24. Sossego Temporário na Realidade Devoluta
a) Domingo, 8 de Dezembro de 2019
(...)
Ocorrem-me vivamente nomes de
mortos. (Ocorre-me em dura constância, tal ocorrência.) Gostaria de ter hoje
comigo o senhor José Dias, presidente filarmónico-louriçalense de/por muitos
anos – alguns, meus. Não tenho, não posso, a morte o ensurdeceu de vez.
Entretanto, a mesa não distante, branco bule de chá, duas chávenas tão brancas
quão o casal (nórdico) que as roda. Vivos, prósperos, de visita. Visita-me
também o Olímpio Ferreira de que V. disse já alguma coisa. Ainda em casa antes
disto-agora, terminei a segunda releitura (integral, claro) de Uma Luz no Toldo Vermelho de J. M. Magalhães:
alguns versos bons, mas menos do que nas duas primeiras leituras. Mea culpa, decerto. Velhice minha – e
galopante, quiçá –, decertinho.
Mais cedo (muito mais cedo) do que
tarde, a cidade em que se nasce acaba anoitecendo soterrada de mortos, alguns
dos que amados por um. A um. A tal regra me não excepciono.
31 de Dezembro próximo, lá
chegando, darei por conclusa esta Caderneta.
Tenho por concluir, também, o volume Leite
dos Santos. Mas a 1 de Janeiro do Vinte’Vinte darei pontapé-de-saída a uma
revisitação de Coimbra. Dura a quero. Consciência desde já confessada:
escrevendo a partir de mortos (pessoas & objectos & traçados), duvido
mui grave & seriamente de vir a ser lido por vivos. Tal – importa-me nada.
Redondíssimo zero.
Com laivos de outras incisões,
continua a ser de filologia-românica o meu modus-(des)vivendi.
Problema nenhum. É cá comigo. Na esplanada do Café Moçambique (cerra-se lá fora
a noite, poalha d’água já invernosa, deliciosa), um semidoido gesticula sua
teatral solidão. Não é já novo, não é do rebanho estudanteiro do contexto, deve
desandar pela minha idade, fuma & bebe tabaco-cerveja, moderadamente aliás.
Ele vive. É nosso com-ex-temporâneo.
Chego amanhã a casa, ontem foi a
outra que cheguei, por enquanto sou de lápis, seguro sigo de morfologia &
sintaxe, quando sei não imagino, quando imagino faço por saber, há-de ser
sempre a sós que alguma coisa eu angarie que dar ao colectivo, até na bienal
procissão da Rainha Santa há-de haver alguém que chegue ’inda a casa.
(...)
Nos anteontens menos maus, soletrei
o meu verso, li o meu Steinbeck, podei a minha rosária roseira da boa-fé –
fundamente me devo ter enganado em quês, quens, quandos & ondes: mas mal já
nenhum, que a amados mortos devo bem mais (mas posso pagar-, lápis sendo,
-lhes).
(...)
(Mas a que casa em que amanhã?)
b) Segunda-feira, 9 de Dezembro de 2019
Adriano Barnabé Salústio Campomaior
sabe muito de livralhada. Vi-o ontem (ele não me viu, eu não me apresentei) no
Santa Cruz com um Stendhal aberto no mármore, junto a café & bagaço. Está
com 68 anos, isso eu sei, mas deveras semelha menos dez ou quinze. Resignou-se
à viuvez vitalícia, a Marta dele cruza há vinte e três anos o Averno. Adriano
esteve oito anos em Cambridge como professor-convidado. Deu-se bem, nunca me
disse se alguma vez se arrependeu de voltar a este morredouro de extraviados-do-clima.
Deixei-o na paz dele, às voltas por Milão com o moço Fabrício.
Voei sozinho para outras aragens.
(Nem na vida outra coisa tenho feito.) Já me não refiro a ontem-domingo mas a
cruzados dias sozinhos, que faço por creditar a meu favor mercê de prática
lapiseira, tinteira por vezes. Tenho andado de casaco quente. Não me queixo de
calçado: o que tenho me não descalça. Sigo sem mor esforço meu mesmo regimento.
Continua minha prerrogativa a nomeação de anjos à civil paisana, de que Coimbra
é pródiga, sempre foi, não sei se sempre será. Comigo uma vez morto, tal dúvida
desvanecer-se-á sem rebuço nem espasmo, sem esperneação nem estertor.
Na Rua das Figueirinhas, subindo-a
eu, vi descendo-a o velho ourives Damião, belo exemplar octogenário das nossas
mais justamente afamadas tabernas. Velho catita, de perpétuo sorriso traçado no
rosto de pardal.
No Pátio da Universidade, arejei-me
quase violentamente. A hora foi feliz, já que de momento o lugar não sofria
praga de turismo geriátrico. Fui-me a emborcar bebida viril na Rua das Rãs,
soube-me a fruta espremida de fresco & de repente. Depois (mas pode ter
sido noutro antes, literariamente é igual), reli, a conta-gotas e o mais
prazenteiramente, TS Eliot & Dylan Thomas. Fez-me bem, apaziguou maus
pensamentos.
Encontrei sítio-beberete onde
sentar-me ouvindo de meus compatriotas a Língua maravilhosa. Em essa benigna
pira ardi duas horas suavíssimas. Fora do estanco, à vista rasgada como papel
novo, tílias bebiam a morrinha, implacável poalha de esmigalhado diamante
pluvial. Anjos da facúndia ali presentes: o cego Jeremias (empregado nos
Correios como contabilista), o coxo Baltazar (reformado dos TIR), o maneta
Roberto (patrão da Casa Juliana, chapéus & gravatas), o careca Euclides
(devorador de tremoços com pevides), o daltónico Ventura (professor de
Geografia no Infanta D.ª Maria) & o discreto dono da casa, Artur Henrique
Cecílio Dias, também cognominado Venta
Larga. Sim, no durante produzi alguns pentassílabos à Camões musicado por o
Zeca. Saíram-me mitigados, miudinhos, menoscabados & algo nozmoscados. Guardei-os,
como sempre faço, para amnésia futura. Já ali não sou alienígena. Aceitam-me
como o calado-que-escreve-a-lápis-tinta-por-vezes. De vez em quando
solicitam-me um desempate argumentativo lá entre eles. Certa ocasião, qual a
nação maior, se a Rússia, se a Ucrânia. Eu por acaso sabia. Por birra, não
queriam crer no que dizia o Ventura, natural autoridade na matéria. Corroborei
a alegação russa do professor, que me gratificou com um rico bagacinho. Quando
um dia destes for amanhã, volto lá. Sou pausadamente feliz ali. O sítio não tem
televisor, a Deus graças. Dá para ver chovendo nas tílias. Gajos boníssimos que
já lá li & reli: Le Carré, Greene (o Graham, não o Julian/Julien), Burgess,
Osborne, Dos Passos, Calvino, Maugham, Ferreira de Castro, o madrileno Marías,
Anouilh, Beckett, Mann, a lúbrica freira Alcoforado também. Quando as moedas
dão, gosto de lá comer: iscas hepáticas com batata cozida, petinguinha fritas
com ervas-de-molho, pernil porcum acalentado no forno, favas aporcalhadas com
chouriço & morcela da matança novembrina. O vinho é caseiro, não o que se
lê no garrafão. O pão é do senhor António de Vilela.
Durante outro hoje, fico em casa.
Disponho de música ad infinitum.
Ainda há, ou hei, muita livralhada por reordenar. No YouTube, revejo a mirífica
final de 1979, claro que no velhinho Wembley, da FA Cup. Arsenal 3 – Man.
United 2. Tenho aquele champô de selénio-de-zinco para o casco. Tenho
entrecosto de ontem com arroz-branco. Fiz sopa de feijão-verde, que me saiu
capitosa. Há duas tacitas de pudim-flan ainda. A calma diz presente.
A História – vejo-a como estaleiro
de materiais-de-reconstrução. Ensejo conhecê-la em a profundidade possível. É
agradável vertigem, o viajar no Tempo – até por manobra contrapontual ao próprio
corpo físico chamado animal-pessoa. Depois de comer, embarco. Aprendo um
Theodore nascido a 12 de Maio de 1942. Matou pessoas por obsessiva raiva
anti-sistema-social. Sou depois visitado pelo sono. Sonho com uma região florestada
sem indústria perto. Há uma cabana abandonada a poucos passos de frígido
regato, cuja água colho para ferver chá. Há escritos na parede do lado
nascente. Foram morosamente talhados a canivete por inominável mão. Desperto.
Apresso-me a lapijar – aqui mesmo – palavras sobreviventes do sonho: VANDERBILD, Ofício, Magma, Sopé, BERG,
Himalaia, Corça, Enseada, Estrela, MAJOR. Na realidade devoluta, faço de
facto chá – mas com água municipalizada. Não me importaria de o sonho da noite
mais logo me retrazer o cenário sonhado à tarde. Duvido que tal suceda – tal
como a alegria, a cabana ao natural é rara, una & indivisível em
prestações. Deixo em sossego temporário o livro.
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