22/04/2008

CARTA A ISABEL LACEDEMÓNIA ASTRA DE ARAGÃO, UM DOMINGO


Viseu, tarde de 20 de Abril de 2008
(fotografia de 19 idem)

Estou fechado, Senhora, dentro do século XXI, não era este o que queria. De quantos passados é feito um único futuro que seja veramente único? Um homem habita-me – estranho animal corredor de ventos, devassador do corpo interior do meu corpo. Se, Senhora, vos escrevo, mais não é que por causa disto – o eterno domingo inclinador de árvores. Recentemente, inauguraram por aqui um centro comercial gigantesco. Rebanhos domésticos, uns dos outros clonados, hordam pelas galerias da megavantesma. As crianças salivam perante electrónicas pueris. Raparigotas e rapazelhos esvaziam a língua portuguesa (a mais estrangeira língua deste país irremediável) de boquinhas-de-cu-de-frango coladas aos tele-imóveis. Autarcocós de outras bandas vêm cuscar o progresso daqui. Estou fechado dentro deste século, Isabel, Senhora. Serei uma espécie de periquito armado ao lírico entalado numa gaiola secular sem culpa nem inocência. Tornei-me um desses homens cuja solidão escurece os domingos pelas margens do rio, pelos parques desertados de crianças, pelas praças que os pombos fervilham de vida alimentar. Estou sentado no meu coração – e tenho de aceitar o meu segundo e último século. Isabel, Senhora, que quer da vida aquele homenzinho ali que raspa a raspadinha com a colher da bica? Que pensa aquela velhota ali de ricaça toilette cuja ida ao cabeleireiro lhe resultou numa granada de laca? Que penso eu? Que quero eu? Passo a enumerar: quero os meus olhos habitados pela água do mar, ’inda que seja preciso chorar; penso que as grandes alegrias, como os grandes vinhos, são para ter com os outros. Sim. É isto. É isto sim, Astra de Aragão, demónia Lacedemónia do meu coração. Também é o desejo vão de não amargurar-me por ninharias. Mas este pobríssimo homem que pela cidade teleporta o azul tristíssimo dos olhos, este pobríssimo homem esmigalha-me o coração em miríades vítreas, em irremediáveis estilhaços de joalharia. A tristeza deste homem é tão formosa quanto a vida: quanto, digo-vos, Senhora, a da tristeza da vida. Estes homens traspassam os séculos. Estes homens azulíneos e pobríssimos são toda a humanidade. Sinto-os como peixes de liceu no frasco de éter da miséria. Eu vou ser um deles: serei formoso, ao menos – e azul será o meu olhar castanho. (Não o podeis ver, Isabel, mas entre linhas reclinei para trás o corpo, quis ver e só vi palavras. Escusar-me-eis tanta cegueira, que aqui e ali pode ser formosa, ela também, esta carta.) E vós sereis todas as mulheres – posto que nenhuma; e, como todas, formosa. O raça do homem mandou vir outra raspadinha, teve a mesma sorte da primeira – como acontece aos mais promissores casamentos. Agora reparo que a velha lacada jasminou de bâton as beiçoletas engelhadíssimas. Deve ser católica não muito praticante: com tanta idade e tantas tintas, deve, Isabel. Vós, Senhora, não: nem católica nem de idade alguma senão da minha. Sereis, talvez, Senhora, Isabel, o tal homem meu habitante, andrógino ser sustentado a proposições vocativas e a empadas de galinha. É domingo: é tão domingo, Isabel. Pelas ruas passa o Tempo a si mesmo seus desertos, sua longa lei inexorável, seu ganho de perdições, seus romances de ninguém. Pelo chão cuspido da gare rodoviária, rosas escarlatam o vento motriz. Churrasqueiras carbonizam aves indefesas. Dobra por nós o domingo seus sinos, suas mínimas mortes decretadas a carrilhão. Sabe-nos a boca a bronze, a ar frio, a pombas e a pão. Cheguei aqui oriundo de uma ginástica de velhos, um deles até já morreu e não pode, derivadòfacto, ser responsabilizado. Tantas possibilidades numa, Senhora, carta: tantas mais que as da vida, Isabel. Jactanciosa fonte de água pulverizadora. Uma terceira raspadinha. E uma empada de galinha. E o tempo domingando as ruas, defecando cinza, falando no vento húmido. Não este é o vosso, Senhora, século. Vestis-vos com a minha alma e tendes frio: clorofílico pranto de salgueiros inêsdecastrais às águas do tal rio de tais, este, homens pontuados a solitário negro: corredores animais do vento: frio tendes: escurecedora, Vós também, de domingos. Passa um casal antigo ao olhar. Vejo-os, Isabel, demandando o cristal: umas palavras preparando o chá, a tosta mal de manteiga molhada, os suspiros involuntários do fôlego do coração, a roupa muito lavada, a passagem deles: o passamento. Habitamos óbitos, não obituamos hábitos: os casais sábiantigos que não se arrebanham na visita dominical (olhai a rima) à nova megavantesma comercial. Tudo o que quero da minha epistolografia, Aragão, é uma produção de clarões. Passo a enumerar: a suspensão de veado, cavalo e D. Fuas Roupinho à beirabismo do Sítio da Nazaré; a borracha vulcanizada do sorriso da velha granadeada a laca; o par-de-mamas da brasileira-de-Avintes cujas cascas vaginais dariam para três marisqueiras ou mais; o azulejo embaciado do domingo; a morenidão da catedral; uma raspadinha sorteada de que vós fôsseis o prémio; uma carta contente. Aproxima-se o amor de um homem como um pronto-socorro do acidente mortal. Versos tombam à mesa desse homem: anteontem de mármore; ontem de madeira; hoje de vidro quebrável como o coração. Vai chover, Isabel. Sinto-o nas pedras. Conheço este rumor: é o sangue do Tempo: chama-se água. Meia-dúzia de moedas nos bastariam para um bife mal passado como todos os passados – e os futuros todos. Numa estalagem de mala-posta, uma perna de carneiro, uma pratada de ervilhas, uma posta de bacalhau, uma pratada de grão-de-bico, um elixir tinto e marrão. E o nosso amor subido ao quarto do primeiro andar, como agora nos motéis que americanizam os coitos, a imitação do amor. Nomear-vos bastou a quanto domingar me queria, ó Astra, uma carta escrevendo. Há futebol na televisão mais logo, os maridos mais discretos velarão do sofá seus clubes, também só lhes faltarão, a meias com as mulheres, vinte anos de prestações ao banco, os filhos e as filhas já exigem tele-imóveis, ipods e não-podes, o diabo. Estes abris de agora é que não já, Isabel, são o que antes me foram – quando nem cartas escrevia nem a isabéis me dirigia. Tenho uma enciclopédia britânica em casa, é uma data de volumes para tantas tão voluminosas datas, às vezes abro o XIV ou o VII e digo-me: – Mas foda-se mas foda-se o quèqueu fiz da minha vida? Fiz cartas. Esta é uma delas. Preparo uma também para o senhor Rui de Moura Belo, que pôs y no próprio mas foi belo. S’eu ainda fosse angariador de seguros, poderia incomodar mais pessoas ao domingo sem ser com poesia. Nos planos de poupança-reforma, por exemplo, o segurado nunca deve entregar à seguradora mais do que o abatível anual para IRS, mas vós, Isabel Lacedemónia, móniamóniademónia, nem necessidade nem cessação nem idade tereis de saber, para quê.
Despeço-me na certeza, aliás prévia, da V. melhor atenção para os actos, que nenhuns factos, expostos. Com amor, apesar do século corrente, corredor.

D.

1 comentário:

ao saber dos dias disse...

Boa epístola a uma princesa. Diferente.

Canzoada Assaltante