16/01/2020

CADERNETA PRETA - 32

© Julien Conquentin







32. Lixo Escritor


Quarta-feira, 18 de Dezembro de 2019


Tremenda, a Beleza. Já a tenho topado em lances que a não sugeriam, muito menos a prometiam. Animais sem fome. O vento nocturno em palmeiras que nem há. O fantasma da criança no velho que a foi. Certas meias-frases de sentido dobrado. Olhos que servem pão pelo ordenado-mínimo e uma refeição diária. A montra de relógios acertados todos pelo passado do relojoeiro. Aquele casal alemão rindo-se como nós – ou de nós – ou para nós. O tapete grená no pórtico do tempo por construir. A gaiola arrombada. Certas cartas encontradas no lixo de que esta tarde, depois da sopa, V. darei recado (1). Um tu descobrir um mim que eu nem sabia ser. O vaso esbeiçado que verte soro vegetal.
(Em Português, Beleza & Tristeza rimam. Mas nem sempre. Só muitas vezes.)

(Adentrou-se-me – notavelmente aliás – a evidência de coisas que não voltarei a fazer, não, que não voltarão a fazer-me. É demasiado simples – ou redutor – chamar a uma de tais idade.)

Vento transitando o mundo próximo. Saí para fazer chegar ao contentor o par de sacos com lixo de dois, não, três dias. Penada ou não, nem viv’alma no trecho de rua. Da outra banda, os da Câmara mandar laquear a tijolo & cimento a casa onde viviam mãe & filho, a mãe foi levada para um lar pré-mortuário, o filho carambolou às nove tabelas até ser encontrado morto num canavial sem dono. Lembro-me deles assando carapau no passeio. Não pareciam desgraçados. Acho que não liam filósofos alemães nem romancistas russos. Sei que não tinham televisor. Não eram daqui, mas também não eram de longe – é tudo. Talvez a mãe seja ainda vivente. A indigência é vacinação robusta, acontece muito haver gente que chega a centenária ao cabo de 99 anos de miséria estreme. Voltei para casa sem sacos nem pressa. Morrinhava, o que sempre me encanta. Isto sucedeu imediatamente antes de V. contar a não-história daquele Guilherme Alpedro. À volta, fiz chá, pus carne a descongelar para dali a horas, o Gato emboscou-me de puro prazer juvenílimo, sacanita maravilhoso. Corrigi segmentos de um poema que mete ao barulho loucas mansas à janela & caiadores de andaime, bispos & boticários, barcas & nascituros de caderneta. Não fui infeliz nem antónimo disso. Forrei o caixote com saco novo para o próximo lixo que escrever.

Já me aconteceu sentir que fui, talvez anos de mais, exasperante & exasperadamente jovem. E que talvez tenha confundido tal com, sei lá, a felicidade – ou afim rótulo. Uma dessas vezes foi há poucos dias, no sábado talvez. Quando olhava a montra da papelaria-livraria chamada Pérola? Sim, julgo. Havia um livro do Musil e outro do Durrell, ambos a cinco paus. (Voltou a chamar-se pau à unidade monetária corrente – a nostalgia é engraçada, sobretudo quando se pensa que o escudo antigo tem de ser multiplicado por duzentos para dar um euro novo. Novo, antigo. Etc.

Deitado, na cabeceira a chama quase extinta, duram pouco as velas encarnadas, o sono ainda me não manieta, o vento no solilóquio dele lá fora, grande bilhar joga ele, pobre dele, sem companheiro. Apagador de velas, ainda por cima.

Este ano, não pude hospedar-me no Albion Hotel, ou na Meldreth Guest House, ou naquela boarding-house de que de momento se me varre o nome mas que recordo ser a cinco guinéus por semana, ou no simpático Littlewold Private Hotel, onde no século passado conheci o casal Britten, descendentes do célebre compositor tão dos Brits. Para o ano, o mais provável é continuar a não poder. A há muito apeada aristocracia austríaca também por lá conversei. Candy floss, jugs of tea, o Smoky’s Punch & Judy Show etc. O mais certo é nunca-mais. Ou nevermore, como por lá se diz, recordando Poe.

Com Francine Rosso, de Metz, Karlheinz Goth, de Saarbrüken, Paloma Vásquez, de Navarra, Guido Ferrara, de Firenze – noite-de-variedades no Casino Olimpo, a dez milhas do aldeamento fundado pelo neto do plutocrata Lobstein. Acrobacia, funambulismo, prestidigitação, comédia. Uma noite próxima já do ocaso da estação-dita-alta, essa recordo-a bem, estiveram lá Jack Warner (locutor), James Balfour (cameraman), Bob Saunders (sonoplasta), Allan Tyrer (editor), Pamela Bower & Richard Cawston (guionistas/realizadores/produtores). Norman Swallow não apareceu. Assim foi, que a ser não volta.

Homem de 42 anos em 1957. Salvacionista, parece – isto é, membro do Salvation Army (SA). THE SALVATION ARMY / SPA HOME / HOSTEL FOR MEN’S SOCIAL WORK / 122 SPA ROAD, BERMONDSEY, S.E. 16. Cama em dormitório.
O filme foi televisionado a 6 de Setembro desse 1957. Eye to Eye – I Was a Stranger, realizado para a BBC pelo tal senhor Norman Swallow que não vi no Olimpo.
Charlie esteve doze anos no exército. Deram-lhe trabalho no SA. Deriva na & da pobreza. Melancólico documentário. Toda a gente morta, em 2019. Só pode.

Henrique Marechal Esteve Canvas. Homem de trabalho penosíssimo: porta-a-porta oferecendo calendários a troco do-que-quiser-e-puder-dar. Aceita um prato de sopa, algum par de calças do falecido, nos natais até fatia de bolo-rei & um cálice de porto. Este homem é mais real & menos mentiroso do que eu, juro-Vo-lo.

(Mas lá dizia o outro: “A poética da liberdade humana está indissoluvelmente ligada à mentira, essa mentira que, ao assumir as suas formas mais nobres, que são a ficção, o poema e a utopia, nos permite viver.” O “outro” é George Steiner, que assim se expressa em quatro Entrevistas que cedeu a Ramin Jahanbegloo, ed. Fenda, Lx., Junho de 2000.)

Afloraram-me à mente, hoje que bem chovia neste rincão de mundo, nomes que me são solares. Jacques Tati foi um. Wim Wenders (e por natural adjacência Peter Handke), outro(s). O meu Eça nunca anda longe. Nora Barnacle. Georges Duby. Winston Churchill. O Vala da Académica também, já falecido. E Patxi Andión, que morreu hoje, aos 72 anos, de um acidente de viação. Elevada figura, triste imerecido fim. Deixa canções formosas & fortes, como Padre.
Esta é pois a primeira noite de que Patxi não despertará. Seguem-se infinitas outras.

(1)     Uma dessas cartas reza assim (nomes e topónimos fabricados por mim):

“ Sr. Dr. Juiz

MÁRIO RELVAS
RUA DO PARDAL BAIXO
ANCORADA

1-     Venho por este meio informar Vossa exmo, que não tenho nada aver com os factos que me são atribuidos pela Etelvina Margarida Mestre.
2-     Dado que eu lhe entreguei a minha filha Soraia Mestre Relvas no dia 23-10-20…, e que a partir desta data estou proibido de a ir buscar e visitar na risidencia, cita, Rua da Abadia N.º 2 Ancorada., pelo companheiro desta Juliano Cavaco Anes, assim que por este tribunal, dicidi de a visitar na escola Primária de Ancorada aonde a encontrei, e constatei que a criança esta doente, e traumatisada, tais factos podem ser justificados pela Professora.
3-     Visto que a minha residencia é cita em Rua do Pardal Baixo, há 44 anos e que hoije vejo-me oubrigado a sair desta residencia, assim que proibido de visitar a minha filha.
4-     Não só me retirarão a minha filha, depois de a ter comigo 18 meses, e de me sacrificar por esta, a meter na pré-escola escola Primária, deixar o trabalho de motorista mas, agora Proibem-me de a visitar.
5-     Caso estranho, mera considencia bastou entregar a criança à mãe, para as queixas acabarem.
6-     A minha filha está doente, traumatisada foi soubmetida a vários feitiços, praticados pela mãe, e uma senhora da Guarda, assim que uma de Alter, Senhoras ditas corandeiras e feiticeiras.
7-     Sou conhecido na freguesia pela população, aonde detive uma Garagem de electromecanica, como um homem honesto, trabalhador, convivente, tal o podem afirmar o Snr. Carolino Pedrosa, ex presidente da junta, Emanuel Netos Silões empresário, e agente de seguros Ponderosa, para não citar mais nomes; e não como um criminoso, um delicoente.
8-     Pedi o poder paternal, assim como um inquerito, au sujeito de Etelvina Margarida Mestre, por saber que esta, nem éra mulher e ainda menos mãe competente para educar uma criança, este inquerito não foi executado devidamente.
9-     Etelvina Margarida Mestre arranjou a meter uma criança à nascença, porque esta era filha de um pai casado e com filhos, esteve enternada numa casa para menores sem pais, em Prega com a idade de 15 anos, porque a mãe Maria do Patrocínio Mestre alcòlica na altura, analfabeta, doente metal a trasia de Café em Café, aonde homens sem, consciencia, nem respeito abusavam da mãe, e da filha, até que idade de 11 Anos foi violada com o consentimento da Mãe Maria do Patrocínio Mestre, pelo padrasto hoije falecido.
10-  Como posso provar atrés de facturas de telefonemas detalhados, cartas de homens, de testemunhas, não é uma Mãe compativel para educar a minha filha Soraia Mestre Relvas, mas sim uma, mentirosa, uma Garota, uma Psycopata.
11-  Quanto au companheiro desta  Juliano Cavaco Anes, fugido da justiça Belga, aonde deixou uma mulher com dois filhos, uma amiga com uma crianca filha dele deficiente, devido aus maus tratos causados por este, desgraçou a vida a varias menores, e enclusivamente a uma da Covilhã.
12-  Hoije satorado de sofrer, amiaçado de morte, proibido de visitar a minha filha, vendo a minha filha, viver numa barraca de 30 m² com duas familias, de Café com Café com a mãe, a ouvir aquelas palavras “Grande mula não me emportava de ser o cavaleiro”, assim como outros palavrões, vendo-a avisada pela mãe, assim como pelo companheiro desta, para fugir de mim, assim me afirmou a minha filha na ultima visita que lhe fiz.
13-  O Que eide fazêr contra esta injustiça, que aceita uma mãe deficiente Mental, como testemunha, um namorado pouco a desejar perante a Sociedade, um padrasto o complôt está feito só falta ao tribunal me meter a croua na cabeça assim como a minha filha, assim aconteceu a Cristo.

Sem mais os meus simseros cumprimentos
Mário Relvas”


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Canzoada Assaltante