30. Sete Heptagramas para Entreter
o Pagode
Segunda-feira, 16 de Dezembro de
2019
Lista A: de
Compras Improváveis
1
Piano
com maçã meio-comida em cima.
2
Largo
artificial em condomínio (muito) fechado.
3
Lampião
em loja de penhores com a inscrição Buffalo
NY 1862 (o lampião; a loja é de 1919).
4
Bois-almiscarados
filmados, em terra e do ar, por pessoas chamadas Ivo N., Jan H., Uwe A., Tobias
M., Oliver G., Florian L., Klaus Jürgen S. & Christian W. – no ano 2011.
5
Roupa
interior de mineiro a enxugar em corda azul elevada por vara de pinho num pátio
traseiro.
6
Postal
de origem escandinava destinado a uma costureirinha de Alpiarça.
7
Postal
de resposta dessa mesma devolvido à procedência por insuficiência-de-destino –
como se insuficiência de destino & humanidade não fossem já sinonímia
suficiente: ou pleonasmo: ou tautologia: ou puta de redundância.
Lista B: de
Vendas Impossíveis mas Datadas
1
Bicicleta
preta a contrapedal comprada nova a 7 de Maio de 1976 (uma sexta-feira) na loja
Quiper, Rua da Sota, Coimbra.
2
Pistola
de fulminantes prateada em coldre de napa branco com esmeralda em forma de
estrela, última vez avistados a 1 de Janeiro de 1974 (uma terça-feira) na Vinha
do Faria, Pedrulha, Coimbra (onde depois fizeram os prédios para que foram
morar o Victor Mateus e os irmãos Grilo).
3
Pára-choques
frontal de carrinha (azul, da firma Aljan), danificado – sem qualquer culpa de
Fernando M., o condutor – na Adémia, Coimbra, a 27 de Agosto de 1976 (uma
sexta-feira), na sequência de colisão com bicicleta preta a contrapedal
comprada nova três meses & vinte dias antes.
4
Lençol
de baixo ensanguentado por (mútua) desfloração consensual em cama do Hotel
Avenida na noite de 11 de Maio de 1994 (uma quarta-feira), quando as noites queimafiteiras
eram ’inda no Parque.
5
Lápis
Viarco n.º 2 afiado & usado uma vez só antes de extraviado no Anfiteatro IV
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, durante ou no fim da aula de
Técnicas de Expressão do Português, docente Dr.ª Leonor Riscado, na manhã de 15
de Novembro de 1982 (uma segunda-feira).
6
Gelado
(cone baunilha-morango) caído no chão entre os casinos Peninsular e Oceano,
Figueira da Foz na tarde do primeiro domingo de Julho de 1970 (dia 5,
portanto).
7
Aliança
transparente perdida de dedo de mão também transparente a meio da manhã de
sexta-feira, 23 de Maio de 1986, entre os números-de-polícia 210 e 310 da Rua
Nicolau Chanterene, Coimbra.
Lista C: de
Empréstimos Evitáveis mas Não Evitados
1
LP
Ser Solidário de José Mário Branco
sem risco algum – a Anne Josette de Lapaix Calle, certa (ou incerta) vez de um
baile-de-garagem no Bairro do Brinca, Coimbra, 1982 ou ’83.
2
Uma
1.ª edição de O que Diz Molero
(Bertrand, Lx., 1977) de Dinis Machado – a Anthony Laurie Pop-Gel, por ocasião
do Festival Só-Rock no Jardim da Sereia, Coimbra, Julho de 1980 ou ’81.
3
Par
de luvas de cabedal forradas a lã, pretas, usadas apenas ½ inverno – a Sarah
Madail Souza-Sim, à saída de conferência-de-imprensa na FIL, Lx., 2005, pelo
fim de Fevereiro.
4
Lembranças
relativas a clarões esporádicos no firmamento (seguidos de luzes alaranjadas em
forma de charuto movendo-se pouco acima dos canaviais de Porto Santiago) –
partilhadas com Charley-Paul Shoemaker Norton em viagem ferroviária
Porto-Lisboa, ano 1987 ou ’88, o menos tardar.
5
Viola-braguesa
original de Barcelos, adquirida em 1986 a André Júlio Antunes Pataias – a
Fernando João Póvoa Casimiro, no Outono aziago de 1989, ou em Espinho ou em
Braga.
6
Manual-de-instruções
(para dicionários-de-rimas, livros-de-estilo, catálogos-onomásticos,
crestomatias-de-etiqueta & moradas-de-putas-casadas) – a Lena Francisca
Costa dos Santos, em 2000 e na Marinha Grande.
7
A
boa-fé, vulgo coração-nas-mãos, vezes sem conta – a duendes verdes, e portanto
de marciana extracção, até data felizmente terminal & terminada.
Lista D: de
Devoluções Fora-de-Validade
(mas
qu’Inda Vão Muito a Tempo)
1
Do
telegrama oriundo de Braga ultima(ta)ndo a última inocência & a penúltima
ingenuidade – s/d.
2
Do
livro da cegueira do Saramago,
recebido em Lisboa aquando da elevação do Cristo-Rei a Saca-Rolhas – s/d
também.
3
Do
ramalhete de orquídeas do sub-género Cicciolinae
Rata encontrado no Pinhal de Marrocos – no ano em que o Boavista foi campeão.
4
Do
livro-de-mortalhas Zig Zag com inscrição do n.º de telemóvel & do horário
anti-marido mais conveniente – em Março de um ano perdido à nascença.
5
Da
estatueta bicéfala (cão & deusa egípcia) diz-se que comprada na
feira-de-velharias da Praça das Cebolas mas de fonte-limpa gamada àquele gajo
leporino do salão-de-bilhares do Alto de S. João – no dia seguinte ao
nainilévãne dUSAmericanos.
6
Dos
óculos-escuros gipsy-rayban ofertados a pretexto do nascimento da Simone –
quando a Nela já soprava à rosa-dos-ventos que ia deixar o Bruno antes mesmo do
baptizado da cachopa, isto portanto circa
2010.
7
Da
porra do Diário n.º-romano-não-sei-quantos
do caraças do Torga, recebido precisamente a 24 de Outubro de 1991 (uma
quinta-feira) num apartamento alvo ali acima do Arco da Velha, perdão, do Arco
do Cego, perdão, do Arco Pintado.
Lista E: de
Compromissos Viáveis (Alguns Já em Via, Aliás)
1
Demandar
sempre o verso-justo, mesmo que – ou sobretudo quando – os outros atrapalhem um
bocadito.
2
Não
correr à chuva, sobretudo aos domingos – posto que o Senhor pode interpretar a
correria como ingratidão pelo que Ele nos dá – ou, pior ainda, como trabalho em
dia-santo, correndo-se por conseguinte o hórrido risco de se ir fazer companhia
na Lua ao homem que ad aeternum lá
anda a enrodilhar silveiras como vinha no livro da Primária.
3
Amar
sem pressa alguma: a ave & o vento dela gerador; as datas sem calendário
para que nem a morte tem ábaco; aquela rapariga clara de palavras límpidas que
não queira parir seja de quem for só por o Falópio ’tar a dar horas; a praia
invernal que deixe escrever na areia o que a maré seguinte deixa esquecer; não
o espelho, mas o olhar dos próprios Pais nos olhos herdados.
4
Continuar
na senda da palavra-justa, única que até, daqui & de boca fechada, se ouve
& se compreende da Nova Zelândia à Noruega, passando por todas as restantes
tabernas do mundo.
5
Garantir
a José & Maria que mau-mau-mesmo-muito-mau para a saúde não é o fumar, é o
andar a moirar toda a vida na estiva para depois acabar com uma reforma de
merda que quase nem dá para acender uma vela em Fátima.
6
Ler
maus livros – não há melhores mestres de escrita própria.
7
Demonstrar
inapelavelmente que Coimbra só não é a mais formosa cidade do mundo por, sendo
única, não ter termo-de-comparação.
Lista F: de
Situações que Convém Levar a Sério (mas Tão-só em Verso)
1
Em
o vento, além de folhas,
arrastar
consigo páginas,
é
de, em mudo modo, lê-las:
que
te lêem mais do que imaginas.
2
Em
voltando Judy Garland a menina,
é
de mentir-lhe sempre o futuro.
Pode
ela não querer ser pequenina
–
e isso é do pior, é do mais duro.
3
Ciência
é já segura que se morre,
por
mais ou menos dê o pato às asas.
Então
tu bebe & dorme, acorda & come;
e
se não der p’ra escrever, pinta umas casas.
4
Concêntrica
é a dor, como no lago
a
pedrada orbita infalível.
Quanto
ao amor-forever, ó carago:
tu
cospe & esquece já, não é possível.
5
Tal
mar, a lembrança depara dunas.
Tal
vulcão, dorme por dentro do fogo.
Em
vendo que o vento destrói escunas,
tu
não recordes mais, tu foge logo.
6
A
água, o sangue, o leite, o mel, o vinho:
q’a
mágoa exangue deite à pele, mas de mansinho.
Exígua,
iníqua, oblíqua, vida-azorrague:
a
água, o sangue, o leite, o mel: tudo vinagre.
7
Vendo-te
sozinho, não te faças coitadinho.
Se
acompanhado, ide a um copo a qualquer lado.
Se
assim-assim, chama-me a mim.
Se
te achares de joelhos, aproveita & caga nos conselhos.
Lista G: de
Coisas Literatóides que Lamento Perder em Morrendo (ou Não – mas o Título é
Giro)
1
No
geral, as promoções leve-2-pague-1. Exemplo: dois-livros-do-Paulo-Coelho por
1-cagalhão-desovado-à-2.ª-feira. (Onde está Paulo
Coelho, pode ser Rodrigues dos Santos ou o Lobo Antunes das entrevistas. De
qualquer modo, pagar sempre co’ cagalhão.)
2
As
querelas doméstico-literárias que mantenho com o meu Gato. Exemplo: ele
assanhar-se a sério quando a minha leitura de momento-sanita preteria José
Vilhena em favor de algum Jorge Amado; ou substituía Jorge de Sena por versos
do Namora do Marketing; ou hibernar o
Cesário Verde em prol da versalhada im-possível
do Saramago.
3
Percepções
lapidares tidas & cinzeladas a sós – deveras conseguidas sozinho, sem
telecomando alheio. Exemplifico garbosa mas francamente: Carlos de Oliveira é
muito mais do que mero neo-realista; Vitorino Nemésio é enorme figura; Miguel
Torga é criatura sobrevalorizada, bajulada, mimada, pedestalada – mas em breve
esquecida & chutada para canto; Manuel Alegre aqui conta para nada, posto
ser de literatura que falamos; Ary dos Santos foi um excelente letrista de
canções mas como poeta-poeta é menor; histórico-literariamente, Portugal faz de
porco que nem sequer grunhe quando lhe atiram pérolas: Wenceslau de Moraes,
Camilo Pessanha, António Osório, Raul Brandão – são algumas delas. Mais há,
porquinho.
4
Tornou-se-me
pacífico dogma (não tenho pena nem temor da palavra, sei o que atinjo mercê
dela) que a Santíssima-Trindade da Literatura Portuguesa é: Camões-Eça-Pessoa.
5
Já
não lamento que Italo Calvino & Julio Cortázar (o primeiro, italiano
nascido em Cuba; o segundo, argentino nascido na Bélgica) não tenham sido
Portugueses. Pelo contrário: se esse azar lhes houvera batido à porta,
provavelmente só em edições-de-autor é que apare-seriam. (É perguntar a António
Osório como começou ele. Mero exemplo. É ir contar o número de obras pessoanas
publicadas em vida do Autor.)
6
Já
aqui tendo referido Sena & Calvino, a eles volto para assentar: pode ter
havido (ou haver ainda, mas disto duvido) escritores que percebessem tanto do ofício (não santo, atenção, mas humano tout court) quanto o Português & o
Italiano – mas mais, ninguém, nunca
& jamais-em-tempo-algum. Firmissimamente o reitero. E não vacilo. Nem
bacilo.
7
Sem
falsas contemporização ou condescendência, concedo ao Leitor (qualquer &
todo & cada um) que goste e/ou não goste do que entender. Liberdade – até
para o mau-gosto, em caso disso. (E o disso
é comuníssimo.) Gosta de merda? Pape-a a gosto. Gosta do que é bom? Então,
parabéns: pérolas – das nacionais como das estrangeiras – são, ó felicidade!,
tesouro que não escasseia.
Palavra-da-salvação.
Epílogo ou
Remate (de cabeça)
I
Diogo do Couto, parece, foi
maiusculamente Amigo daquele Camões miserando que até fome rapava, sem dela
poder sair, na Ilha de Moçambique. Gratidão se lhe deve. E muita, pois que
alimentou, vestiu, calçou & embarcou para Lisboa o Perene Epopeu.
Jorge de Sena, nisto ou naquilo, pode
nem sempre ter tido razão – mas usou-a sempre, à razão, lá por razões só dele.
Aconchego-me a obras de pessoas há
muito corporeamente extintas. A muitas me refiro, digo, pessoas & obras.
São caloríferos nos (já raros, infelizmente) dias frios & são refrigerantes
nos sufocantes (infelizmente, demasiados).
As boas leituras acabam sempre por
permear-me o solilóquio permanente com que escoro a maioria-silenciosa dos meus
dias. Curiosa, que não paradoxalmente, as más também – se não mesmo mais até.
A Literatura não é meramente um
modo-de-vida mas sim a vida-de-outro-modo. Creio-o & pratico-o.
É verdade, não é mistificação:
homens & mulheres já mortos continuam vivos mercê da obra que nos legaram,
mormente quando de grande & incontornável qualidade. Não é milagre nem fé –
é inteligência & boa-sorte. Neste sentido, continua estentoreamente audível
a gargalhada do delicioso Eça; continua mirífica a arqueologia idiomática do
maravilhoso Camilo; continua ímpar a paleta fotossensível de Wenceslau;
continua singular a Lisboa-plural (não é vão paradoxo) de Cesário Verde,
Cardoso Pires, Fialho de Almeida, Ramalho Ortigão – e não muitos mais, embora
ainda alguns.
Confesso embirração com a figura
(figurinha-queixinhas, às vezes) que Eugénio de Andrade arvorou por pose – mas
a poesia dele é assaz revisitável: mesmo não sendo nós já deslumbráveis
adolescentes.
Dos torg’alegres, já disse. Quanto
a essa multidão chamada Pessoa, cometo profano pecado sempre que o nomeio –
pois que se não deve invocar o nome de (um) deus em vão.
Desde 1 de Janeiro de 1995 (um
domingo) que registo numérica & cronologicamente as leituras/releituras que
faço. Folheando esse rol, obtenho da minha passagem uma espécie de gramática
essêncio-existencial. E também, ou sobretudo, o cadastro do melhor tempo da
minha vida.
(Copofonia & misantropia não
são sinónimos de literatura – mas lá que a ajudam, dúvida nenhuma.)
II
Por dentro se configura a
distância,
que concretiza o afastamento,
que ainda assim é presença.
A pessoa só é pessoa se por dentro.
Por fora, é homem ou mulher,
em novidade ou velhice – e só.
Homem só, mulher só, pessoa a sós.
III
O estivador da Rocha do Conde
d’Óbidos comendo pão com sardinha de conserva em tomate picante. O sol outonal
glorifica a foz tágica. Milenar aquilo tudo: o homem, a sobrevivência, a glória
– e o R que ali, em tágica, parecia faltar.
IV
Pesporrência caturra dos
pseudomoralistas (relativamente a tudo & mais qualquer coisa) – não dou, já
há muito que não, para esse peditório. Prefiro-lhe uma volta pelo burgo, este a
que para sempre retornei – não cuidando eu de saber quanto vale(rá) este para-sempre.~
Inteligência a sério & a valer,
apreciei eu a de um licenciado que, herdando de seus velhos uma pequena casa
aldeã, a tem reconfortado de meios simples mas eficacíssimos. Ameace o boletim
meteorológico o que ladrar, não há sábado, domingo ou feriado que ele lhe falte
a ela. Pouco falta para que dê por concluída a restauração do tugúrio. Já me
restaurei lá eu mais do que duas vezes. Cá fora, sob telha, há o largo alpendre
dotado de lenha e onde ardê-la. Confeccionámos lá lautos grelhados, peixeiros
uns, viandeiros outros, opíparos todos. Nomeando-o embora vinho, veludo é o que
lá temos mamado. Acontece-me sempre voltar de lá com vontade de lá voltar.
Ficar, não posso – portanto, escrevo-o para que sim, se & quando lido.
V
Jacobi faz Claudius.
Hulce faz Amadeus.
Suchet faz Poirot.
Gambon faz Maigret.
Brett faz Holmes.
Ganz faz Hitler.
Craig faz Bond.
Guiness faz Smiley.
Silva faz Evaristo.
Cintra refaz Belo.
Assim devemos fazer
– ou pelo menos tentar.
Morre-se na mesma
– mas dói menos ter nascido.
VI
Rosa, cavalo, noite, aurora.
Sim, sim, certa, justa.
VII
Paulina Barbosa Catalazete
deu de si a flor tão preciosa,
mas mal-amada, e de repente,
a sós vive ela hoje em sua casa.
Danilo do Carmo Melo Taborda,
d’alto de 4.º-andar viu ele os
Cravos.
Não mataram os pides-bardamerda,
’inda queimaram aos montes
arquivos.
O país é bonito, a pátria é chunga,
é pária de si mesma quando quer.
Ter-lhe amor nunca decapita a zanga
q’um gajo sente em lhe vindo o
pior.
Tanto émeérrepêpê & cêdêésses,
varinas, pauliteiros d’enfiada,
tudo enfim à coca de benesses,
cagando & rindo da própria
cagada.
Sem comentários:
Enviar um comentário