12/07/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 12 (d) - continuação da entrada datada de Coimbra, sexta-feira, 11 de Junho de 2010



Interessam-me o traçado das ruas e a massa do casario por corresponderem, um como outra, ao traçado e à massa da existência essencial. O colear, serpear, curvar e recurvar das artérias não é polissémico em vão: artérias são ruas e são veias. A massa corporal das casas equivale, tim-tim por tim-tim, a o corpo ser a casa de cada um. E isso só poderia interessar-me. Então, aquela fonte ali, motor de pedra pulsando os óleos minerais da água domesticada, alívio de passaritos, aspersão de poalhas que benfazem de hissope sobre a relva pagã. Inscrevo estas nada triviais evidências na minha vida manuscrita – é quanto posso fazer, mais, é quanto não posso deixar de fazer. E então, ainda, as polidimensões mesclam-se em furta-cores, caleidoscópicas, retinem retinas mentais: António Nobre e um palacete sem amos, a marisqueira e o Colégio de S. José dos Marianos, Afonso Duarte e a tinta impermanente do entardenoitecer, a solidão devoradora de Camilo Pessanha e a desolação feliz da Rua Augusta quando se desce de Celas para a Antero de Quental às seis e meia da manhã, a Vila Marini e a Quinta do Notel e a senhora mexicana morta sob o trolley-bus na Rua da Sofia vai para quarenta anos, o Penedo da Meditação e o primeiro casamento de José Afonso, os malucos de Coimbra tornando-a mais Coimbra, os autocarros como formigas amarelas e a macieza vernácula da pedra-de-Ançã, o Jardim da Manga e Carlos de Oliveira acabado de chegar de Febres, os estudan’tunos de 1888 e a vitória académica na Taça de 1939, os senhores Amaro, Lucas, Gonçalves, Nunes, Paula, Sacramento, Elói, Carvalho e Fernandes, Rocha Nova, Lordemão, Ceira e Chão do Bispo, a Casa da Nau (ou do Navio; ou Bombardeiro) e a Clara e o Beco das Cruzes e o Carlos Alberto Mercier Abrantes Cardoso, a floração fragrante do jacarandá e a nespereira dando pepitas ao senhor reitor, a quadrângula desflorada de uma praça em contraste da redondez cosmogónica de outra, a Maria da Conceição Saraiva Pinto na Leitaria do Raul e o S. Sebastião anichado alto nos Arcos do Jardim, a peremptória dignidade dos cães vadios e o carácter lambéconas dos de estimação que usam colete, o vento quando é crespo na pele do Rio e o Rio quando adoça as sombras e os pés das raparigas pobres, as Almas de Freire observadas astronomicamente e a Lomba da Arregaça alombada arregaçadamente, o Loreto e a Relvinha, o Olival de S. Domingos e a Rua do Infante Santo, um velho a chorar na Rua de Saragoça e um bebé à gargalhada na Ladeira da Sentiva, ter caído tanta neve no dia 11 de Fevereiro de 1983 e não ter caído nenhuma hoje, a Guarda Inglesa e a Casa dos Vagares, a minha Mãe e o meu Pai, a boga e o robaco, a Vala do Norte e o Poço do Almegue, o Tó-Zé que deve o carro ao banco e a Milu – assentada num banquinho – faz favor ir lá p’ra lhe dar um tostãozinho, os coimbrinhas que fedem e os conimbricenses que fodem, a translucidez única e mediúnica da música de Carlos Paredes e a rapacidade imobiliária dos autarcas, os patos da minha rotunda e os anjos nus que pousam no balcão da minha varanda um exacto segundo depois que adormeço, a voz botânica dos meus mortos e a mineral dos mortos dos outros, uma rua chamada da Alegria e uma fonte dita dos Amores, um bairro ser da Rosa e uma quinta estar em Lágrimas, um penedo ter Saudade e um monte ser Formoso, o Menano e o Hilário, o Gervásio e o José Maria Antunes.

E António Quadros recuperando, da Origem da Língua Portuguesa, de Duarte Nunes Leão (século XVI), isto:

(A saudade) “he l~ebrança de alg~ua cousa como desejo della.”

6 comentários:

Calendas disse...

Nem sei que dizer, a não ser que isto é um outro nível de escrita. Parabéns por tanto talento e também parabéns para mim por ter tido esta oportunidade de a conhecer.

Daniel Abrunheiro disse...

Gentileza sua, que agadeço.

Filipe disse...

Amigo.
Nem sempre comento, mas vou-te lendo... gostei muito do que acabei de ler sobre essa cidade que tem um bocado meu e eu dela.
A partir de Luanda, um grande abraço.
filipe

fj disse...

pois eu, só por causa disto, vou amanhã dedicar-te um post.

Daniel Abrunheiro disse...

Um abraço conimbricense, Filipe.

Daniel Abrunheiro disse...

É uma subida honra, fêjota.

Canzoada Assaltante