31. Simplificação
Terça-feira, 17 de Dezembro de 2019
Vozes & ventos, mesma fartura.
Sou pronto. Os papéis também. Veio sol no dia da Leonor, é natural. Pedra
trabalhada entretém o Tempo. Não há crime no apessoar a inscrição. Prontidão,
solidão, disponibilidade. Versos, vozes & ventos, mesma fortuna.
Pré-mortos, somo-lo todos, não há
que enganarmo-nos, basta de timorata néscia superstição, só a obra operada (eu
ia dizer obrada, mas seria ruidoso)
vinga & vinca a efémera passagem que efémero não deixa o mesmo Sol de
sê-lo.
A laboração afiambra, por assim
dizer, o pão magro de cada dia. A própria, indefessa (indefesa é que não); a
alheia, idem. Isso sim.
Não foi nada combinado,
artificioso, interesseiro, egocoiso – não foi. Foi tão simples quão isto:
sobraçando ele uma pasta sem pega e de couro, calhou pousá-la entre copos,
entreabria-se papelada, perguntei, respondeu serem manuscritos já revistos
& maiscabados de voltas que dera pelo pequeno-comércio, inclusos neste o
povoamento ambulatório dos por-enquanto-vivos + sombras arbóreas dando em muros
de vivendas well-to-do + uma pandora
de falas recolhidas por autocarros e filas nas repartições públicas.
Interessei-me, claro. Ele ficou de pensar se me os cederia para leitura
solitária à consignação. Bebemos mais alguns, ele desandou, nunca mais o vi.
Tempos (poucos) depois da morte, calhou encontrar-lhe eu a filha, ela foi
gentil, sabia da tal pasta, passados dias confiou-ma.
Jorge Miguel, David Duque, Júlia
André-Filho, David Arco, Jorge Rapaz – nomes constituintes do
quinteto-residente, às quartas, da Luís Tano JazzHouse. Eu tinha na altura o
mais bem remunerado emprego da minha vida. Rara era a quarta que eu falhava. O
quinteto era excelente. A gerência tratava-me principescamente. Mesa própria, garrafa
privada (Jameson tripla-destilação). Recordo-o em paz. O fotógrafo Félix Beato
juntava-se-me ocasionalmente, assim como Fidelino Ernesto Castro, fotógrafo
também, João Lenha, Brigitte Lindomem, até Sofia Seropico – tudo maltosa da
imprensa (e seus derivados, por assim
dizer). Tudo isso lá vai, nada disso cá volta. Só da música tenho alguma
nostalgia, o que penso ser notório em quase tudo o que (ainda) escrevo.
Parece-me justo que desta caderneta
constem tantos nomes quantos mereçam dela constar. Afloraram eles diversos
& mais ou menos avulsos trâmites da minha passagem. (NB: Alguns eram já defuntos antes da minha nascença.) Assim:
Marco Tainha, autor de Hugo Berro Fino;
Nicolau Pejado, editor do melhor
catálogo de títulos dedicados à pobreza em Coimbra no primeiro quartel do
século XX;
Moura Bocha, santo & bêbedo
& fraquíssimo poeta mas bom-coração;
Raimundo Valinca, melhor amigo
social do que esposo privado;
César Pinteiro & Dinis Pote,
dupla imbatível (desenho/texto) do cartoonismo esquecidíssimo da imprensa
regional (Porto incluído, claro);
Marcelino Jaime Fernandes, cuja
hombridade deveria ser erguida a património mundial, nem que apenas aos sábados
com emissão em directo a partir do balcão do Carlos Carocha, que ainda hoje
atende ali ao Bot’Abaixo.
Contam-me ter morrido, em
Inglaterra e em aparato de extrema solidão
(institucionalizado-sem-sequer-sombra-de-família) o indivíduo C.M.G., que
conheci há cinquenta anos. Sinto pear sinceríssimo. Ele assassinou P.F.C. há 33
anos. Volveu-se farrapo, inexpiável lhe foi o crime. Eu sei que assim foi
deveras. Dois mortos conto agora ao cabo da mesma faca.
Queira-o ou não
(mas sim, quero-o)
sigo rumo à/da
simplificação.
Em S. Francisco/USA, a desbunda
narco-erótica de Foucault não é de grande interesse. Mas algumas páginas que
escreveu, sim. Parece que ele gostava da música de Stockhausen. Tal é também
interessante. Idem quanto à auto-moral em oposição à do rebanho. A parte sado-maso,
essa é lá com ele. Ou era. Ou já foi. Parece que tanto ele como Barthes foram
auto-atropelados. Michel sobreviveu, Roland não. Depois, veio Junho de 1984 (o Ano-Orwell, por assim dizer), a morte no
bico vinha do insondável nenhur’algures, vinha & veio, tomou em si o autor
de livros merecedores de atenção. Foi, enfim, amo de sua vida mesma
Em casa, em paz. Ponho a tocar Gesang der Jüngling, do Stockhausen
colheita 1956. O Gato, que dormitava, interessa-se de imediato. Que lhe dirá
esta música? Recordará ele algo dela em sonhos? Ou são já os sonhos dele
stockhausenianos? Tenho de experimentar, nele, Messiaen, Debussy & Boulez.
Baixinho, claro. Stravinsky, vemos depois se. Os dois, claro.
Aprecio daqui (sala, vidraç’alta)
um trecho de rodovia de ligeira curva. É via de ligação a duas outras, não
demasiado traficada, que já a pé fiz
(itálico porque acho piada a este verbo nesta acepção faber ou faciens) muitas
vezes – tanto de manhã bem cedo como pela pré-alva. A luz, cediça hoje, fá-la –
ou torna-a; ou devém-a – várias-em-si-mesma(s). Em baixo como em cima, é
limitada por semáforos. Subindo no plano, a gravura oferece-me o Campo do Bolão
+ as povoações em fundo-bruma (arredores do nascimento do meu Pai). Neste
momento, descem-na um carro azul seguido de carrinha branca. Ninguém sobe, mas
há só que esperar um pouco. Ei-lo: um papa-reformas
cor-cueca subindo. O Gato adormeceu a alguma profundidade. Já não é o alemão de
há pouco que soa na casa. É outro cavalheiro: o John Adams de Phrygian Gates (1977).
Na Sirius, ali à Rua da Sofia,
gosto de pasmar sem abrir a boca. Nada obsta a que a hora-presente se veja
transportada a horas-mortas suas irmãs, ali mesmo. Prefiro lá ir com o meu
melhor fato – não é difícil, já que só tenho um. O melhor fato sobre os
melhores sapatos – o que já me não é tão fácil, pois que tenho três pares
bastante bons. Também a gravata me faz pensar: tenho duas. Recapitulação – um
fato, duas gravatas, três pares sapatais. Agora que em casa isto escrevo, sinto
vontade de voltar à Sirius em breve – veremos então que escreverei lá sobre
casa, onde de roupão & pantufas me chamo Scrooge.
João Adões na hipermercearia,
corredor a corredor sem correr, devagar abastecendo-se de artigos lhe conferem
momentos do futuro (para) breve, escolhendo sem pressa entre marcas afins,
encontrando o que não procurava e demandando o que pode não haver hoje nas
prateleiras. Assim (n)a vida, João.
Alan Sillitoe – apetece-me relê-lo.
É autor de sólidas qualidades. Se alguém reflectiu o & no que o rodeava , o
criador de Saturday Night and Sunday
Morning tem de ser arrolado no libreto. Nottingham deve-lhe.
(Escureceu, escrevo já través a luz
eléctrica. É outra dimensão. E mais não digo.)
(Digo, digo:)
A salvo da bruteza de outras
instâncias, segue caminho beira-rio o antigo soldador-oficial-n.º 1 da
Metalúrgica Rendeiro & Livramento. É Valter Aniano da Póvoa Maria, 82 anos,
natural da Arregaça. Trabalho toda a vida, teve dois filhos rapazes com Maria
da Visitação dos Santos, mortos os três no mesmo dia, desastre de viação que
deu muito que lamentar em a Coimbra toda desse mês de Setembro de 1986. Tinham
ido a Alcobaça de visita à irmã de Visitação. Valter não foi por estar a fazer
turno-extra a pedido do senhor Rendeiro. “Antes
tivesse ido com eles” tornou-se a sentença recorrente do infeliz. Vive na
mesma casa em que nasceu e se casou e co-gerou os rapazes, Diogo &
Dionísio.
A salvo da bruteza de outras
instâncias – mas não à da mesma, da única, da definitiva, da de 6 de Setembro
de 1986, negro sábado.
Guilherme Alpedro Mestre Manha,
rapaz fornido, sensível, deslocado, ensimesmado como as pedras que as crianças
não escolhem para brincar. Ocorre-me pensar nele agora por esta ser a última
entrada do capítulo de hoje. (Já passa da meia-noite, aliás, faço um pouco
vigarice mantendo Guilherme na terça-17.)
A tranquilidade dele é toda
exterior. A mãe da mãe suicidou-se, o médico desenganara-a, o cancro do fígado
é do pior que imaginar se pode, a pobre velha suicidou-se à homem, enforcou-se
na trave da adega como um homem, não na cama com soníferos.
Guilherme era então adolescente,
acorreu aos brados da mãe, foi ele a tratar do imediato, bombeiros, polícia,
pai por chamada interurbana.
Acabado o liceu, não quis seguir o
superior politécnico. Empregou-se na lota do peixe, depressa chegou a
leiloeiro. Ainda hoje não bebe nem fuma nem vai a bailes nem à bola nem nada.
Recorta, cola & coleciona
notícias breves relativas a curiosidades estranhas & estrangeiras: incas,
esquimós, tour-de-france, hematologia de reis, atentados, cheias de verão &
insolações invernais, infâncias de compositores célebres, cifras em pedra
escondidas à vista de toda a gente em frontarias da catedral X., patranhas do
género que o convencem da urgência de partir em demanda delas como um
folclorista farto do rancho local.
O pai não veio ao enterro da
ex-sogra. Ninguém comentou, pelo menos não à frente dele. Já o rapaz trabalhava
na lota, chegou uma carta dele. Nem menos: estava terminal de cancro do fígado.
Guilherme não respondeu por crer tratar-se ou de uma piada de mau-gosto ou de
uma seriedade de mau-gosto.
Nisto, mantendo ele o emprego &
tendo chegado ao quarto álbum de recortes, chegou-se a mim a irredutibilidade da nova
quarta-feira.
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