25. Tartamudeadas Circunstâncias
a) Terça-feira, 10 de Dezembro de 2019
Monstros emergem do olvido, o surto
medonho de suas acções segue vibrante em escândalo – exemplos conspícuos
ingentíssimos, Myra & Ian. Sim, Hyndley & Brady. Na desolada charneca,
as crianças inumadas por nada.
Ou os pequeníssimos horrores
domésticos, décadas a fio de quotidianos miserabundos, malévolos como vírus
urdindo a destruição sistemática do hospedeiro.
E no entanto certos aspectos do
real louvam o nascimento individual, refrescam na pessoa certas alegrias ricas,
avulsos contentamentos que fazem sorrir por dentro à tontinho-feliz-da-vida.
Sim, isto mesmo assim.
Conheci vastidões meladas de sol
criador, talvez mais a sul de onde tenho agora os sapatos. Só por escrito posso
revivê-las, de resto há que ir tecendo a teia das terças-feiras etc.
Livram-nos em dispersão pelo
acampamento, cabe-nos apreender (mais do que compreender, acho) as regras,
praticá-las até em pousio ambulatório. A liberdade é obra interior, assim como
certa misantropia advém & devém portátil.
Pessoas da minha criação (no Tempo
como na Área) vão perdendo os progenitores, como aos meus perdi já nos (muitos,
demasiados) anos. Vêm chegando tais notícias ao meu reduto escrito
(&estrito).
Algumas das pessoas neo-órfãs
parecem placar bem a lei inexorável – mas cabalmente democrática, posto que
regra sem excepção nem para os abastados. Outras, todavia, tremem desde seus
fundamentos mais freáticos. Recentemente, estive em pessoa com uma destas.
É F. M. (José a seguir a F.) Foi em
certa finimanhã de dúbia claridade. Eu dera já a pombas & pardais quanta
ração lhes trouxera, preparando-me para acampar ali no brasileiro do Bota
Abaixo no intuito muito são de me botar a ler coisas portuguesas setecentistas.
F. José M. surgiu de bandas da Loja do Cidadão. Trazia dois sacos com secos
alimentícios-. Dão-lhos num núcleo de caridade pública. Disse-me ele que a mãe
lhe morrera no sábado imediatamente anterior. Notava-se-lhe bem nos olhos, sou
& dou disso testemunho fiel. Dei-lhe as minhas, aliás leais, condolências.
Tartamudeámos ainda algumas circunstâncias, separámo-nos após um abraço já
sereno. Eu sabia bem que país habitava ele agora. Ainda sei.
*
Habitamos singularmente a sem-razão
do mundo, da vida que o fervilha,
em fila horrenda, em escamoteação,
febris a frio, gratos ao que nos
calha.
Por mim, nego, renego &
arrenego
quanto posso da consuetudinária
vileza,
não mau de mais é o meu
desassossego,
enfim não pior que o da geral
pireza.
Solenes óbitos, comezinhos hábitos
(tenho
a sopa ao lume, volto já)
(dizia:)
Solenes óbitos, comezinhos hábitos,
talentos aos zeros dos génios
inéditos,
paspalhos de cátedra,
professoritos,
plebe afamada, burros com cornitos.
Juramos corduras que gorduras são,
quais pontes de pau já rangem os
anos,
encanecidos infantes de arribação,
somos mais bentinhos pois quão mais
profanos.
Tenebrosas mitras tipo
dickensianas,
idem hipermercados do fruste
rebanho,
casotas infectas, dilectas,
insanas,
corruptas cloacas pingonas de
ranho.
Por mim só nos digo sermos nós
nenhuns,
isto é por si cada um, nada de
ilusões,
rebéubéu-pardais-ao-vinho
(ao vinho sim – e aos garrafões).
A vida é só uma apesar de haver
tantas,
cantas mal, ó cèguinho, e p’ra mais
não encantas,
chorar n’é remédio, nem cura há-de
vir
para o desgraçado que se não sabe
rir.
Cada praia resguarda diferentes
infâncias,
ao sol-solidó é muita a solidão,
só da morte se não salvaguardam
distâncias,
minha rica sopa de porca &
feijão.
Resido em espuma, não sou diverso,
esboroo-me areia que sou como todos,
o pão do meu dia é da farinha dum
verso,
desde que venha justo aos
5-sentidos.
Literatura sim, jamais literatice,
vade-retro, ó torgas, ó
pargos-alegres,
em Setembro 100 anos fez a Dona
Alice
Duarte, de arte bonita & olhos
álacres.
Saio esta tarde, tenho uma
obrigação,
fica-me sozinho o gatinho em casa,
levo roupa lavada com mui bom sabão
& água corrente que à pia vaza.
E vou de sapato, não de sapatilha,
de couro no tronco o bom casacão,
singularmente vestido de minha
sem-razão,
meu mundo & a vida que nele
fervilha.
*
“Acabou de
se imprimir em 31 de Janeiro de 1940, na Imprensa Artística Limitada, Rua do
Diário de Notícias, 113-115, Lisboa – Telefone 2 8761” – o volume Compasso de Espera, de Bastos Guerra. Na
mesma página final, o aviso: “DIREITOS
RESERVADOS PARA TODOS OS PAÍSES, INCLUINDO DESDE JÁ, Á [sic] CAUTELA,
TODOS OS QUE VENHAM A SER CRIADOS OU RECONSTITUÍDOS DEPOIS DA PRESENTE GUERRA”.
É obra de humorista. Páginas 65-66: “Os
mortos mandam. A morte representa uma garantia, uma superioridade, uma situação
muitíssimo respeitável. Para levar um defunto, são precisos quatro homens; para
levar um vivo, basta um polícia.”
(...)
b) Quarta-feira, 11 de Dezembro de 2019
(...)
Anda comigo a imagem daquele homem
retornando, via zona portuária, a casa ao cabo do dia de trabalho, julgo que em
algum escritório. Tanto esse homem pode ser poeta grego quanto não, nem por
isso ou até antes pelo contrário. Importa-me mais ele gostar de barcos
crepusculares. Depois, ele não conta comigo. Vai a um café escrever cartas,
tomar algum calorífero, pasmar por dentro às moscas inventadas.
Essa imagem antiguece em mim. Não
me faz mal nem me engorda. Anda-me por assim dizer aos ombros – mas não me
pesa. Ela é como palavras justas ditas por homens como Vítor Silva Tavares
& Alberto Pimenta. Escutei tais palavras, assimilei-as, não me engordam, é
certo, mas.
É meu poder deitar sombra própria
até, se me apetecer, à própria luz. Há quem estranhe eu ter passado a abominar
o Verão – é por não terem perdido a Mãe. A minha, digo. Milito dias frios,
dai-me névoa, ó carácio!
Ando com ele homem não retornando.
É mais afinal isto.
Mãe-não-máscara.
Pai-nome-triste.
Filha, dás cara:
teu nome existe.
Nem dou dois espaços porque tal
amor me sobre’viv’r-existe. Não vou hoje. Falta haver barcos de retorno. Tenho
batatas em casa – mas é ao Gato que chamo casa. Mais versos se me achegam no
enquanto-hei-corpo. Não me faço menos. Não me os faço menos. Nada me valerá
outra pena.
Agora sim, dois espaços.
*
Falta-me saber Alemão para Rilke,
para Goethe nem tanto, tu desculpa
lá.
Quero-me dez versos – ou uns mil
que
se façam janelas abertas p’ra cá.
Joan Margarit, barão de Altamira,
vem tomar um copo (ou sopa), tu
vem!
Por certo t’ diria coisas de ’nha
Mãe,
ou não, outra coisa venha & se
prefira.
Este É O Gato, É Branco Ovante,
Respira Limpeza, Nunc’-’á-de
Morrer.
Decidiu Viver, Tem Tudo de Ante,
E Eu Vivo Dele O Ainda Viver.
Receio bem que nascer se faça
tarde,
que morrer não seja apenas ter
sono.
Temo que jamais se faça outono,
lá onde ouro-velho em parra vã
arde.
Barrete & enfiar são termos geminados,
os ditos-comuns são sérios
brinquedos.
O Velho-da-Montanha tem ’ma
Casa-de-Fados.
Afónica paralisia faz-nos mudos
& quedos.
Falta-me Ser Mais Só, Andar Mais À
Chuva.
Cismo Se Cuspo & Cismo Se Não.
Repugna-me O Século, Tempo
Canastrão.
E Quanto Ao Futuro, Q’Vá Dar Uma
Curva.
Houve um homem que foi Rui Caeiro.
Parece ter morrido, ninguém o
apanha.
Meu tronco ’inda sobe, sou ’inda
Abrunheiro.
Gostamos os dois de Camilo
Pessanha.
Coimbra é minha, depois de varrida.
Pulula formigas tão trabalhadeiras,
q’ninguém tem tempo, ninguém se
convida
a espigas-vermelhas beijadas em
eiras.
Mais me valera descuidar as
merdices
da palavra impressa, da
vid’agrafada,
sensíveis manchinhas,
literapaneleirices,
sem o
fim-de-mês-salário-carneirada.
Falar, falhar, ter casa sem lar.
Limpar bem o cu, voltar a tentar.
Faltar
etc.
(...)
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