Foto nanométrica de embrião humano de seis dias alojando-se na parede do útero
49. PERDER CHAMA-SE NASCER, MAS
Coimbra, sábado, 24 de Julho de 2010
As pessoas começam a perder as mães quando nascem.
As pessoas começam a perder-se das mães quando nascem.
Quando expulsas dos dentros das mães, as pessoas perdem-nas e perdem-se.
As mães perdem-se dos filhos quando os expulsam.
Os pais nada têm a ver com nada disto
(também perdem, são expulsos também, os pais).
Na minha tenra e terna – que não eterna – mocidade, cruzei em total solidão um campo agrícola de total vastidão. Súbito, o céu fechou-se como um punho cinzento. A brisa tornou-se ominosa ventania, as árvores tremeram outra respiração, encrespou-se a pele da água da vala – e a trovoada desabou como uma desarrumação implosiva de telhados pobres. O aguaceiro não tardou. Alertado pelos casos literário-campestres do manual da escola primária, não me abriguei ao regaço de qualquer árvore. Eram de borracha amarela as solas das minhas botas também pobres e também de borracha. Ofereci o rosto à fustigação oblíqua. Sinto ainda essa euforia, essa agonia. Não recordo, porém, a agónica euforia de nascer. Isto é, de (me, a) perder.
As pessoas são tijolos verticais de proteínas e carbonos.
As pessoas ocupam Berlim todos os dias – mas não vêm na História.
São livros cujas badanas são os filhos e os bisavós.
A mãe da pessoa nunca chega a ser escrita.
É um mãenuscrito perdido ab ovo.
Hoje, devasso circunvalações crestadas pela luz de torrefacção dos estios pobres. Perdi-me dela, como a todas as pessoas acontece desde o grito ex-amniótico. E em torno a Cidade vigora de passeadores de cãezinhos de varanda, de arrumadores de automóveis esfíngicos como urubus do tráfico, de psicólogos encartados com três divórcios nas virilhas, de budistas de terceiro-andar cuja melancolia seria equiparável à dos gerânios se me apetecesse dizê-lo.
A mãe, quando porém viva, é encontrável nos interstícios dos sonhos e nas fissuras dos amigos. Chama-se-lhe então Senhora Cortesia, Madame Educação, Dona Polidez – ou apenas Mãe.
E então, tudo embora se perdendo, nada se perde nem ninguém, porém.
1 comentário:
É isso, sim, a coisa Mãe, dita-escrita em forma de música. Eu também moro nessa derrota de estar a perdê-la todos os dias e de todos os dias me dar conta dessa quase silente tragédia.
É, ó Poeta, muito pesado o fardo de amar pensando, ou de pensar amando!
Abraço.
JJC
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