14/07/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 12 (e) - continuação da entrada datada de Coimbra, sexta-feira, 11 de Junho de 2010



Saio a prear mais ares, aragens, paragens e moções. O tempo (sem sol e sem chuva) é propício à deambulação. A serenidade é a possível. A atenção é omnívora, isso sim. Ala.

Estive nesta mesma sala de café vai para bem mais de trinta anos. Coisa de trinta e cinco, por aí. O meu irmão Fernando levou-me às Piscinas Municipais. Não eram estas modernaças de agora, claro que não, mas valiam por toda uma euforia incondicional. Depois, viemos para aqui. Parece que estou a ver o Zé Amaro a merendar uma bola-de-Berlim e um copo de leite. O Fernando trouxe-me um “sumo de frutas”, embora fosse só uma laranjada (uma Buçaco ou uma Serranita ou uma Cruzeiro ou uma Laranjina C ou uma Superfresco, não sei). Sempre foi de uma generosidade despojada, esse meu irmão. Bem-hajas. O século mudou, o milénio também – e aqui me eis, um quarentão sem ilusões (mas pleno de alusões) e sem Fernando, de momento. A África do Sul empatou com o México (1-1) na partida inaugural do Mundial-2010. A sala está povoada de canastrões maduros e desbocados como eu, sobretudo aquele pequenito ali, que ladra tanto mais alto quão mais é baixo de tíbias & tacões. Súbito, entra este maralhal todo, entra uma morenaça nutrida de cabelo escarolado que tenho visto passar outros dias outras feiras. Semi-silêncios e semi-rosnadelas lúbricas. Ela apresenta-se bem, pede um quartilho de água mineral (tara perdida), paga e sai, deixando por rasto, como um visco de caracol, o desassossego de uma dúzia de próstatas. Como só às 19h30m volta a dar jogo na TV (Uruguai contra os bardamijos da França), o café é evacuado num ímpeto. A propósito, trata-se do Café Abadia, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra. Do outro lado da rua, outro café, que vagamente usei durante o meu tempo liceal no Infanta D. Maria – o LD (significa: Lanternas Douradas, nem toda a gente sabe isto, atenção). O pequenito continua à porta a ladrar. Parece um terrier a pilhas Duracell. Entra um sósia do John Wayne, mas sem chapéu nem fuscas à banda. Lembro-me de, no extinto Café A Brasileira, à Ferreira Borges, no princípio dos meus universitários anos 80, andarem por lá duas caras-chapadas curiosíssimas: o Príncipe Carlos de Inglaterra e o Vladimir Ilich Ulianov, vulgo Lenine. Também havia um Jorge Luis Borges, mas usava óculos e via e não era genial. Hoje, vejo dois cedros ainda tímidos plantados no separador triangular em frente ao Abadia. Em outro além, próximo também, a mole da Igreja de S. José. Mas este café mantém a traça e o mobiliário de estabelecimento pequeno-burguês das décadas de 60 e 70/XX. Agrada-me. Desconheço a razão por que tanto me agradam os anacronismos. Talvez porque me tenha volvido um. Sim, isto mesmo: volvi-me um anacronismo – mas antes isso do que ser corno e/ou andar na droga. Agora, povoação do Abadia: o patrão, eu e dois rapazes na orla dos setenta e picos. Ambos de jaqueta de terileno, uma ligeiramente escurecida de âmbar, a outra configurada em casca de ovo de prata. Mostram atavio e demonstram memória: o mais velho dos dois fala de uma Académica, 2 – Sporting, 7, no tempo dos Cinco Violinos. Cabeleiras brancas de bom matiz e razoável qualidade. Peles algo rubro-vinícolas, mas global asseio de corpo e paramentos. O mais novo dos dois velhos raspa, distraído do mundo mas concentrado no prurido, o cu das calças. Apercebe-se do que fazia, olha em torno, descobre-me a olhar-lhe para a mão no cagueiro. Tosse para disfarçar, manda vir uma rodada, começa a falar depressa e em voz alta. Desvio logo o olhar e não escrevo de imediato para o senhor não desconfiar. Agora, um terceiro (o John Wayne) junta-se-lhes. Começam a dizer mal do pequenito irrisório e irritante de há bocado. Sinto-me em odor de santidade. Isto poderia ser Viseu sem quase diferença alguma. Ou Leiria. Ou Aveiro. Ou Lisboa. Mas é Coimbra – e eu sou daqui nascido. Não estranharei nomes de ruas ou de bairros que à tona do falatório surjam. Nada estranharei, aqui. Viseu, Leiria, Aveiro e Lisboa são-me simétricas topografias no afecto (e até na nostalgia, como não admiti-lo?). Mas é que “nostalgia” é, por étimo grego, “dor do lar” – e o meu lar é Coimbra, venha de cá quem já cá estiver e de lá quem vier ou não. Súmula de pessoais trâmites, sangue de sangue e palavra de palavra, ser de um sítio é como ser de alguém – e, à falta de alguém, sempre se casa com o sítio. (Esta não ficou mal.)

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Canzoada Assaltante