Turismos com Banda Passando em Fado-Marcha
É domingo, acabou a manhã. Fomos cedo às compras, temos amigos para almoçar. É um dia bom. Ela ficou em casa a arrumar o resto da manhã. Eu saí para ir buscar palavras que estavam cá dentro, à espera. Encontrei-as, voltei para casa, estou sentado a revivê-las. Antes de tudo, dei de comer às pombas no Rossio da cidade. Fiz isso. Esmigalhei pão, atirei-o. Depois, fiz o número de circo pobre: abri ambas as mãos, a que escreve e a que lê: elas treparam-me as mãos, comeram dando bicadas nas palmas. Uma mulher fotografou o conjunto: não conheço a mulher, ela ficou-me com a imagem de cruzeta de pombas. De dador de pão, como meu Pai foi. Deixo-vo-las aqui, vãs migalhas, num rossio de luz. Deixai-me apenas esclarecer que a etimologia nos obriga a recordar uma onomástica figurativa: do grego, o nome Crisóstomo. Significa, à letra, O da Boca de Ouro. Ou seja, O Que Fala Bem. Não é o meu caso.
******
NÃO MAIS CRISÓSTOMOS
Viseu, fim da manhã de 13 de Abril de 2008
Abandona-nos por vezes a conversa as bocas,
essas borbotadoras de couro.
Não mais somos os crisóstomos, as bocas de ouro.
Somos agora o calado couro das caladas bocas.
COMO O COMBOIO
ibidem
Como o comboio faz que passem as coisas quietas,
escrevo.
À PASSAGEM DA BANDA DA MANHÃ
Viseu, manhã de 13 de Abril de 2008
– Que estranha alegria é esta que me finca o coração com pés de pomba?
– É a filarmónica que passa, meu senhor, daquela banda.
– E por que me toma assim, menina, o insensato júbilo?
– É a manhã de domingo, meu senhor, que parece que não passa.
– Mas passa, minha menina?
– Tudo passa, meu senhor, até eu de ser menina e o senhor de ser senhor.
– E que estranha menina é esta?
– É a alegria, meu senhor.
CARTA CHEGADA DA FIGUEIRA DA FOZ – um turismo
ib.
Quando eu era menino, a praia da Figueira da Foz parecia-me a maior coisa de que o mundo era capaz. Ainda sinto isso, embora o não pense. Gostaria de pensá-lo, mas não posso. Não posso porque a minha Mãe envelheceu como uma flor de varanda a que o raro sol não mais que uma hora acode – e não todos os dias. Muito octogenária e quase cega, está sentada na viuvez. Tem o coração desconcertado pela evidência e pela iminência da chegada da partida. Foi ela quem me deu os verões na praia. Escrevo para que a minha noite portátil lhe traga algum repouso. Faço tudo o que é humanamente possível para anoitecer sem que ela o saiba. A gente teve verões – e perdê-los é o nosso mais recorrente modo de vida. É-me lícito supor que vos sucede o mesmo? É-me lícito, sim. Depois, num antes que se volveu o maior futuro de que o mundo é capaz, fizemos filhos e filhas. Não podemos deixar de plantar na praia essas flores, onde o sol nunca é raro – e, então, poderemos deixá-los lá para sempre e virmos sentar-nos aqui, à espera que eles nos escrevam de coração desconcertado pela grandeza do mundo, da praia, das chegadas e das partidas.
HOMEM QUE VALE A PENA VIR VER A VISEU – outro turismo
É domingo, acabou a manhã. Fomos cedo às compras, temos amigos para almoçar. É um dia bom. Ela ficou em casa a arrumar o resto da manhã. Eu saí para ir buscar palavras que estavam cá dentro, à espera. Encontrei-as, voltei para casa, estou sentado a revivê-las. Antes de tudo, dei de comer às pombas no Rossio da cidade. Fiz isso. Esmigalhei pão, atirei-o. Depois, fiz o número de circo pobre: abri ambas as mãos, a que escreve e a que lê: elas treparam-me as mãos, comeram dando bicadas nas palmas. Uma mulher fotografou o conjunto: não conheço a mulher, ela ficou-me com a imagem de cruzeta de pombas. De dador de pão, como meu Pai foi. Deixo-vo-las aqui, vãs migalhas, num rossio de luz. Deixai-me apenas esclarecer que a etimologia nos obriga a recordar uma onomástica figurativa: do grego, o nome Crisóstomo. Significa, à letra, O da Boca de Ouro. Ou seja, O Que Fala Bem. Não é o meu caso.
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NÃO MAIS CRISÓSTOMOS
Viseu, fim da manhã de 13 de Abril de 2008
Abandona-nos por vezes a conversa as bocas,
essas borbotadoras de couro.
Não mais somos os crisóstomos, as bocas de ouro.
Somos agora o calado couro das caladas bocas.
COMO O COMBOIO
ibidem
Como o comboio faz que passem as coisas quietas,
escrevo.
À PASSAGEM DA BANDA DA MANHÃ
Viseu, manhã de 13 de Abril de 2008
– Que estranha alegria é esta que me finca o coração com pés de pomba?
– É a filarmónica que passa, meu senhor, daquela banda.
– E por que me toma assim, menina, o insensato júbilo?
– É a manhã de domingo, meu senhor, que parece que não passa.
– Mas passa, minha menina?
– Tudo passa, meu senhor, até eu de ser menina e o senhor de ser senhor.
– E que estranha menina é esta?
– É a alegria, meu senhor.
CARTA CHEGADA DA FIGUEIRA DA FOZ – um turismo
ib.
Quando eu era menino, a praia da Figueira da Foz parecia-me a maior coisa de que o mundo era capaz. Ainda sinto isso, embora o não pense. Gostaria de pensá-lo, mas não posso. Não posso porque a minha Mãe envelheceu como uma flor de varanda a que o raro sol não mais que uma hora acode – e não todos os dias. Muito octogenária e quase cega, está sentada na viuvez. Tem o coração desconcertado pela evidência e pela iminência da chegada da partida. Foi ela quem me deu os verões na praia. Escrevo para que a minha noite portátil lhe traga algum repouso. Faço tudo o que é humanamente possível para anoitecer sem que ela o saiba. A gente teve verões – e perdê-los é o nosso mais recorrente modo de vida. É-me lícito supor que vos sucede o mesmo? É-me lícito, sim. Depois, num antes que se volveu o maior futuro de que o mundo é capaz, fizemos filhos e filhas. Não podemos deixar de plantar na praia essas flores, onde o sol nunca é raro – e, então, poderemos deixá-los lá para sempre e virmos sentar-nos aqui, à espera que eles nos escrevam de coração desconcertado pela grandeza do mundo, da praia, das chegadas e das partidas.
HOMEM QUE VALE A PENA VIR VER A VISEU – outro turismo
(com oportunas e eruditas referências a Ruy Belo)
Viseu, tarde de 12 de Abril de 2008
Vi na cidade um homem entristecido de pobreza: uma espécie de cão erecto, já imune quase à chuva da tarde, à chuva que pela tarde desfia já a noite. Jaqueta de ganga de bazar humanitário, rota calça de bombazina dada. Sapatos cambos, rombos, ósseos, inchados: barcas de andar. Mas de mãos tão bonitas, o sacana do homem, de mãos tão bonitas. Foi na esquina da Homem Ribeiro com a António José de Almeida. Aí o vi – e aí me senti, eu também, portador de ganga, bombazina, sapatos e mãos – mas não tão bonitas as minhas, que cega uma delas por canhota e outra por redactora de pobres.
Vi na cidade de dentro o quão fora pode o olhar de um homem ser. Ser de asilo, gangazina, o cambado olhar. Foi ele alguma vez o bebé de alguém? Amou alguém a alguém para que ele fosse – e viesse? Eu não sei. Isto é um sábado, a tarde queima seu gás frio, abril demora a arrancar a propulsão da primavera, as fontes expectoram pó de água – e este homem ali, por aqui, por aí, ao deus-não-dará.
Vingo na cidade o meu voluntário destino de colector. In urbe homine sum qui hominis lego. Não sei se ainda declino bem. Não tem importância: se não for bom latim, parece latim. Também a poesia parece a vida e não a é. Ele é homem e parece-o. É pobre, ele, e entristece-me, a mim: que se foda o latim.
Ele passou. Correrá agora, pássaro moreno, escuras ruas. A minha possibilidade é fazer dele linhas escritas. Nada sei dele. Mas dá-me ideia que vós, leitores/legedores/colectores, tudo pareceis, dele, saber – in urbe.
Toquei as palavras de novo, de novo olhando uma fonte – olhando um homem. Sei que vai ser da fonte, não sei que vai ser dele. Eu não entro nisto. Eu vejo. Ninguém, no futuro, nos perdoará não termos sabido ver, esse verbo que tão importante era para os gregos. Isto é Ruy Belo, tanto em Viseu-doze-de-abril-de-dois-mil-e-oito como no Monte-Abraão-dezoito-de-abril-de-mil-novecentos-e-setenta-e-oito, a menos de quatro meses de morrer em Queluz-oito-de-agosto-de-mil-novecentos-e-setenta-e-oito. Toquei (troquei) as palavras do homem de palavra(s). Eu não digo que o vero homem de Viseu seja o poeta. Eu não digo isso. Eu realmente
Eu realmente – são as duas palavras finais (mas iniciais sempre, nele) com que Ruy Belo remata (e ele lia jornais desportivos) a Pequena História Trágico-Terrestre (in País Possível). O prefácio desse livro, assinou-o ele em Madrid a 1 de Maio de 1973. Faltavam-lhe sete dias, três meses e cinco anos de vida. Sete, três, cinco: que são os números? A gente não sabe. A gente não sabe quando vai morrer. Vale por isso a vida: não saber números. Deixar que eles saibam por nós. Nós realmente
Na cidade-nos, vi-nos homens-nos.
ROXO LUXO DA TRISTEZA
fado-marcha
Viseu, tarde de 12 e manhã de 13 de Abril de 2008
1
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
2
Dos meses vou apanhando
da cor da cinza os frutos
são-me os olhos devolutos
os anos mos vão fechando.
3
Coisas que eu não sei de cor
nunca as pude aprender
mas vou dar o meu melhor
que pior não pode ser.
4
Ao sol frio eu sou lunar
muito ardo eu à chuva
a tristeza é uma luva
que eu gosto de calçar.
5
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
6
Os rios da nossa terra
são veias que Deus abriu
meus irmãos lhes fazem guerra
muita morte os recobriu.
7
Eu de noite já não sonho
mas passo os dias assim
olhos que na cara ponho
cegas rosas de jardim.
8
Quem dera eu fosse dado
a subtilezas mais finas
braço dado a meninas
a compasso marcha-e-fado.
9
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
10
Uso dentes emprestados
para o fruto proibido
sou de mãe um malparido
marcho marchas canto fados.
11
Rufo nervos bufo amigos
triste sou profissional
que eu nasci em Portugal
dos castelos dos postigos.
12
Do Américo Thomaz
do Caetano do Marcelo
joio do trigo amarelo
maçã podre do cabaz.
13
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
14
São mil anjos bem contados
que a cavalo na luz
trazem novas dos soldados
matadores do bom Jesus.
15
São soldadinhos de palha
da guerra colonial
baionetas da navalha
afiada em Portugal.
16
Muita gente nos cafés
ardendo a televisão
muitas mãos e muitos pés
mas nem um só coração.
17
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
Viseu, tarde de 12 de Abril de 2008
Vi na cidade um homem entristecido de pobreza: uma espécie de cão erecto, já imune quase à chuva da tarde, à chuva que pela tarde desfia já a noite. Jaqueta de ganga de bazar humanitário, rota calça de bombazina dada. Sapatos cambos, rombos, ósseos, inchados: barcas de andar. Mas de mãos tão bonitas, o sacana do homem, de mãos tão bonitas. Foi na esquina da Homem Ribeiro com a António José de Almeida. Aí o vi – e aí me senti, eu também, portador de ganga, bombazina, sapatos e mãos – mas não tão bonitas as minhas, que cega uma delas por canhota e outra por redactora de pobres.
Vi na cidade de dentro o quão fora pode o olhar de um homem ser. Ser de asilo, gangazina, o cambado olhar. Foi ele alguma vez o bebé de alguém? Amou alguém a alguém para que ele fosse – e viesse? Eu não sei. Isto é um sábado, a tarde queima seu gás frio, abril demora a arrancar a propulsão da primavera, as fontes expectoram pó de água – e este homem ali, por aqui, por aí, ao deus-não-dará.
Vingo na cidade o meu voluntário destino de colector. In urbe homine sum qui hominis lego. Não sei se ainda declino bem. Não tem importância: se não for bom latim, parece latim. Também a poesia parece a vida e não a é. Ele é homem e parece-o. É pobre, ele, e entristece-me, a mim: que se foda o latim.
Ele passou. Correrá agora, pássaro moreno, escuras ruas. A minha possibilidade é fazer dele linhas escritas. Nada sei dele. Mas dá-me ideia que vós, leitores/legedores/colectores, tudo pareceis, dele, saber – in urbe.
Toquei as palavras de novo, de novo olhando uma fonte – olhando um homem. Sei que vai ser da fonte, não sei que vai ser dele. Eu não entro nisto. Eu vejo. Ninguém, no futuro, nos perdoará não termos sabido ver, esse verbo que tão importante era para os gregos. Isto é Ruy Belo, tanto em Viseu-doze-de-abril-de-dois-mil-e-oito como no Monte-Abraão-dezoito-de-abril-de-mil-novecentos-e-setenta-e-oito, a menos de quatro meses de morrer em Queluz-oito-de-agosto-de-mil-novecentos-e-setenta-e-oito. Toquei (troquei) as palavras do homem de palavra(s). Eu não digo que o vero homem de Viseu seja o poeta. Eu não digo isso. Eu realmente
Eu realmente – são as duas palavras finais (mas iniciais sempre, nele) com que Ruy Belo remata (e ele lia jornais desportivos) a Pequena História Trágico-Terrestre (in País Possível). O prefácio desse livro, assinou-o ele em Madrid a 1 de Maio de 1973. Faltavam-lhe sete dias, três meses e cinco anos de vida. Sete, três, cinco: que são os números? A gente não sabe. A gente não sabe quando vai morrer. Vale por isso a vida: não saber números. Deixar que eles saibam por nós. Nós realmente
Na cidade-nos, vi-nos homens-nos.
ROXO LUXO DA TRISTEZA
fado-marcha
Viseu, tarde de 12 e manhã de 13 de Abril de 2008
1
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
2
Dos meses vou apanhando
da cor da cinza os frutos
são-me os olhos devolutos
os anos mos vão fechando.
3
Coisas que eu não sei de cor
nunca as pude aprender
mas vou dar o meu melhor
que pior não pode ser.
4
Ao sol frio eu sou lunar
muito ardo eu à chuva
a tristeza é uma luva
que eu gosto de calçar.
5
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
6
Os rios da nossa terra
são veias que Deus abriu
meus irmãos lhes fazem guerra
muita morte os recobriu.
7
Eu de noite já não sonho
mas passo os dias assim
olhos que na cara ponho
cegas rosas de jardim.
8
Quem dera eu fosse dado
a subtilezas mais finas
braço dado a meninas
a compasso marcha-e-fado.
9
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
10
Uso dentes emprestados
para o fruto proibido
sou de mãe um malparido
marcho marchas canto fados.
11
Rufo nervos bufo amigos
triste sou profissional
que eu nasci em Portugal
dos castelos dos postigos.
12
Do Américo Thomaz
do Caetano do Marcelo
joio do trigo amarelo
maçã podre do cabaz.
13
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
14
São mil anjos bem contados
que a cavalo na luz
trazem novas dos soldados
matadores do bom Jesus.
15
São soldadinhos de palha
da guerra colonial
baionetas da navalha
afiada em Portugal.
16
Muita gente nos cafés
ardendo a televisão
muitas mãos e muitos pés
mas nem um só coração.
17
Roxo luxo da tristeza
vela os meus dias vãos
sei de cor por natureza
que os homens são meus irmãos.
1 comentário:
Pelo "à passagem da banda da manhã", valeu a pena passar por aqui, ao fimd a tarde.
Abraço,
Manuel
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