29. Indícios Porteiros
Domingo, 15 de Dezembro de 2019
Obras na rua da Pensão Atlântica.
Esgotos, parece, problema antigo.
É num Janeiro como os outros.
Pai & filha lá hospedados até
5.ª-f.ª.
Ele é Olavo, como um que jogou no
Marítimo.
Ela, Guilhermina, como a
violoncelista.
A menina faz-me lembrar Alice em
Wuppertal.
Ele lembra-me o Oliveira Martins em
Espanha.
Inauguração de ervanária no
Mayflower.
Beberete, roupas chiques, boas
intenções.
É num Março como os outros.
Sócios, são dois: Pedro H. &
Magda R.
Pedro é muito novo, como nós no
séc.º XX.
Magda, muito menos, como nós agora.
Ela faz-me lembrar a Marilyn sem
maquilhagem.
Ele não me recorda.
*
Debate-se, algures-no-Tempo, um
desastre de aviação (dita comercial)
ocorrido sobre território nacional. Houve vítimas mortais, cinco ou sete, não
percebi, a gravação é fanhosa. Sobreviventes ou desaparecidos, ninguém.
Um professor escocês explica
variantes de índole analítico-forense em casos de homicídio não resolvidos. Na
retaguarda do professor, uma janela mal fechada (ou mal aberta) distrai o
espectador, perde-se muita palavra do perito.
Vizinhança de bairro pobre em
filmagem não-comentada: duas velhas, cada uma a sua janela térrea (com gato, a
segunda); um cavalheiro macérrimo, fato completo, gravata
cor-de-cinza-humedecida, sapatos castanho-pardal, na mão esquerda um embrulho
com cordel, pastéis talvez; uma belíssima pobre, talvez vint’anitos, vestida de
chita estamp’amarelada, magros sapatitos brancos (fivela partida do esquerdo);
nédias pirâmides de lixo em pano-de-fundo.
Rio a que chamam Tyne. Trechos dele em sucessão
não-comentada: arvoredo em curva a sudoeste; pouco tráfego de momento, muita
atracagem; esparsas formigas bípedes pass(e)ando ambas as margens; alguém diz “Quayside” em frase alteada no fim,
interrogação portanto; não ouço resposta.
De profusos ontens repesco, sentado
na cama com o Gato dormindo entrepernas, indícios porteiros que até este
preciso momento careceram de existência verbal. Por conseguinte:
À porta do Café Abadia, o reformado
camarário de casaco escarlate, suíças níveas, olho esquerdo pensado com gaze
suja, gesticulador de falas, entalada aos pés uma pasta de cartolina, cujo
conteúdo descubro depois ser, já connosco ambos no interior do Abadia, para
minha deliciada surpresa, um livro de Rui Knopfli, outro de Al Berto e um
caderno moleskine tamanho-médio &
quadriculado;
À porta da Tabacaria Elegante, duas
senhoras que emanam viuvez feliz (do mesmo homem, se calhar), perfumadas ao de
leve abeto-finlandês, maletas de marca, sóbria maquilhagem, sóbrios brincos;
À porta do Hotel Astória, o par
rapaz-cão, o vertical de equipamento caminhante, o quadrúpede de olhos
diferentes à Bowie, o rapaz bebendo água de uma garrafa-termos, o cão mirando
interessadíssimo as cadelas-raparigas derredor;
À porta da Estação Nova (Coimbra-A
para os alienígenas que nos assediam impunemente), quatro toxigajos varados de
frio, olhares hirtos de estatuária sem legenda, dois cães aos pés na escadaria,
duas embalagens ratadas de vinho-de-cozinha, sacos plásticos esbeiçados que
deixam ver os respectivos dentros (sem Knopfli nem Berto, confirmo);
À porta do Café Combinado (aqui é
1972, tenho a certeza aqui), o mediador de seguros Dias Faria, conhecido
mulherengo da nossa praça ginófila, impecável completo de linho branco-marfim,
sapatos irrepreensíveis da Romeu (ou da Lord, aqui hesito), nos dedos da mão
que não conversa um Ritz (ou um 2002 Control, aqui hesito), pasta de couro
grená com fecho de ouro, geral atavio sem átomo de pó;
À porta da Ourivesaria Chieira, a
riquíssima patroa da Viegas Confeitaria, utente de quanto exista de
penduricalho áureo-lóbulo-orelhal, ralhando de momento com a criada-afilhada a
propósito de qualquer inconveniência doméstica;
À porta da Pastelaria Marte, o
filho-família cuja mente se avariou por causa da hipodérmica, hoje tolerado
manso do folclore social do burgo, Carlo (sem S final, ao gosto heráldico) de
baptismo mas Foguete de cruel
alcunhanço popular;
E à minha porta, felizmente,
ninguém.
*
Pode muitas vezes – ou algumas –
parecer-Vos que desdenho a vida, maldigo a normalidade, repugno o humano,
incenso o luto, venero a morte. Pode.
Pois bem, muitas vezes – ou algumas
–, sim. Mas não sempre, não a toda a hora. Momentos há em que a gatarrona
prazenteirice me toma, perdoando-me não apenas o estar mas também o ser
vivo. Quereis provas, eu sei. Provo-o:
Fiz há pouco quatro torradas, que
lambi a farto manteigame & recheei de páginas de fiambrum vermelhusco. Bule
de chá com farrapo final de nata láctea. (Não fui ao açucareiro, que à cautela
me faço cauteleiro.) Mastigando de pé o sólido, rechupando em invertido sopro o
líquido, mirei sorrateiramente a estante pontificada pelo Eça, pelo Camilo,
pelo Fialho & pelo Brandão. Rosnei de antecipada fartura. Trouxe o resto do
chá para a cama, onde estirei as gâmbias terminadas em meia grossa de lã
felpuda. Aí, oriental mas gordo, fumei o mais saudavelmente que imaginar nem
podei. Preguiçoso qual lagarto ao sol mural de um meio-dia de Agosto, folheei
sem lápis algumas lembranças higienizadas pela auto-ilusão. Devo ter adormecido
algum tempo – se não mesmo a vida toda.
Sim, por vezes a palavra mais forte
do mundo – Não – vai dormir. É porém
irregular a hora a que lhe dá a soneira. Logo que a topo, aproveito-me.
Abrem-se-me campos às escâncaras. Nótulas de contentamento salpicam o
estar-sendo. Agora que digiro a merenda nem lauta nem frugal mas harmónica de
moderação, uso as pontas dos dedos para fruir a flanela que me estofa os
joelhos. Bocejo vulcanicamente, a ponto de me subir ao esófago o avesso do
ilhó. Isto assim nem dá para versos. Dá quase gana de ir estrafegar o espinhaço
ao dormente – mas Não.
A noiva do capitão-de-artilharia
era de lábios púrpuros, puros embora – doença do sangue, disseram-me. Com
efeito, não chegou a casada. O noivo foi de galanteria sincera: portou fumo na
lapela durante o ano seguinte. Fez mais: requereu colocação de quatro anos num
remotíssimo posto tão avançado quão desolado na área mais glaciar do Império.
Cumpriu honrosamente a comissão, a que nunca chamou voluntária deportação mas
que deveras o era & foi. Voltou a um 24 de Novembro de irrelevante ano.
Vinha major. Um tio recomendou-o ao Clube, que o aceitou sem pedras na mão. O
major gostou do Clube. Poltrona particular a dez metros do fogão o envolvia.
Jornal, cigarrilha-creme, biografias pacíficas (Thackeray, Hawthorne, Tennyson,
Disraeli, Gladstone, Churchill), balões do melhor irish-triplo-destilado, ceias
frias na antecâmara do leito despovoado. Morreu coronel, o fumo de cetim
dobrado na carteira.
Oh sim, a nova preceptora tem
passado amásio mas pronto, desde que faça – e faz – o seu trabalho, desde que o
vá – e vai – fazendo, não há que atirar-lhe pedras velhas. Também muito se
maldisse do senhor gerente do banco, que ele isto com rapazes, que ele aquilo
até com meninos, mas pronto, falar falou-se mas prova-lo não provou-se, modos
que tudo na mesma d’antes como a lesma d’Abrantes.
Problema sério, temo-lo agora com a
senhoria nova do pavilhão, deu-lhe para querer dobrar a renda, o Diabo a
carregasse como Deus carregou a santa tia dela.
*
Fígaros
Élio sofria de viuvez, amara desde
& para sempre a mulher Célia.
É exacto nisto o meu lápis.
Armindo nem tanto a dele,
Cármen – mas pode que o
tenhamos lido mal.
Robles & Edália tinham aquilo
da religião, um estranho deus
apóstata que exigia testemunhas.
Gustavo amou o vinho, amou o jogo,
amou os prostíbulos, amou mal
– mas amou Bé, acredito que sim.
É triste, mas vero, Julião ser
corno,
acontece (’inda) por interesse d’ambos,
não é que Estela seja vaca de todo.
Lucídio & Opalina são
não-história,
é mesmo até-que-a-morte-os-separem
a poesia perde neles emprego &
salário.
São (eram) todavia história os
casados
Maneleto & Consolação,
guarda-linhas ambos,
tenho muita saudade deles.
Tal como ’Cídio & ’Lina, eu não
tenho
história neste âmbito esponsal
– mas tenho lápis: e até tinta, por
vezes.
*
Deu-me hoje, é curioso, para me dar
um pouco mais à realidade dita real do que à outra realidade, a melhor, a
literária. Coisas que ficam, não sei, sei lá. Como aquela vez em que me
presentearam com um belíssimo frasco de mel serrano, eu todo contente em casa
(Casa, quero eu dizer, os meus Pais eram vivos & nela) com o mel, dava na
televisão um Fortuna Düsseldorf – VfB Stuttgart, não sei se para a Taça se para
o Campeonato, acho que o Matthäus ainda (ou já) jogava no Borussia
Mönchengladbach, o mel era ouro ao preço da chuva, por assim dizer, foi só
muitos anos depois que publiquei O Preço
da Chuva mas esqueci-me de agradecer o mel, faço-o agora mas já não vou a
tempo de o fazer à pessoa, já faleceu quem mo deu, era Raimundo José Andrade
Vinha, fino cavalheiro, aluno externo da minha licenciatura em Letras, eu
emprestei-lhe os cadernos de Fonética e Morfologia, Semântica e Sintaxe, Francês
III e Teoria da Literatura, ele fotocopiou tudo, estudou tudo, passou com
distinção, ele nem precisava do canudo, era só por gosto que se dava àquela
doce maçada, era dono de uma próspera oficin’auto, uma filha dele cursava
História, lembrei-me disto agora porque agora o meu mal, perdão, o meu mel é
comprado e nem ao outro se compara, também já ninguém me quer os cadernos,
esta caderneta muito menos.
Sem comentários:
Enviar um comentário