46. DESOLAÇÃO DE SEGUNDA-FEIRA
Coimbra, segunda-feira, 19 de Julho de 2010
Os dias mais recentes têm sido dedicados à resistência a uma espécie de melancolia diferente da que me é trivial, isto é, a de rama lírica, sendo esta de maior arbusto angustioso. O calor adquire, não raro, feições psicológicas típicas da desolação mexicana – e o entardenoitecer despista um homem (eu, no caso) pelos meandros ínvios da depressão à berlinense. Eu sei: tudo isto (este palavreado todo) sugere alguma mistela metafórica (ou pior) tipo “iconografia geo-oro-meteo-topo-cultural”, ou o Diabo por ela, mas é o que sinto que seja.
Sinto que há valores seguros na vida: a solidão, Beethoven, a comida enlatada, a Noite. E nos bebedouros da Noite, entre homólogos (uma cabeça por mesa ou banco de balcão), a evidência de pertencer a uma tribo de náufragos nómadas não desprovidos da urbanidade de maneiras nem de conhecimentos relativos ao Tour de France – desampara e faz escrever ideária e coimbramente. A etapa do dia (19/07/10), aliás, é entre Pamiers e Bagnères-de-Luchon.
Não há grandes nem pequenas coincidências. Hoje mesmo, segunda-feira (19/07/10), dei uma aula suportada em papel por um manual de História, o mesmo que enquanto aluno recebi no 7.º ano de escolaridade. O manual chama-se História – Antiguidade e é da autoria de Maria Luísa Guerra. A edição é de 1976 e da Porto Editora / Empresa Literária Fluminense. Dei hoje as páginas 4 a 13, inclusive. O meu professor de então (1976/77) chamava-se Dr. Severo de Melo. Ainda se chama: está ali, a fumar cachimbo como sempre e como sempre a escrever, numa mesa solitária e pensativa do Bar S. José, no piso térreo do Girassolum. Nem pequenas nem grandes coincidências: incidências só, é o que há e é o que é.
Não acontece muitas vezes, mas acontece: subo ao piso superior do Dolce Vita e como uma meia-sopa por um euro e setenta cêntimos. No fim de comer, as pessoas deixam tabuleiros, pratos, talher e copos sobre as mesas. Depois virá, homem pobre ou pobre mulher, quem os recoleccionará e redistribuirá pelas lojas de comida de que provieram. Às vezes, sobretudo em hora de menor ponta, os tabuleiros ficam algum tempo. É então que o vejo: um português da minha idade, geralmente de sandálias. Senta-se ao pé dos tabuleiros abandonados sobre que os pratos conservem restos maiores: de pizza, de salsicha brasileira, de asa de frango à Kentucky, de bocado de ananás, da humílima broa até. Senta-se e come logo quanto pode. Também guarda alguma coisa (a broa, a asa) numa espécie de pochette de napa. Para depois. Como antes.
Picar a última cebola, abrir e escorrer a derradeira lata de cavalas, cingir tudo em pão fatiado, beber um copo de água da torneira da cozinha (mais viva sempre que a da torneira do lavatório da casa-de-banho) e meter adentro as ameixas terminais compradas por impulso na banca de fruta de um homem maneta – uma ceia decente, de gente, a minha.
2 comentários:
faço deste último parágrafo a minha sobremesa, daniel. um beijinho.
Bem servi(n)da seja, Alice.
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