30/09/2011

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 17 - Coimbra, quarta-feira, 13 de Abril de 2011 (completo)



Vila Marini, em Coimbra (Calhabé)



17. APRAZÍVEL TEMA

Coimbra, quarta-feira, 13 de Abril de 2011

Retorno hoje ao aprazível tema do Amor para não ter de chamar fê-da-pê ao primeiro-sinistro de um país qualquer, seja ele quem for e da mãe de quem for. Os pés das mulheres bordam água-sandália pela Cidade iluminada (nada, nada). E lume e nada. Sei que se trata de um cabrão indecoroso, mas o Amor sobrepassa-o sem ser difícil. Estou vivo no século XXI, não sei que vai isto dar. Não tenho assento parlamentar. Serei uma laranja. A cabeça palpa o coração. O fê-da-pê é corruptor. Eu, não. Eu ando por aqui enquanto o pão me deixar que sim. Falei com o Joaquim, trocámos rosas verbais. Vejo pessoas de olhos bons, constantemente. Raparigas amaduradas la(c)tejam colos úberes. Rapazes manejam computadores portáteis com uma desenvoltura engraçada. Sim, o gajo é cabrão, como pôde alguma mulher ter tido filhos daquele leite. Comem atum conservado em óleo vegetal, os Portugueses, com batatas de cozedura, coitados: picam até cebola, só que não lêem Martim Codax ou João Roiz de Castelo Branco. O arvoredo ainda folheando páginas, como se nada fosse. E se um soneto me viesse, eu diria que:

As lentas mágoas do rio concorrem
ao sal do mar, ao sol do mar.
Amores hei eu tido, que me morrem
ao sal do sol, do mar, do mar.

Já fui menino, só que o destino
me tirou, breve, da tenra idade.
Idade terna, que em pequenino
já era p’ra ser eu desta Cidade.

Convoco os naufrágios e os afogados.
Eu vivo na sombra, entrego recados.
Ando aqui lobrigando mamas de mulheres.

O resto é o rasto, o que é que tu queres?
Calhando, digo eu, tu ’inda preferes
meninos tão velhos, rio-magoados.

Tínhamos, antigamente, jantares. Éramos de um mesmo sangue que a passagem do Tempo tornou outro – ou de outra cor. As louças pintadas à mão cercavam-nos de rosas e narcejas. A canela acudia à fervura láctea do arroz-doce. Quase tudo homens, só duas raparigas: a Mãe e a Irmã. O azeite verdejava a humildade das batatas. O bacalhau vigorava como um prémio de sorteio-taluda. A família estava toda viva, nada havia a recear. Lembro-me disso tão bem. Os meninos e as meninas dos irmãos não haviam ’inda nascido. Tudo era para ser: quase nada tinha sido.

As lentas mágoas do rio concorrem
etc.

Iço das pessoais catacumbas o leão da tristeza. Sou a clara sombra. Eu levanto frases das pessoas morais. Eu vivo disso e para isso. Sim, iço.

(Da Cristandade o peixe não me interessa.
Respeito o Camilo, mas prefiro o Eça.)


Coimbra, 12h17m do dia 13 de Abril de 2011: homem de camisol’azul atrelado a um cão amarelo-e-branco: na Rua do Brasil, em frente à Munich-2 (Vila Marini).

29/09/2011

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 16 - Coimbra, segunda-feira, 11 de Abril de 2011 (conclusão)

Clube de Futebol União de Coimbra - Primeira Divisão Nacional - Época de 1972/73


Ou então:


Habitei longamente a infância da minha rua,
isso já lá vai, entanto aqui fica.
Havia o meu Pai, farmácia era botica,
a minha vida (re)vestia-se de ser nua.

Roubei longamente fruta nos campos lavados.
As pessoas eram vivas, havia menos cafés.
Os filhos conheciam-se irmãos pelos pés,
eiva, seiva, ei, rei, grei, apressados.

Sou compridamente daqui, mas vou morar
com certa senhora dúctil como o ouro.
Levo-lhe nada, que nada é o meu tesouro
e tudo é quanto hei a lh’ ofertar.

Carnívora rosa, é ou não o coração?
E as tardes do Calhabé, quando o União
(72-73, digo eu) subiu à Primeira Divisão?
Não, espera, eu digo-me e me confesso ladrão

da fruta dos campos, da água dos olhos,
dos naufrágios pessoais, de praias e escolhos,
amores insalubres, tenho-os eu tido aos molhos,
a água dos campos, a fruta dos olhos.

A meu lado, um guedelhudo
fuma de barba Português Suave
e bebe uma Pedras. Mais digo, contudo,
que usa nos pés umas unhas de ave.

Que loucura mansa, Joaquim, a poesia.
Esta coisa q’aleija e lateja no dia.
Um dia, a gente, entanto, todavia,
’ind’-’á-de-ser-feliz – feliz, quem diria.

(Poderia, no entanto, ser, ainda, assim:)

Ágil graça pura em formosura
assiste, lent’atenta a quanto faço.
Nem sempre a rima é coisa do bagaço:
às por vezes é causa d’efeito pura.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 16 - Coimbra, terça-feira, 12 de Abril de 2011 (fragmento 2)

Ela toca-me em quase pura gangrena: oxida-me o coração, volatiliza-me tanta espera. É na força da vida. Se ela me diz:

– Quero-te tanto desde tanto ontem

eu então peço café, leio o jornal, faço que não faço, sou feliz devagar. E a hora deita-se como uma gata saciada de leite. Ou: também acontece isto:

Penso na minha Mãe, no poderoso sono que a subjuga adentro a terra do campo-sono, sobre os ossos do meu Pai. Pensa nela/neles enquanto escrevo, como se o pensamento tivesse corredores simétricos. Amar é estranho. Uma pessoa manqueja, quando ama tanto. E nem corpos vivos são condição obrigatória ao exercício do tanto-amor. A mocidade do coração verdeja seivas que palpitam. Um capitão de artilharia, este amor de filho pró-pater-maternal. A boca (a Língua) plena de aurículo-ventríloquos. Santo Deus, Pobre Diabo. Bagas de azeviche reticenciando o amor. Desastres de viação à luz intermitente das estrelas. Em Rio de Mouro, existe um gerente comercial de 62 anos chamado José Moreira, diz o rodapé da televisão matinal. E eu existo. Sim, existo, se escrever:

Poderosa emanação linfática preside
ao destino remolhado da essência.
Serei tant’ontem quem reside
em ti adentro, terás tu a paciência.

Uma mulata de camiseta amarela, chinelos de borracha grossa, debica amendoins salapimentados de um pires com filete verde. Confronta-a uma branca de cabelo branco-azul, saia de bombazina listrada a gesso, ar de quem nunca foi a Lisboa comer um gajo casado. (Sim, as maravilhas da vida quando escrit’imaginada, eu sei.) Homem com dente de ouro encastrado na boca notarial: há quanto tempo não via eu dentes de ouro. Já fui jovem, amigos meus. Desço ora ladeiras a cima: a idade, o vilipêndio caríssimo da idade: o estipêndio da, o estupor da idade. (A Mãe morta-viva no corredor paralelo da cabeça-mente enquanto, ente, escrevo.) Se escrever, só se escrever:

De sardas picotado o bonito rosto,
carne de porco come à alentejana.
Formosa e grácil e lejana,
eu gosto dela, ai dela eu gosto.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 16 - Coimbra, terça-feira, 12 de Abril de 2011 (fragmento 1)

CAUSA D’EFEITO PURA

Coimbra, terça-feira, 12 de Abril de 2011

Ele aproxima-se pelo lado esquerdo, senta-se, toma em mãos o jornal, pede café, lê, bebe. Usa o corpo dentro de fina cambraia azul, ao tronco, e ganga verde nas pernas. Emoldurou os pés de couro italiano de S. João da Madeira picotado, meias azuis. Cabelo em cascata posterior e castanha. Óculos leves de lentes puras, sem aros, nuas, limpas.
Ela quer suco de abacaxi, jaqueta vermelha a representa, saia negra, sapatos negro-encarnados. Boca engelhada de idade, ainda porém bonita.
Muito deploraria eu a minha vida, caso me não fosse possível deferir a certificação literária de pessoas que tais. Mortal, não raro ominoso, o destino linguístico que cumpro não atende procrastinações, pelo que todos os dias me volvo voz escrita. Para quê? Porquê? Para quem? Por quem? Quase irrelevante. Sigo.

Khalil Chahine para ouvir lendo

Rosário Breve nº 226 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 29 de Setembro de 2011




Para José Niza

“Omnes una manet nox, et calcanda semel via leti .” (“A todos nos espera uma mesma noite; a todos nos toca pisar uma vez o caminho da morte.” – Horácio, Odes).
Faleceu José Niza. Já não é, por estes dias nem estivais já nem de Outono ainda, notícia. É memória. O corpo do médico, escritor, colunista, compositor e activista sociopolítico, entre outras estaturas, saiu do palco da vida pelas horas a que a pretérita edição do seu semanário (este, O RIBATEJO) se preparava para ver a luz do dia. Como sempre, o jornal trazia a coluna de Niza aos seus muitíssimos e fiéis leitores. Todos o liam, adorando-o ou desgostando dele. Eu lia-o. Não é nem difícil, nem precário, nem arriscado dizer que todos o admiravam. Eu admirava-o. Era das primeiras coisas que procurava em cada edição. Muitas vezes discordei dos seus argumentos. Às vezes, diametralmente. Mas (acreditai-me, por favor): sempre gostei muito do desassombro com que ele zunia o acerado fio da sua espada retórica, sempre apreciei sobremaneira a assertividade franquíssima com que ele desencabrestava o fel contra quem e contra aquilo que lhe não parecia nem decente nem respeitável, sempre assimilei a lição argumentativa que era a dele: dizer por boca própria o que se pensa no caso de se pensar pela própria cabeça…
Pois, ocasiões houve em que estivemos quase-quase em colisão. Aqui há umas temporadas (idas já, felizmente), um amigo dele era primeiro-ministro, não recordo agora o nome da (triste) figura. Niza era amigo (mesmo) dele. E defendeu-o com unhas, dentes, couro e cabelo. Sublinhou ele que “os amigos são para as ocasiões”. Estive vai-não-vai para, na semana seguinte, me meter com ele recordando-lhe que “a ocasião faz o ladrão”. Ainda bem que o não fiz. Doer-me-ia hoje, talvez, tê-lo incomodado. E vai daqui, até talvez não. Talvez lhe agradasse que um David-fedelho como eu se metesse com um humilde-Golias como ele. Ao contrário da história bíblica, talvez quem acabasse por levar a metafórica pedrada fosse eu, chiça…
Despeço-me dele com esta sinceríssima declaração: eu também escrevo versos, coisa que, segundo a Agustina, “é um mau passaporte para o mundo dos ajuizados”. Sim, escrevo versos: mas a verdade é que, por mais e mais que os escreva, nunca na vida deixarei algo que tenha a obstinada durabilidade destes de José Niza: “Quis saber quem sou / O que faço aqui”.
Ele sabia quem era. Ele sabia o que por aqui deixou feito.
Sit tibi terra levis, José: que te seja leve a terra, “depois do adeus”

28/09/2011

Vejam isto e visitem o resto do sítio: http://howtobearetronaut.com/2010/07/alfred-steiglitzs-clouds/


How I Came to Photograph Clouds


Thirty-five years ago I spent a few days in Switzerland, and I was experimenting. Clouds and their relationship to the rest of the world, and clouds for themselves, interested me. Ever since then clouds have been in my mind, most powerfully at times. I always watched clouds. Studied them.
My mother was dying. Our estate was going to pieces. The old horse of 37 was being kept alive by the 70-year-old coachman. I, full of the feeling of today: all about me disintegration—slow but sure: dying chestnut trees—all the chestnuts in this country have been dying for years: the pines doomed too—diseased: I, poor, but at work: the world in a great mess: the human being a queer animal—not as dignified as our giant chestnut tree on the hill.
So I made up my mind I’d finally do something I had in mind for years. I’d make a series of cloud pictures. So I began to work with the clouds—and it was great excitement— daily for weeks. Every time I developed I was so wrought up, always believing I had nearly gotten what I was after—but had failed. A most tantalizing sequence of days and weeks. I knew exactly what I was after. I wanted a series of photographs which when seen by Ernest Bloch (the great composer) he would exclaim: Music! Music! Man, why that is music! How did you ever do that? And he would point to violins, and flutes, and oboes, and brass, full of enthusiasm, and would say he’d have to write a symphony called “Clouds.”
And when finally I had my series of ten photographs printed, and Bloch saw them—what I said I wanted to happen happened verbatim.”

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 15 - Coimbra, segunda-feira, 11 de Abril de 2011 (completo)



15. FRUTOS POENTES SEM PEIAS

Coimbra, segunda-feira, 11 de Abril de 2011

É sem peias nem remorsos que reconheço limitar-se a minha literatura possível a nótulas breves, inócuas e descartáveis sobre a meteorologia e a silvicultura, por vezes com rápidos reparos de cariz ornitológico. Não tem mal nem faz mal a ninguém. Julgo que não, que não tem nem faz. Que a minha vida seja, ao menos por escrito, da Vossa imitadora: sulcadora da luz e da chuva, das vinhas e das ruas, amadora de pardais como de pombas – como de senhoras e de árvores dotadas de cervicalidade. Os meus dias são os meus livros. Leio-os à passagem vertical, sonho-os sobre um catre celibassolitário. Escrevo-os em dor ou/e euforia. Por exemplo, hoje:

Num bairro popular da Cidade de Coimbra. Dálmata não daltónico, usufruo da calma que se chama calor. Dou devagar ao rabo. Senhor de tão pouco, anseio por nada. Uma laranjeira além, uma casa abandonada aqui. Um velhote absurdamente enroupado para a força da tarde: camisola interior, camisa de flanela, pulôver de lã, jaqueta de caqui. O velhote, sentado no banco exterior da Associação local, não é presidente: conta, de um envelope, as notas da reforma. Olha-me com desconfiança, o tonto, o magano – vim à rua escacilhar um cigarro, o senil pensa que lhe cobiço as misérias esmoleres. Volto para o caderno, saciado de claridade. Encomendo uma cerveja muito fria, espera a vinda do meu Irmão Carlos, que precisa de uma assinatura minha num documento obrigatório (pós-morte da nossa Mãe). Respiro sem pensar nisso. Observo discretamente os outros bebedores. Como eu encalmados, bendizem o refrigério engarrafado: cerveja quase todos, mas um preferindo vinho branco cuja frescura é de embacia-copo. Um casal com dois petizes de colo, menino e menina. Evidência da pobreza: as roupas, os cabelos, as sandálias, a paraplegia dos quatro olhares. O cu da empregada: regueifa bífida, cerúlea, sebácea, gelatinosa. Um sentido para a vida? Ná. Não demando tal. Resigno-me sem agonia à descomunal insensatez cósmica e antropológica de tudo isto: estar vivo, os patos na lagoa, as estrelas em perpétua gambiarra natalícia, os homicídios, a puta da cristandade e quejandas meretrizes teosóficas. Em filosofia, fico-me pelo cu da empregada. Ou então isto:

Às 16h34m da segunda-feira chamada 11 de Abril de 2011, estou vivo, respiro grafemas. Fora desta sala, a banha luminescente torna hidrófilas até as sombras. O meu Irmão Carlos veio, esteve, disse, partiu. Estou bem, as coisas vão. Há muita (toda a) luz lá fora. Sombras perpassam, palpitam nos olhos ledores, credores, escritores. Toco o ar como se herdasse seda. Esmalto esse toque. Creio na passagem. Risco esquinas. Tenho segredos. Degredos, também tenho. Ou tive. Possuo um olhar gráfico:

As casas com painéis de seis azulejos 15x15 com representação de santos. O meu Pai pintou alguns (muitos) dos que vejo. Uma mulher jovem de olhos verdes quase tão jovens quanto ela. De peitoral-peitoril, muito branca. Diz à amiga que tem febre. Boca, de facto, quase sem água, a pele dos lábios descamisada. Ou então se:

o pequeno toque táctil te tentear
em meio à bruma sensitiva do instante
e quanto não disseste for declarar
que esta assim-assim foi tua amante,

tu não ligues, tu não digas coisa nem nada.
Se amante foi ou há sido, foi amada.
Nada nem alguém a ver com isso.
Alheira é o falar do mundo, é encher-chouriço.

Digo:

Agora os cursos superiores são comparativos por baixo, as pessoas já nem percebem por que motivo se chama uma rua Alves Redol, o nível é estrumeiro, o nónio de Pedro Nunes não lhes cabe na puta craniana da cabeça, sabem lá elas o que não for pornografia televisiva, o preto-segurança baleado pelo ex-amante da ex-gaja-dOdivelas, a riqueza das buganvílias dando roxo para nada e a ninguém, o capitão Salgueiro Maia e os compêndios gramaticais da escola técnico-industrial do Antigamente, a Vida, essa senhora-de-berma-de-estrada esperando o camionista-da-Morte. Só não me peçam para viver, se (não) (para) escreviver.

Redigo:

A semente do trabalho dá frutos poentes.

26/09/2011

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 14 - Louriçal - Coimbra, domingo, 10 de Abril de 2011 7 de Abril de 2011 (fragmento 1)

14. CONVENTUAL

Louriçal - Coimbra, domingo, 10 de Abril de 2011







Densidade de uma mata só de pinheiro-manso: espessura conventual, sombra de noite privada dentro dela todo o santo (antro) dia.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 13 - Leiria, sábado, 9, e domingo, 10 de Abril de 2011

13. NOVENTA E QUATRO

Leiria, sábado, 9, e domingo, 10 de Abril de 2011

Enquanto o corpo me for dando, hei-de eu, como mais bem puder, ir aproveitando esta oportunidade de negócio chamada Vida. É trivial não sentir tal ante meu mesmo desconhecimento dos anos vindouros (se vierem, se o corpo se lhes for dando, natural, naturalmente). Mas – conheço eu, deveras e de facto, os anos já idos? Não é a memória uma reconstrução (=uma corrupção) lírica do (v)olvido? Penso nisto este sábado nesta Leiria da casa-de-pasto MonteCarlo (“Salvador”).
Fora a meteorologia é de abafo: suspeito uma iminência de trovoada.

*

Não se concretizou, afinal, a tempestade. Dia calmo. Conversámos a vida, fizemo-nos sorrir. A noite veio sem dor. Camarão e amêijoa para o jantar, angústia não.

*

(O meu Pai completaria hoje, domingo, 10, 94 anos.)

*

Algumas palavras do jornal do dia (porque elas formam poemas):

·        ajuda social e económica
·        na exaustão os recursos humanos
·        notificado para ir amanhã
·        uma frutaria em Benfica
·        a carneirada ululante
·        pela goela abaixo
·        apagaram o fogo rapidamente
·        ontem salvas de afogamento
·        encontrada inconsciente
·        mal lavrado
·        buraco negro
·        alvura celestial
·        ajustamentos protelados custam mais
·        o estado da rosa
·        povo farto de furtos

     ·   escondida no ânus

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 12 - Coimbra, Pombal, Leiria, sexta-feira, 8 de Abril de 2011

O SOL PARECIA OUTRO

Coimbra, Pombal, Leiria, sexta-feira, 8 de Abril de 2011


O calor abriu suas asas descomunais, parecem mais bonitas e menos fechadas as pessoas portuguesas do meu tempo. Vi há minutos, num banco assentada da plataforma de Coimbra-B, uma rapariga bonita como um recado vegetal. Tão bonita, tão bonita: como uma boa notícia, como dar sangue. Usava uma perfeição geométrica: digo: desenhada a tira-linhas, o colo muito manso, a boca sem gula abordando as frases do ar, os sapatitos ligeiros como plumas que um pato deixasse à flor-pele da lagoa, os joelhos sem dureza dobrando a subida à matriz púbica, a barriga estreita e firme, em cima os supostos morangos dos peitos, o olhar castanho como um pardal não me olhando. Sim, está calor – e eu escrevo-te esta carta espúria. O sol diadema-se todo nos campos de milho que condensam o ouro da terra. Regueiros de água chilreiam frescuras, a bom e a estibordo do meu corpo atento. Entre campos, casais apresentam cores: amarelo-creme, verde-lavanda, castanho-cabra, branco-giz, rosa-rosa. A minha vida vai quente. No comboio, percebo do exterior a brisa pela inclinação pensativa das ervas. Que precioso, dado o dia, não ter morrido até hoje. Ao cabo da linha, espera-me quem me quer – e eu vou-a. Este é o meu tempo, o pão que me amasso rindo-me do Diabo e de Deus, esses dois maganas fabricados pela superstição iletrada dos totós. Muito gostaria eu de assar um almoço sob aquelas árvores além. Convidaria os meus mais dilectos e predilectos amigos, haveríamos de juntar lume, vinho, peixes, sal, especiarias (das quais (a)mor a amizade), pão. No Café Alfa, em Alfa(relos), convivi certa ocasião com um revisor da CP. Falámo-nos bem. Nesse dia, o sol parecia outro: como que uma toalha de cinza sobre a mesa da realidade.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 11 - Leiria e Coimbra, quinta-feira, 7 de Abril de 2011 (fragmento 7 e último)

O meu amor por ti vigora ainda viçoso,
Senhora Mãe, não confundas o vento
com as árvores que ele, triste, na triste noite
move.
Olha, Senhora, hoje não chove,
antes pelo contrário.
São dias, estes dias, como os que foram teus
– e que sem a Senhora faço meus
e a que pertenço.
Cheira-me aqui a incenso,
a tabernáculo,
a pastor cujo báculo, penso,
arrebanhadamente cria a cria,
o leite, o azeite,
o deleite dos mortos amados
por seus mesmos filhos rimados.
Meia-colher-de-chá-de-açúcar
em fervendo ervilhas:
saiba a Senhora Mãe que tenho
duas filhas,
deleite minhas elas de leit’azeite,
como aliás usávamos
na família que ambos,
a Senhora e eu,
frequentávamos.
O meu amor por si, Senhora minha,
resiste à tentação
de, em mármore, visitar a corrupção
de seu/teu pobre corpo original
pobrezita mãe / Rainha de Portugal.
Valado de Frades.
Casal de Santa Isabel.
A senhora-mãe, Hermínia.
O outro gajo, Daniel.
Aqui estamos: partilhamos,
do final naufrágio,
os despojos, os escolhos.
E vamos e vimos e vemos em frente,
que o juro por seus,
Mãe, Pai,
olhos.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 11 - Leiria e Coimbra, quinta-feira, 7 de Abril de 2011 (fragmento 6)

Um quase-nada de nada-quase
A bondade da pessoa tendo a pessoa por base
As incomunicações
As buganvílias
As reparações
O mau falar das famílias
O Pai / Os Pais já ido / idos
Este sabor a naufrágio
no palato dos perdidos

E ou mas
de repente
a gente
acordar na cama
com
precisamente
vê lá tu
quem se ama.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 11 - Leiria e Coimbra, quinta-feira, 7 de Abril de 2011 (fragmento 5)



© Ana Hatherly


É quinta-feira, sorrio com os olhos à branda
ligeireza cursora das linhas da minha vida,
não ando aqui para enganar alguém que
não seja eu, poetas ingleses de XIX/XX,
Século de Ouro dos Espanhóis, Geração
de 1927, Almada & Pessoa & gordo-Sá-Carneiro
algo antes, casas-de-pasto & restaurantes.

Enganar ninguém que.
Mira, a poesia não é difícil:
tu olhas para fora, dentro se te escreve
a esguia ortografia do que nem vês
– mas lês,

nem sabes como.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 11 - Leiria e Coimbra, quinta-feira, 7 de Abril de 2011 (fragmento 4)



© Leonel Moura (ISU)



Desço o ar por um corrimão de árvores
perto do posto da polícia que guarda viaturas
confiscadas aos meliantes roubadores.
Sou este gajo de camisola azul-celeste
entre peões de óculos escuros.
Derivo través limoeiros, sinto-me dono e
presa da Hora.
Estou vivo.
Um dia, os meus braços param.
Um dia, as minhas mãos param.
Outro dia, não, emergem do lodo verde
e riscam canções.
Aquela cativa que me.
Perto da avenida com nome de um escritor.
Na minha Cidade.
Caraças – que fazer de tanta beleza?
Como suportar tanta beleza?
Como não render-me a tamanha beleza?

25/09/2011

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 11 - Leiria e Coimbra, quinta-feira, 7 de Abril de 2011 (fragmento 3)




A uma hora e treze minutos de ir trabalhar, tempo para registo da pele muito branca daquela leitora de jornal ali, senhora de óculos debruados a finíssimas hastes de ouro. Bons pés lavados e tirados a couro por sandálias finíssimas também. Blusa de gaze-quase-transparente, sugestora de lactação amor-mamilo-aguada. Excelente ventre em repouso respiratório, à fímbria da mesa do Café S. Paulo. Pulseira valiosa, pesada, cercadura do pulso esquerdo, o mesmo pulso que compulsa as declarações de Cavaco a propósito do pedido de esmola de Sócrates à União(-ão-ão-ão) Eu(-tu-tu-tu)ropeia. Formosa senhora distraída nas breves (14h22m, entretanto). Registo feito, vivo, verdadeiro.

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 11 - Leiria e Coimbra, quinta-feira, 7 de Abril de 2011 (fragmento 2)



© Fernando Aguiar


Em Coimbra para o resto do dia. Em estado de graça: muita luz, muitos rostos legíveis. Derivo reconhecendo tudo. A minha mocidade de 1976 na montra do pronto-a-vestir que então se chamava Tito Cunha, à Rua da Sofia (a dos Clérigos, a dos Colégios). A Tabacaria Portuense fechada – que será feito do senhor Manuel, que tinha nariz esmagado de pugilista e era tão bom homem? A fatalidade da beleza – digo: a das casas templárias, a das mulheres corsárias, a dos pombos cruzados, a das sombras medievas. Quanto estava à espera, dia a dia, gota a gota, da terminação física da minha Mãe, tanto andei por aqui, mas tanto, que o corpo se me volveu espécie decalcomaníaca dos muros da Cidade. Tatuagem-passagem fui em espera, resignação e caligrafia. Agora, a Mãe (o corpo dela) está morta, dorme em ossos. E Coimbra segue sendo isto: não abdicar nunca da beleza dela. Por (bom) exemplo: a beleza deste homem sentado na Pastelaria Império (Rua da Sofia ainda): seus perfil, frente e fronte, seu imaculado fato completo de linho branco, seus óculos fumados a azul-tempestade, sua elegância de tomador lento de cerveja a mais frígida. Ou então: a morenidão acalentada desta morena quente de filho a (tira)colo encomendando chá gelado e folhados de carne macerada a ervas especiosas. Ou então ainda: a minha mão direita pensando por mim, majorada dos óculos que assesto na zona norte do rosto para ver mais e mais clarafundamente para dentro. A minha Mãe no aquário piscívoro: o sol dando demãos de ouro na terra tão pobre, plena porém de conversas acabadas que os luares recomeçam entre lápides-datas-eternas-saudades. O peso-hélio no balão-coração: urdume do amor.

23/09/2011

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 11 - Leiria e Coimbra, quinta-feira, 7 de Abril de 2011 (fragmento 1)


© Hine, Lewis Wickes, 1874-1940, photographer.
José de Sousa Magano, 35 Aetna St., Fall River, Mass. Born in Fall River, June 2, 1901. Left for the Azores at 8 years of age because family moved back. Cannot read or write in his own language or in English. Never been to school. Returned to Fall River in May 1916. Applied for employment certificate June 17, 1916. Refused on account of not being able to read or write. Will have to attend school until he is 16 years of age. Presented baptism certificate from Santo Christo Church, Fall River, as evidence of his age. Sister had to talk for him. Could not understand or speak English. See 4192. Location: Fall River, Massachusetts / L.W. Hine.
http://popartmachine.com/item/pop_art/LOC+1497276/JOSE-DE-SOUSA-MAGANO,-35-AETNA-ST.,-FALL-RIVER,-MASS.-BORN-IN-FALL...



11. JURA POR OLHOS

Leiria e Coimbra, quinta-feira, 7 de Abril de 2011


Vi já hoje um rio verde, incontáveis flores azuis e um homem de olhos amarelos. Passei por tudo isso. O meu olhar (meio aéreo único de que disponho para voar) altera os lugares do meu corpo-em-vida. A noite passada sonhei de novo com a minha Mãe, aquela-que-dorme-em-terra, aquela-agora-de-novo-com-o-meu-Pai. Em-morte-ambos. Também me dirijo ao infinito, não pode ser só para alguns. Saio de uma cidade, torno a outra. Isto tem-me sido sempre assim. A Manhã drapeja como uma bandeira de inumerável (mas enumerável) vastidão. Voo de patos, de rolas, de pardais, de olhares. Armazéns vastos: comidas, peças hidráulicas, louças, roupagens. Cavalheiros, senhoras & crianças. Os cavalheiros morreram, as senhoras também & as crianças são agora cavalheiros & senhoras, isto tem sido sempre assim, a cidade de cada um torna-se outra, verde, azul, amarela. 

22/09/2011

Rosário Breve nº 225 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 22 de Setembro de 2011



Gracias a la vida


A vida é mais parecida com Alberto João Jardim do que com Salgueiro Maia. Trata-se de uma infelicidade simples e objectiva, tal verificação. Parece-me incontestável, porém e aliás.
Se um argentino me mostra Piazzolla, eu aponto-lhe Carlos Paredes – mas, na verdade, estou a mentir-lhe. É uma mentira piedosa, mas é uma mentira: porque a nossa lusa verdade é Tony Carreira, aliás e porém.
Outra mentira (não piedosa, esta): a de sermos um país de brandos costumes. Somos nada disso. Seremos, quando muito, um país com o costume do brandy (mas daquele de Sacavém).
Seríamos mais dignos da dignidade de Salgueiro Maia se tivéssemos a coragem de rever a Constituição tal que as eleições das regiões ditas autónomas passassem a ir a votos de todos os portugueses, continentais naturalmente incluídos.
Seríamos herdeiros legítimos da pureza de Carlos Paredes se interditássemos os autarcas da chafurdice imobiliária e das adjudicações pato-braveiras. Seríamos. Nunca o fomos. Temo que o sejamos jamais.
À excepção de coisa de três anos e meio em Lisboa, sempre vivi localmente. Isto é: perto da fossa a céu aberto, do poço destapado, da aldeola desertificada, da fábrica falida, da oficina de zundápes e da taberna com chão de serradura pontuada a escarros mucosos, do bacalhau às moscas e das moscas ao bacalhau, do vereadorzito sem ortografia e do padreca vinófilo de bochechas atoucinhadas, dos caçadores de pombas, das sete-maravilhas da parolice endógena, das feirolas medievais com sabor a sévanète e ademanes de pechisbeque cóltural, das garraiadas desumanas em prol de um divertimento subanimalesco, das suiniculturas mais infectas e das infecções mais suínas, das escolas sem crianças e das crianças sem escola, das novas oportunidades tão equivalentes a velhas manhas, dos têgêvês a carvão que não passam o Tua nem chegam a Marvão, dos incêndios com hora marcada e impunidade judicial, dos rios sufocados de porcaria e das barracas de alterne onde por vinte euros se pode comprar uma facada em brasilês.
Tudo isto me surge em elevado grau de impureza e incontestabilidade. Dir-me-eis que nem tudo é assim, ao que vos redarguirei que sim, que de facto não, que nem tudo nem todos são assim.
Carlos Paredes e Salgueiro Maia não eram.
Nós sim somos, com um “penalte” de brandy gaseificado de sévanète à saúde do sôprezidentedajunta. Ou do da Madeira. Aliás. E porém.

15/09/2011

Rosário Breve nº 224 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 15 de Setembro de 2011

Degrau a degrau enchem eles o papo

Escreveu com muito acerto Agustina Bessa-Luís: “Uma coisa que os Governos novos sabem é que têm de ter duas condescendências: para os que fazem rir e para os que não fazem nada.”
Muitos séculos antes, o mais brilhante cérebro que a Humanidade já produziu, Leonardo da Vinci, anotou: “Duas fraquezas que se apoiam entre si criam uma força. Assim se mantém firme cada metade do mundo, que se apoia na outra metade.”
A isto, Agustina contra(ou justa)põe: “O conde de São Marçal dizia, parafraseando, que a política se reduz aos espertos que querem subir e aos tolos que lhes servem de degrau.”
Como não era homem para desistir, Leonardo sublinhou: “Ao ajoelhar-se, um homem perde a quarta parte da sua altura.”
Gente que faz rir sem ser a malta gira do Gato Fedorento e gente que não faz nada, como o plantel do Sporting – ele há muita. Mas também há muita que faz coisas. Coisas que não fazem rir. Coisas como a privatização da água. Coisas como não taxar os grandes capitais e os descomunais patrimónios privados. Coisas como a desqualificação da carreira docente. Coisas como bater e matar a esposa. Coisas como a impunidade do enriquecimento ilícito. Coisas como o S da sigla PS: que já foi de Soares, de Santos (Almeida), de Sampaio, de Sócrates e que agora se pensa Seguro. Socialista é que nunca, olha quem.
Sim, os espinhaços ajoelhados são os mais propícios degraus para os galga-varas (perdão, valas…) e os fura-vidas da politiqueirice. Sim, mas nem para todos os que fazem rir, como aquele calamitoso furúnculo da Madeira que sabeis, há que ter qualquer condescendência.
O conde de São Marçal tinha toda a razão, embora conde. Do ponto de vista da física, Leonardo, é claro, tinha-a também. Mas do ponto de vista socioeconómico, não: a relação entre explorados e exploradores não é metade-metade. Os ladrões são sempre muito menos do que as vítimas. As esposas assassinadas são sempre muito mais do que os anos de cadeia impostos aos homicidas. E o rotativismo pós-25 de Novembro de 1975 (toma-lá-PS-dá-cá-PSD, essas duas fraquezas feitas conivente força) pode ser ridículo, mas não risível.
Um povo de joelhos também não.

08/09/2011

Rosário Breve nº 223 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 8 de Setembro de 2011



A um coelho sobre relvas

“Põe o ramo aqui e vende o vinho em outra parte” – é provérbio português antigo. E calça como uma luva ao sr. Relvas, que na Lisboa do poder esbracejou um estardalhaço de feira cigana por causa de uma molhada de facturas por pagar do Instituto do Desporto. Fica por saber por que não fez o mesmo sr. Relvas a mesma coisa quando por aqui, Santarém, andava: facturas por pagar são mato (grosso) nas contas mal contadas da Câmara local. Ou não? E já agora: recomendo vivamente ao sr. Relvas que, aproveitando o balanço, dê um salto à Madeira e traga de lá os calotes do histriónico Jardim & sus muchachos da bananeira angolana em que aquilo se tornou há mais de trinta anos. Ou por outras palavras: venda por onde quiser, sr. Relvas, o seu vinho – mas crave o ramo, homem, crave o ramo. Não tenha medo, que as bananas são moles e as feiras duram pouco.
Outro senhor, o sr. Coelho, anda agora de dedinho em riste contra os facebookistas que, quais ingleses de imitação, ainda o podem arreliar com motins de sardinhada assada aos portões dos palácios onde se congemina a malfeitoria da política fiscal, a sacanice da demolição do trabalho, a tolice da deseducação, a abolição da justiça e a infecção da saúde. O sr. Coelho, com os portugueses (alistados no facebook ou não), não se preocupe. A malta é pacífica e geralmente anda bêbeda, sobretudo ao volante. Mas queira atentar no que acima recomendo ao seu acólito sr. Relvas: a Madeira, essa cratera indecorosa onde a democracia vale menos do que uma língua-de-gato molhada em poncha servida no carnaval vitalício daquelas malogradas ilhas. Se também, e porém, tiver medo, faça-nos o subido favor de vender aquilo, sei lá, aos Açores ou à Indonésia.
Termino, sr. Coelho, com duas graves correcções a um agudo, excitado, incongruente e recente dito de sua autoria. Disse o senhor que “estamos no princípio do fim do estado de emergência”. Não estamos nada, sr. Coelho.
Primeira correcção: estamos no princípio do fim do Estado.
Segunda e última: estamos no princípio do fim.
Vá, agora vão lá à Madeira fazer o que vos disse. Ide em paz. E, se quiserdes, não volteis, que a falta que cá fazeis é a mesma do outro que se foi para Paris fazer-se (de) filósofo por pensar que também é Sócrates.

02/09/2011

Rosário Breve nº 222 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 1 de Setembro de 2011


Crónica masculina

Por de mais breves dias, habitei os esplendorosos e ístmicos contrafortes de Peniche. É sítio onde o muito vento se volve espuma & pedra, sal & água, tempo & anestesia. Fez-me bem. Até que aconteceu o que passo a cronicar-vos.
Estava eu mui nadegamente confortável em um café-bar perto do histórico Forte, quando Ela se deu à luz para meu profundo desassossego e pélaga inquietação minha. Uma mulher maiúscula como um plátano. Justo na mesa defronte. A beleza dEla pôs-se-me logo a zunir no olhar-escriba como um cacho de abelhas-leitoras.
A cabeça, qual incêndio fulvo, convocava o óleo enxuto do ouro. A testa era-lhe perfeita: daria para escrever nela o vil vilancete de um ósculo demorado. A coluna dórica do corpo subia-lhe ao rosto a quietude toda jónica de uns olhos verdes palhetados a coriscos de cetim castanho, à boca uma insensata incursão nos domínios carnívoros da amora madura, ao pescoço a neve sólida e gráfica do cisne: e ao peito – bem, ao peito o balcão-de-ver-ópera a partir do qual apontava o binóculo dos mamilos, duras duas pontas reiterando dois morangos do mais rijo lacre. No resto, o rasto do rosto: ventre vertical (sem sequer uma bossazinha de celul(e)ite) e pernas 3D de gladíolo próspero. O todo dela apareceu-me subscrito por finas tiras de couro esc(o)uro enlaçador de uns dois pés que ao mais alvo mármore escureceriam, se cotejados.
Por modos, fiquei eu como que de areia plástica. Movendo-se, lenta, insuportável, Ela rangia papel: por ser, como era, uma capa de revista. Senti, sem ilusão nem remédio, chorosas e ganidas pulsações na próstata (sim, a minha ainda labora) em equívocos borborigmos de coração descaído ao norte das gónadas, as minhas. Sofri bem aquela ginecologia. Até que.
Até que o telemóvel dela a chamou. Era um gajo a chamar. Tinha de ser, pois pudera. Ela sorriu-se toda em faíscas dentárias da mais perlada e coruscante e marfínica e matadora maneira. Fiquei danado.
E mais danado fiquei quando, uma brevíssima eternidade depois, o tal gajo veio, a levantou e (m)a levou. Vale que me a não roubou de todo: eis cá que vo-la deixo às passivas mercê e atenção vossas, mesmo que para o que não der nem mais vier, em Peniche, ao vento que nada traz e a tudo leva.

Canzoada Assaltante