27. ‘Amarras e Velas’
Sexta-feira, 13 de Dezembro de 2019
E mestre António dos Santos,
badalando a Santa Luzia d’Alfama? Que bela voz – mas, sobretudo, que belo
cantar. António Marinheiro é
figura-maior do meu altar, chamemos-lhe assim. Marinho embarcado do/no Tempo.
Pai de cinco. É de uma portugalidade invencível, o seu legado.
“Gaivotas
em terra de asas fechadas / Marujos sem rumo num banco dum bar / Barcaças
dormentes no cais ancoradas / Meninas morenas que sonham casar // Preciso é que
voem, que batam as asas / Preciso é que deixem as altas janelas / Preciso é que
saiam as portas das casas / Preciso é que soltem amarras e velas // Marujos
sozinhos pensando outro mundo / Meninas em casa fiando desejo / Preciso é que
cruzem seu olhar profundo / Preciso é que colem as bocas num beijo // Mãos de
marinheiro não temem procelas / Se houver outras mãos p’r’além vendaval /
Rezando por eles, tecendo outras velas / Mais brancas, mais belas / do seu enxoval.”
Quanta beleza, mestre António.
Ele conheceu, por exemplo, a Rua da
Adiça. E os mares que dão mundo ao olhar. Amou & alfamou. E o Bêco das
Canas. Genuíno ’té o tutano. Lisbonense & mundial. O Bêco do Pocinho que o
diga.
Sinto-me pensando que compreendo
quem foi este homem por sentir que compreendo quem – ainda, para sempre – é
este Artista, este Poeta Cantor sem cotejo. Sou-lhe grato desde menino, que de
há tanto o re-conheço.
*
Elementos activos a seguir:
Rapaz de 16 anos desaparecido, derradeira
vez avistado em povoação antigamente piscatória, nenhum sinal de
relacionamentos no litoral, nome Cristiano;
Criada-de-mesa da Pensão Naval, mãe
de quatro (três pais diferentes), exímia jogadora de sueca na noite de folga
semanal (terças), nome Valéria;
Barbudo, gordo, falso-alegre,
reparador de electrodomésticos, espera há 23 anos que Valéria dê pela
existência dele, nome popular Caguinchas;
Assador de frangos,
veterano-comando (Angola 65-69), bandolinista no Grupo de Cordas e Cantares da
Madalena, nome Cabral;
Recepcionista de gabinete médico,
ruiva-sardenta, sáfica, cinéfila (mas só filmes franceses, um que outro
italiano), 60 anos, nome Delfina.
Sobreposições de um sábado-noite:
Às 20h13m, Romeu & Carla entram
na pizzaria, onde permanecem até às 21h53m; às 20h50m, o polícia Anselmo apanha
o regional para casa; dez minutos depois, entra esbaforida na mesma gare a
velhota Doroteia, que maldiz o maquinista e o bispo da diocese; às 21h51m,
Cremilde & Natalina beberricam coca-cola na hamburgueria; às 22h08m, um
Fiat Uno e um Opel Manta beijam-se ao de leve na rotunda do MiniPreço; às
21h14m, Alberto (pai de Carla & futuro sogro de Romeu) está no vestiário da
estação-de-serviço a vestir o uniforme de caixa; às 22h22m, Sandra não atende o
telemóvel; às 22h26m, Joaquim volta a tentar ligação; às 23h58m, chove muito,
ninguém na rua, Doroteia resmunga na estação, o das 23h47m ainda não deu sinal,
nem o senhor bispo, nem Cristo vem cá ’baixo ver isto.
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