minha, digo. Milito dias frios, dai-me névoa, ó carácio!
Ando com ele homem não retornando. É mais afinal isto.
Mãe-não-máscara.
Pai-nome-triste.
Filha, dás cara:
teu nome existe.
Nem dou dois espaços porque tal amor me sobre’viv’r-existe. Não vou hoje. Falta haver barcos de retorno. Tenho batatas em casa – mas é ao Gato que chamo casa. Mais versos se me achegam no enquanto-hei-corpo. Não me faço menos. Não me os faço menos. Nada me valerá outra pena.
Agora sim, dois espaços.

*

Falta-me saber Alemão para Rilke,
para Goethe nem tanto, tu desculpa lá.
Quero-me dez versos – ou uns mil que
se façam janelas abertas p’ra cá.
Joan Margarit, barão de Altamira,
vem tomar um copo (ou sopa), tu vem!
Por certo t’ diria coisas de ’nha Mãe,
ou não, outra coisa venha & se prefira.
Este É O Gato, É Branco Ovante,
Respira Limpeza, Nunc’-’á-de Morrer.
Decidiu Viver, Tem Tudo de Ante,
E Eu Vivo Dele O Ainda Viver.
Receio bem que nascer se faça tarde,
que morrer não seja apenas ter sono.
Temo que jamais se faça outono,
lá onde ouro-velho em parra vã arde.
Barrete & enfiar são termos geminados,
os ditos-comuns são sérios brinquedos.
O Velho-da-Montanha tem ’ma Casa-de-Fados.
Afónica paralisia faz-nos mudos & quedos.
Falta-me Ser Mais Só, Andar Mais À Chuva.
Cismo Se Cuspo & Cismo Se Não.
Repugna-me O Século, Tempo Canastrão.
E Quanto Ao Futuro, Q’Vá Dar Uma Curva.
Houve um homem que foi Rui Caeiro.
Parece ter morrido, ninguém o apanha.
Meu tronco ’inda sobe, sou ’inda Abrunheiro.
Gostamos os dois de Camilo Pessanha.
Coimbra é minha, depois de varrida.
Pulula formigas tão trabalhadeiras,
q’ninguém tem tempo, ninguém se convida
a espigas-vermelhas beijadas em eiras.
Mais me valera descuidar as merdices
da palavra impressa, da vid’agrafada,
sensíveis manchinhas, literapaneleirices,
sem o fim-de-mês-salário-carneirada.
Falar, falhar, ter casa sem lar.
Limpar bem o cu, voltar a tentar.
Faltar
etc.

(...)







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Canzoada Assaltante