02/01/2020

CADERNETA PRETA - 24 (trechos)




24. Sossego Temporário na Realidade Devoluta
    


a) Domingo, 8 de Dezembro de 2019


(...)

Ocorrem-me vivamente nomes de mortos. (Ocorre-me em dura constância, tal ocorrência.) Gostaria de ter hoje comigo o senhor José Dias, presidente filarmónico-louriçalense de/por muitos anos – alguns, meus. Não tenho, não posso, a morte o ensurdeceu de vez. Entretanto, a mesa não distante, branco bule de chá, duas chávenas tão brancas quão o casal (nórdico) que as roda. Vivos, prósperos, de visita. Visita-me também o Olímpio Ferreira de que V. disse já alguma coisa. Ainda em casa antes disto-agora, terminei a segunda releitura (integral, claro) de Uma Luz no Toldo Vermelho de J. M. Magalhães: alguns versos bons, mas menos do que nas duas primeiras leituras. Mea culpa, decerto. Velhice minha – e galopante, quiçá –, decertinho.

Mais cedo (muito mais cedo) do que tarde, a cidade em que se nasce acaba anoitecendo soterrada de mortos, alguns dos que amados por um. A um. A tal regra me não excepciono.
31 de Dezembro próximo, lá chegando, darei por conclusa esta Caderneta. Tenho por concluir, também, o volume Leite dos Santos. Mas a 1 de Janeiro do Vinte’Vinte darei pontapé-de-saída a uma revisitação de Coimbra. Dura a quero. Consciência desde já confessada: escrevendo a partir de mortos (pessoas & objectos & traçados), duvido mui grave & seriamente de vir a ser lido por vivos. Tal – importa-me nada. Redondíssimo zero.

Com laivos de outras incisões, continua a ser de filologia-românica o meu modus-(des)vivendi. Problema nenhum. É cá comigo. Na esplanada do Café Moçambique (cerra-se lá fora a noite, poalha d’água já invernosa, deliciosa), um semidoido gesticula sua teatral solidão. Não é já novo, não é do rebanho estudanteiro do contexto, deve desandar pela minha idade, fuma & bebe tabaco-cerveja, moderadamente aliás. Ele vive. É nosso com-ex-temporâneo.

Chego amanhã a casa, ontem foi a outra que cheguei, por enquanto sou de lápis, seguro sigo de morfologia & sintaxe, quando sei não imagino, quando imagino faço por saber, há-de ser sempre a sós que alguma coisa eu angarie que dar ao colectivo, até na bienal procissão da Rainha Santa há-de haver alguém que chegue ’inda a casa.
(...)

Nos anteontens menos maus, soletrei o meu verso, li o meu Steinbeck, podei a minha rosária roseira da boa-fé – fundamente me devo ter enganado em quês, quens, quandos & ondes: mas mal já nenhum, que a amados mortos devo bem mais (mas posso pagar-, lápis sendo, -lhes).
(...)
(Mas a que casa em que amanhã?)


b) Segunda-feira, 9 de Dezembro de 2019


Adriano Barnabé Salústio Campomaior sabe muito de livralhada. Vi-o ontem (ele não me viu, eu não me apresentei) no Santa Cruz com um Stendhal aberto no mármore, junto a café & bagaço. Está com 68 anos, isso eu sei, mas deveras semelha menos dez ou quinze. Resignou-se à viuvez vitalícia, a Marta dele cruza há vinte e três anos o Averno. Adriano esteve oito anos em Cambridge como professor-convidado. Deu-se bem, nunca me disse se alguma vez se arrependeu de voltar a este morredouro de extraviados-do-clima. Deixei-o na paz dele, às voltas por Milão com o moço Fabrício.
Voei sozinho para outras aragens. (Nem na vida outra coisa tenho feito.) Já me não refiro a ontem-domingo mas a cruzados dias sozinhos, que faço por creditar a meu favor mercê de prática lapiseira, tinteira por vezes. Tenho andado de casaco quente. Não me queixo de calçado: o que tenho me não descalça. Sigo sem mor esforço meu mesmo regimento. Continua minha prerrogativa a nomeação de anjos à civil paisana, de que Coimbra é pródiga, sempre foi, não sei se sempre será. Comigo uma vez morto, tal dúvida desvanecer-se-á sem rebuço nem espasmo, sem esperneação nem estertor.
Na Rua das Figueirinhas, subindo-a eu, vi descendo-a o velho ourives Damião, belo exemplar octogenário das nossas mais justamente afamadas tabernas. Velho catita, de perpétuo sorriso traçado no rosto de pardal.
No Pátio da Universidade, arejei-me quase violentamente. A hora foi feliz, já que de momento o lugar não sofria praga de turismo geriátrico. Fui-me a emborcar bebida viril na Rua das Rãs, soube-me a fruta espremida de fresco & de repente. Depois (mas pode ter sido noutro antes, literariamente é igual), reli, a conta-gotas e o mais prazenteiramente, TS Eliot & Dylan Thomas. Fez-me bem, apaziguou maus pensamentos.
Encontrei sítio-beberete onde sentar-me ouvindo de meus compatriotas a Língua maravilhosa. Em essa benigna pira ardi duas horas suavíssimas. Fora do estanco, à vista rasgada como papel novo, tílias bebiam a morrinha, implacável poalha de esmigalhado diamante pluvial. Anjos da facúndia ali presentes: o cego Jeremias (empregado nos Correios como contabilista), o coxo Baltazar (reformado dos TIR), o maneta Roberto (patrão da Casa Juliana, chapéus & gravatas), o careca Euclides (devorador de tremoços com pevides), o daltónico Ventura (professor de Geografia no Infanta D.ª Maria) & o discreto dono da casa, Artur Henrique Cecílio Dias, também cognominado Venta Larga. Sim, no durante produzi alguns pentassílabos à Camões musicado por o Zeca. Saíram-me mitigados, miudinhos, menoscabados & algo nozmoscados. Guardei-os, como sempre faço, para amnésia futura. Já ali não sou alienígena. Aceitam-me como o calado-que-escreve-a-lápis-tinta-por-vezes. De vez em quando solicitam-me um desempate argumentativo lá entre eles. Certa ocasião, qual a nação maior, se a Rússia, se a Ucrânia. Eu por acaso sabia. Por birra, não queriam crer no que dizia o Ventura, natural autoridade na matéria. Corroborei a alegação russa do professor, que me gratificou com um rico bagacinho. Quando um dia destes for amanhã, volto lá. Sou pausadamente feliz ali. O sítio não tem televisor, a Deus graças. Dá para ver chovendo nas tílias. Gajos boníssimos que já lá li & reli: Le Carré, Greene (o Graham, não o Julian/Julien), Burgess, Osborne, Dos Passos, Calvino, Maugham, Ferreira de Castro, o madrileno Marías, Anouilh, Beckett, Mann, a lúbrica freira Alcoforado também. Quando as moedas dão, gosto de lá comer: iscas hepáticas com batata cozida, petinguinha fritas com ervas-de-molho, pernil porcum acalentado no forno, favas aporcalhadas com chouriço & morcela da matança novembrina. O vinho é caseiro, não o que se lê no garrafão. O pão é do senhor António de Vilela.
Durante outro hoje, fico em casa. Disponho de música ad infinitum. Ainda há, ou hei, muita livralhada por reordenar. No YouTube, revejo a mirífica final de 1979, claro que no velhinho Wembley, da FA Cup. Arsenal 3 – Man. United 2. Tenho aquele champô de selénio-de-zinco para o casco. Tenho entrecosto de ontem com arroz-branco. Fiz sopa de feijão-verde, que me saiu capitosa. Há duas tacitas de pudim-flan ainda. A calma diz presente.

A História – vejo-a como estaleiro de materiais-de-reconstrução. Ensejo conhecê-la em a profundidade possível. É agradável vertigem, o viajar no Tempo – até por manobra contrapontual ao próprio corpo físico chamado animal-pessoa. Depois de comer, embarco. Aprendo um Theodore nascido a 12 de Maio de 1942. Matou pessoas por obsessiva raiva anti-sistema-social. Sou depois visitado pelo sono. Sonho com uma região florestada sem indústria perto. Há uma cabana abandonada a poucos passos de frígido regato, cuja água colho para ferver chá. Há escritos na parede do lado nascente. Foram morosamente talhados a canivete por inominável mão. Desperto. Apresso-me a lapijar – aqui mesmo – palavras sobreviventes do sonho: VANDERBILD, Ofício, Magma, Sopé, BERG, Himalaia, Corça, Enseada, Estrela, MAJOR. Na realidade devoluta, faço de facto chá – mas com água municipalizada. Não me importaria de o sonho da noite mais logo me retrazer o cenário sonhado à tarde. Duvido que tal suceda – tal como a alegria, a cabana ao natural é rara, una & indivisível em prestações. Deixo em sossego temporário o livro.



Sem comentários:

Canzoada Assaltante