15/07/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 12 (f) - conclusão da entrada datada de Coimbra, sexta-feira, 11 de Junho de 2010



Muitos seres antigos, quais vasos sem água,
transitam em fumo pelas calçadas.
Os tudos da vida na morte são nadas,
quais vasos sem ser, muito antig’águas.

A referência viária da Estrada da Beira é N17. O autocarro 26 vai para Chão do Bispo e o 34, para o Pólo II da Universidade. (Da Estrada, estou seguro; espero não ter falhado a numeração dos autocarros.) A cara daquela senhora, coitada, mora atrás de duas lentes fundo-de-garrafa. Compensa com madeixas ruças, como a outra da Carolina Michaëlis. Repetem na TV o primeiro golo do África do Sul – México: anestésico psicossocial, ou trópico. Alienação sim, desemprego que se lixe. (O nosso cancro é termos muito Sócrates e nenhum Platão.) Ali, agora, ao balcão, um rapaz encarnado emborca de penalty uma mini muito frígida. Tasquinha tremoços carregados de sal grosso como se debicasse uma caixa de sardinha em salmoura. Blusãozito à-matador-à-matador, mas de napa tipo Feira dos 23. Ao pé dele, um moçoilo perfumado de cannabis-knorr. (Este soslaia-me, curioso de ainda se escrever à mão em papel-papel.) Mais atrás deste pinqueflóide, um metro e oitenta (mínimo) de empregado bancário em casual wear: pulôver lançado aos ombros e lassamente amarrado ao peito, camisa salmão às listras brancas, sapato-de-vela, cabelo à CDS, Levi’s caras e invejáveis circundando os pernilongos. Nesta meia sala, seis mesas de tampo redondo, quadradas o resto (escrevo a uma destas, sou o único sentado). A mulher cu-de-garrafa fala na rua com o John Wayne. Luzem nas estantes a aguardente Zimbro, Favaios, Offley, São Domingos, Licor Beirão, anis Domus, ginja Victor e ponche Oriental. A hora é chegada de ir comer alguma coisa. Próxima, a Noite vem reclamando as derradeiras sombras do aliás muito sombrio Dia. Uma sopa, duas lâminas de pão com mortadela, algum legume, uma chávena de café-cevada e já vou, ou vento com sorte.

(O what a beautiful morning)

A manhã é tão perfeita
É tão bem feita a manhã
Al maçã em cor poção
Ãmor in verso é romã.

Vai caindo o pano do dia. Oito minutos para as vinte e três. Amanhã é dia de Feira Medieval na Sé Velha e nas imediações. Música sacra ás nove na velha catedral, depois hei-de ver e ouvir o meu sobrinho Ca’litos com os seus Gambuzinos: sons e ritmos medievos em trajes à maneira. Já os vi na Net, mas vou gostar ’inda mais de os ver em carne & som & osso & tudo. Há que (pre)encher os dias, tal que a melancolia e a incerteza não me ganhem o jogo-da-bandeira.
De resto, beleza-beleza-beleza-beleza: terminada a leitura do n.º 503 dos Livros de Bolso Europa-América, não pude resistir a encetar e levar por diante o 502 – Clepsidra e Poemas Dispersos, naturalmente do gigante Camilo Pessanha, edição (muito) melhorada pelas excelentíssimas Introdução Biográfica e Crítica, Organização e Notas de António Quadros. Horas (boas) com a cabeça entornada para tão excelsas escritas e inscrições. Ao mesmo tempo – ou em tempo paralelo –, organização cronográfica de uma agenda com, dia por dia, ano por ano, informações a aproveitar para redacções e melancolias futuras. Exemplo:

“21.8.1887 – ‘Na Pasta de Abel Aníbal’ – data desta 1.ª versão do soneto (Cam.º Pessanha) “Tenho sonhos cruéis; n’alma doente (…)”.”

Um dia útil, portanto. E um serão idem.

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Canzoada Assaltante