11/01/2020

CADERNETA PRETA - 30






30. Sete Heptagramas para Entreter o Pagode

Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2019




Lista A: de Compras Improváveis

1
Piano com maçã meio-comida em cima.
2
Largo artificial em condomínio (muito) fechado.
3
Lampião em loja de penhores com a inscrição Buffalo NY 1862 (o lampião; a loja é de 1919).
4
Bois-almiscarados filmados, em terra e do ar, por pessoas chamadas Ivo N., Jan H., Uwe A., Tobias M., Oliver G., Florian L., Klaus Jürgen S. & Christian W. – no ano 2011.
5
Roupa interior de mineiro a enxugar em corda azul elevada por vara de pinho num pátio traseiro.
6
Postal de origem escandinava destinado a uma costureirinha de Alpiarça.
7
Postal de resposta dessa mesma devolvido à procedência por insuficiência-de-destino – como se insuficiência de destino & humanidade não fossem já sinonímia suficiente: ou pleonasmo: ou tautologia: ou puta de redundância.

Lista B: de Vendas Impossíveis mas Datadas

1
Bicicleta preta a contrapedal comprada nova a 7 de Maio de 1976 (uma sexta-feira) na loja Quiper, Rua da Sota, Coimbra.
2
Pistola de fulminantes prateada em coldre de napa branco com esmeralda em forma de estrela, última vez avistados a 1 de Janeiro de 1974 (uma terça-feira) na Vinha do Faria, Pedrulha, Coimbra (onde depois fizeram os prédios para que foram morar o Victor Mateus e os irmãos Grilo).
3
Pára-choques frontal de carrinha (azul, da firma Aljan), danificado – sem qualquer culpa de Fernando M., o condutor – na Adémia, Coimbra, a 27 de Agosto de 1976 (uma sexta-feira), na sequência de colisão com bicicleta preta a contrapedal comprada nova três meses & vinte dias antes.
4
Lençol de baixo ensanguentado por (mútua) desfloração consensual em cama do Hotel Avenida na noite de 11 de Maio de 1994 (uma quarta-feira), quando as noites queimafiteiras eram ’inda no Parque.
5
Lápis Viarco n.º 2 afiado & usado uma vez só antes de extraviado no Anfiteatro IV da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, durante ou no fim da aula de Técnicas de Expressão do Português, docente Dr.ª Leonor Riscado, na manhã de 15 de Novembro de 1982 (uma segunda-feira).
6
Gelado (cone baunilha-morango) caído no chão entre os casinos Peninsular e Oceano, Figueira da Foz na tarde do primeiro domingo de Julho de 1970 (dia 5, portanto).
7
Aliança transparente perdida de dedo de mão também transparente a meio da manhã de sexta-feira, 23 de Maio de 1986, entre os números-de-polícia 210 e 310 da Rua Nicolau Chanterene, Coimbra.

Lista C: de Empréstimos Evitáveis mas Não Evitados

1
LP Ser Solidário de José Mário Branco sem risco algum – a Anne Josette de Lapaix Calle, certa (ou incerta) vez de um baile-de-garagem no Bairro do Brinca, Coimbra, 1982 ou ’83.
2
Uma 1.ª edição de O que Diz Molero (Bertrand, Lx., 1977) de Dinis Machado – a Anthony Laurie Pop-Gel, por ocasião do Festival Só-Rock no Jardim da Sereia, Coimbra, Julho de 1980 ou ’81.
3
Par de luvas de cabedal forradas a lã, pretas, usadas apenas ½ inverno – a Sarah Madail Souza-Sim, à saída de conferência-de-imprensa na FIL, Lx., 2005, pelo fim de Fevereiro.
4
Lembranças relativas a clarões esporádicos no firmamento (seguidos de luzes alaranjadas em forma de charuto movendo-se pouco acima dos canaviais de Porto Santiago) – partilhadas com Charley-Paul Shoemaker Norton em viagem ferroviária Porto-Lisboa, ano 1987 ou ’88, o menos tardar.
5
Viola-braguesa original de Barcelos, adquirida em 1986 a André Júlio Antunes Pataias – a Fernando João Póvoa Casimiro, no Outono aziago de 1989, ou em Espinho ou em Braga.
6
Manual-de-instruções (para dicionários-de-rimas, livros-de-estilo, catálogos-onomásticos, crestomatias-de-etiqueta & moradas-de-putas-casadas) – a Lena Francisca Costa dos Santos, em 2000 e na Marinha Grande.
7
A boa-fé, vulgo coração-nas-mãos, vezes sem conta – a duendes verdes, e portanto de marciana extracção, até data felizmente terminal & terminada.

Lista D: de Devoluções Fora-de-Validade
(mas qu’Inda Vão Muito a Tempo)

1
Do telegrama oriundo de Braga ultima(ta)ndo a última inocência & a penúltima ingenuidade – s/d.
2
Do livro da cegueira do Saramago, recebido em Lisboa aquando da elevação do Cristo-Rei a Saca-Rolhas – s/d também.
3
Do ramalhete de orquídeas do sub-género Cicciolinae Rata encontrado no Pinhal de Marrocos  – no ano em que o Boavista foi campeão.
4
Do livro-de-mortalhas Zig Zag com inscrição do n.º de telemóvel & do horário anti-marido mais conveniente – em Março de um ano perdido à nascença.
5
Da estatueta bicéfala (cão & deusa egípcia) diz-se que comprada na feira-de-velharias da Praça das Cebolas mas de fonte-limpa gamada àquele gajo leporino do salão-de-bilhares do Alto de S. João – no dia seguinte ao nainilévãne dUSAmericanos.
6
Dos óculos-escuros gipsy-rayban ofertados a pretexto do nascimento da Simone – quando a Nela já soprava à rosa-dos-ventos que ia deixar o Bruno antes mesmo do baptizado da cachopa, isto portanto circa 2010.
7
Da porra do Diário n.º-romano-não-sei-quantos do caraças do Torga, recebido precisamente a 24 de Outubro de 1991 (uma quinta-feira) num apartamento alvo ali acima do Arco da Velha, perdão, do Arco do Cego, perdão, do Arco Pintado.

Lista E: de Compromissos Viáveis (Alguns Já em Via, Aliás)

1
Demandar sempre o verso-justo, mesmo que – ou sobretudo quando – os outros atrapalhem um bocadito.
2
Não correr à chuva, sobretudo aos domingos – posto que o Senhor pode interpretar a correria como ingratidão pelo que Ele nos dá – ou, pior ainda, como trabalho em dia-santo, correndo-se por conseguinte o hórrido risco de se ir fazer companhia na Lua ao homem que ad aeternum lá anda a enrodilhar silveiras como vinha no livro da Primária.
3
Amar sem pressa alguma: a ave & o vento dela gerador; as datas sem calendário para que nem a morte tem ábaco; aquela rapariga clara de palavras límpidas que não queira parir seja de quem for só por o Falópio ’tar a dar horas; a praia invernal que deixe escrever na areia o que a maré seguinte deixa esquecer; não o espelho, mas o olhar dos próprios Pais nos olhos herdados.
4
Continuar na senda da palavra-justa, única que até, daqui & de boca fechada, se ouve & se compreende da Nova Zelândia à Noruega, passando por todas as restantes tabernas do mundo.
5
Garantir a José & Maria que mau-mau-mesmo-muito-mau para a saúde não é o fumar, é o andar a moirar toda a vida na estiva para depois acabar com uma reforma de merda que quase nem dá para acender uma vela em Fátima.
6
Ler maus livros – não há melhores mestres de escrita própria.
7
Demonstrar inapelavelmente que Coimbra só não é a mais formosa cidade do mundo por, sendo única, não ter termo-de-comparação.

Lista F: de Situações que Convém Levar a Sério (mas Tão-só em Verso)

1
Em o vento, além de folhas,
arrastar consigo páginas,
é de, em mudo modo, lê-las:
que te lêem mais do que imaginas.
2
Em voltando Judy Garland a menina,
é de mentir-lhe sempre o futuro.
Pode ela não querer ser pequenina
– e isso é do pior, é do mais duro.
3
Ciência é já segura que se morre,
por mais ou menos dê o pato às asas.
Então tu bebe & dorme, acorda & come;
e se não der p’ra escrever, pinta umas casas.
4
Concêntrica é a dor, como no lago
a pedrada orbita infalível.
Quanto ao amor-forever, ó carago:
tu cospe & esquece já, não é possível.
5
Tal mar, a lembrança depara dunas.
Tal vulcão, dorme por dentro do fogo.
Em vendo que o vento destrói escunas,
tu não recordes mais, tu foge logo.
6
A água, o sangue, o leite, o mel, o vinho:
q’a mágoa exangue deite à pele, mas de mansinho.
Exígua, iníqua, oblíqua, vida-azorrague:
a água, o sangue, o leite, o mel: tudo vinagre.
7
Vendo-te sozinho, não te faças coitadinho.
Se acompanhado, ide a um copo a qualquer lado.
Se assim-assim, chama-me a mim.
Se te achares de joelhos, aproveita & caga nos conselhos.

Lista G: de Coisas Literatóides que Lamento Perder em Morrendo (ou Não – mas o Título é Giro)

1
No geral, as promoções leve-2-pague-1. Exemplo: dois-livros-do-Paulo-Coelho por 1-cagalhão-desovado-à-2.ª-feira. (Onde está Paulo Coelho, pode ser Rodrigues dos Santos ou o Lobo Antunes das entrevistas. De qualquer modo, pagar sempre co’ cagalhão.)
2
As querelas doméstico-literárias que mantenho com o meu Gato. Exemplo: ele assanhar-se a sério quando a minha leitura de momento-sanita preteria José Vilhena em favor de algum Jorge Amado; ou substituía Jorge de Sena por versos do Namora do Marketing; ou hibernar o Cesário Verde em prol da versalhada im-possível do Saramago.
3
Percepções lapidares tidas & cinzeladas a sós – deveras conseguidas sozinho, sem telecomando alheio. Exemplifico garbosa mas francamente: Carlos de Oliveira é muito mais do que mero neo-realista; Vitorino Nemésio é enorme figura; Miguel Torga é criatura sobrevalorizada, bajulada, mimada, pedestalada – mas em breve esquecida & chutada para canto; Manuel Alegre aqui conta para nada, posto ser de literatura que falamos; Ary dos Santos foi um excelente letrista de canções mas como poeta-poeta é menor; histórico-literariamente, Portugal faz de porco que nem sequer grunhe quando lhe atiram pérolas: Wenceslau de Moraes, Camilo Pessanha, António Osório, Raul Brandão – são algumas delas. Mais há, porquinho.
4
Tornou-se-me pacífico dogma (não tenho pena nem temor da palavra, sei o que atinjo mercê dela) que a Santíssima-Trindade da Literatura Portuguesa é: Camões-Eça-Pessoa.
5
Já não lamento que Italo Calvino & Julio Cortázar (o primeiro, italiano nascido em Cuba; o segundo, argentino nascido na Bélgica) não tenham sido Portugueses. Pelo contrário: se esse azar lhes houvera batido à porta, provavelmente só em edições-de-autor é que apare-seriam. (É perguntar a António Osório como começou ele. Mero exemplo. É ir contar o número de obras pessoanas publicadas em vida do Autor.)
6
Já aqui tendo referido Sena & Calvino, a eles volto para assentar: pode ter havido (ou haver ainda, mas disto duvido) escritores que percebessem tanto do ofício (não santo, atenção, mas humano tout court) quanto o Português & o Italiano – mas mais, ninguém, nunca & jamais-em-tempo-algum. Firmissimamente o reitero. E não vacilo. Nem bacilo.
7
Sem falsas contemporização ou condescendência, concedo ao Leitor (qualquer & todo & cada um) que goste e/ou não goste do que entender. Liberdade – até para o mau-gosto, em caso disso. (E o disso é comuníssimo.) Gosta de merda? Pape-a a gosto. Gosta do que é bom? Então, parabéns: pérolas – das nacionais como das estrangeiras – são, ó felicidade!, tesouro que não escasseia.
Palavra-da-salvação.



Epílogo ou Remate (de cabeça)

I

Diogo do Couto, parece, foi maiusculamente Amigo daquele Camões miserando que até fome rapava, sem dela poder sair, na Ilha de Moçambique. Gratidão se lhe deve. E muita, pois que alimentou, vestiu, calçou & embarcou para Lisboa o Perene Epopeu.
Jorge de Sena, nisto ou naquilo, pode nem sempre ter tido razão – mas usou-a sempre, à razão, lá por razões só dele.
Aconchego-me a obras de pessoas há muito corporeamente extintas. A muitas me refiro, digo, pessoas & obras. São caloríferos nos (já raros, infelizmente) dias frios & são refrigerantes nos sufocantes (infelizmente, demasiados).
As boas leituras acabam sempre por permear-me o solilóquio permanente com que escoro a maioria-silenciosa dos meus dias. Curiosa, que não paradoxalmente, as más também – se não mesmo mais até.
A Literatura não é meramente um modo-de-vida mas sim a vida-de-outro-modo. Creio-o & pratico-o.
É verdade, não é mistificação: homens & mulheres já mortos continuam vivos mercê da obra que nos legaram, mormente quando de grande & incontornável qualidade. Não é milagre nem fé – é inteligência & boa-sorte. Neste sentido, continua estentoreamente audível a gargalhada do delicioso Eça; continua mirífica a arqueologia idiomática do maravilhoso Camilo; continua ímpar a paleta fotossensível de Wenceslau; continua singular a Lisboa-plural (não é vão paradoxo) de Cesário Verde, Cardoso Pires, Fialho de Almeida, Ramalho Ortigão – e não muitos mais, embora ainda alguns.
Confesso embirração com a figura (figurinha-queixinhas, às vezes) que Eugénio de Andrade arvorou por pose – mas a poesia dele é assaz revisitável: mesmo não sendo nós já deslumbráveis adolescentes.
Dos torg’alegres, já disse. Quanto a essa multidão chamada Pessoa, cometo profano pecado sempre que o nomeio – pois que se não deve invocar o nome de (um) deus em vão.
Desde 1 de Janeiro de 1995 (um domingo) que registo numérica & cronologicamente as leituras/releituras que faço. Folheando esse rol, obtenho da minha passagem uma espécie de gramática essêncio-existencial. E também, ou sobretudo, o cadastro do melhor tempo da minha vida.
(Copofonia & misantropia não são sinónimos de literatura – mas lá que a ajudam, dúvida nenhuma.)

II

Por dentro se configura a distância,
que concretiza o afastamento,
que ainda assim é presença.

A pessoa só é pessoa se por dentro.
Por fora, é homem ou mulher,
em novidade ou velhice – e só.

Homem só, mulher só, pessoa a sós.

III

O estivador da Rocha do Conde d’Óbidos comendo pão com sardinha de conserva em tomate picante. O sol outonal glorifica a foz tágica. Milenar aquilo tudo: o homem, a sobrevivência, a glória – e o R que ali, em tágica, parecia faltar.

IV

Pesporrência caturra dos pseudomoralistas (relativamente a tudo & mais qualquer coisa) – não dou, já há muito que não, para esse peditório. Prefiro-lhe uma volta pelo burgo, este a que para sempre retornei – não cuidando eu de saber quanto vale(rá) este para-sempre.~
Inteligência a sério & a valer, apreciei eu a de um licenciado que, herdando de seus velhos uma pequena casa aldeã, a tem reconfortado de meios simples mas eficacíssimos. Ameace o boletim meteorológico o que ladrar, não há sábado, domingo ou feriado que ele lhe falte a ela. Pouco falta para que dê por concluída a restauração do tugúrio. Já me restaurei lá eu mais do que duas vezes. Cá fora, sob telha, há o largo alpendre dotado de lenha e onde ardê-la. Confeccionámos lá lautos grelhados, peixeiros uns, viandeiros outros, opíparos todos. Nomeando-o embora vinho, veludo é o que lá temos mamado. Acontece-me sempre voltar de lá com vontade de lá voltar. Ficar, não posso – portanto, escrevo-o para que sim, se & quando lido.

V

Jacobi faz Claudius.
Hulce faz Amadeus.
Suchet faz Poirot.
Gambon faz Maigret.
Brett faz Holmes.
Ganz faz Hitler.
Craig faz Bond.
Guiness faz Smiley.
Silva faz Evaristo.
Cintra refaz Belo.

Assim devemos fazer
– ou pelo menos tentar.

Morre-se na mesma
– mas dói menos ter nascido.

VI

Rosa, cavalo, noite, aurora.
Sim, sim, certa, justa.

VII

Paulina Barbosa Catalazete
deu de si a flor tão preciosa,
mas mal-amada, e de repente,
a sós vive ela hoje em sua casa.

Danilo do Carmo Melo Taborda,
d’alto de 4.º-andar viu ele os Cravos.
Não mataram os pides-bardamerda,
’inda queimaram aos montes arquivos.

O país é bonito, a pátria é chunga,
é pária de si mesma quando quer.
Ter-lhe amor nunca decapita a zanga
q’um gajo sente em lhe vindo o pior.

Tanto émeérrepêpê & cêdêésses,
varinas, pauliteiros d’enfiada,
tudo enfim à coca de benesses,
cagando & rindo da própria cagada. 

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Canzoada Assaltante