28/04/2008
O VENTO SEMPRE ME EXALTOU ALGUÉM seguido de NARRAÇÃO DAS VELAS
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TÁBUA
I. O VENTO SEMPRE ME EXALTOU ALGUÉM
Viseu, Café Mundial, tarde de 21 de Abril de 2008
II. NARRAÇÃO DAS VELAS
Viseu, tarde de 22 de Abril de 2008
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I. O VENTO SEMPRE ME EXALTOU ALGUÉM
Viseu, Café Mundial, tarde de 21 de Abril de 2008
I
O vento sempre me exaltou como por assim dizer um amor.
Mas os ventos e os amores não partilham sequer isso, pois podem os ventos ser, e são, plurais, o amor não.
O café do meu vizinho é de mesas de mármore.
Sento-me aqui a descansar o corpo e a cansar a poesia, chego cedo no dia, volto tarde do trabalho na noite, conversamos o meu vizinho e eu sobre coisas como o vento, sobre o amor não, naturalmente que não, ele tem cinquenta e tais, eu quarenta e picos, não é assunto para nós, já nos passou esse vento.
II
Se ainda amo algo ou alguém?
Sim, mas muito mais devagar do que antigamente.
Nem isso aliás tem qualquer importância.
Trazem isto talvez de bom os anos: a desimportância das coisas e dos alguéns, suas desvirtudes tão das nossas siamesas mais certas incertas certezas como as nossas concerteza.
III
Uma coisa simples para a vida quando a toma a noite, tão simples coisa, tão simples vida: um caldo, um cálido caldo pela ceia, um cálice de vinho, um casaco de lã para que o frio não morda e petrifique o corpo.
Não peço nem posso mais do que isto, avariou-se-me na boca um dente, está frio lá fora, um caldo basta à devida simplificação da vida.
IV
Como simples é cerrar os olhos ao diário outono do sono
e antes de adormecer ser alguém no inverno
o corpo porém entre uterinos cobertores de mãe
pronto para a viagem palavrosa em cerrado abandono.
Entre árvores homens penumbram áleas
mansões adensam o crepúsculo
aves muito brancas negrejam tílias
palpitam das tílias as folhas em fascículo.
Perto rumora um rio. Senti-o correr, plateia minha:
será já a água que corre nos sonhos?
Tristonhos não corram molhados bisonhos
tais sonhos de água chegada a noitinha.
Muito outonamos a vida. O mesmo ao sono fazemos jazendo.
O sono nos chegando a cegar não queira nos ele condenar.
Dormir sempre é um manso imitar
da arte da morte em parte chegando.
V
Já vi Lisboa já vi a vida
ávida idade vi já e vivi
agora quero chegar à despedida
devagar da vida qu’inda não parti.
VI
Não é já o medo
nunca foi
o medo de viver não é já o mais vivo medo
o morrer também não
que me lembre
nunca foi.
É o medo de ter sido sem ter sido
o de morrer sem ter vivido.
VII
Uma póvoa de modos me povoa
eu já vi a vida vi já Lisboa.
Sou um homem de certo destino,
que palavra é (Steinbeck) da escolha feita.
Sou o que em Viseu, à Rua Direita,
olhos olha nos olhos, a chuva a pino.
Futuros defuntos contemporâneos
alinham p’las ruas a vida igual
à de iguais vivos coetâneos
de norte a sul, em Portugal.
VIII
Mais curta é a eternidade
quão mor a idade
e esta daquela não espera
verão outono inverno primavera.
II. NARRAÇÃO DAS VELAS
Viseu, tarde de 22 de Abril de 2008
Não por mais do que nós remotos e mortos deuses
é jogado o que somos, mas por nós. Nós uns
contra nós outros, assim é. Somos
da viva pedra a morta sombra,
passageiros de cada eterna cidade, pois
a cidade fica, de nós se nutre e permanece,
não nós.
Pactuamos com a vida dela conferindo a tristeza.
O pão e o vinho na mesa, na rua sobramos
de alguma luz, cantoneiros do nosso mesmo
ambulante pó.
Quando o sol a uma casa amarelece de particular outono,
ou a outra azula a fachada de azulejos portugueses,
não nos é impossível sentir a beleza e a idade
sem temerosa efemeridade,
pois que belo é, por igual, o olhar
que belas vê ainda coisas em Portugal.
Quem diz aqui, como dirá em outros sítios?
Sabê-lo-emos nunca, que só nós somos
nos que nascemos onde morremos.
E das claras crianças penaremos se tornem como nós
em uma breve idade cuja brevidade
as roubará de si mesmas para sempre
até hoje.
Ainda hoje
estivemos entre nós e nos não vimos.
De um voo de pássaro cidades e aldeias
não vemos, também não.
Cegamos em quartos onde o linho alinha tranças de
desalinhadas avós, em salas povoadas
por retratos mais do que nós vivos, menos do que nós
remotos –e mais que nós deuses.
Vale-nos que entristecemos de mais puro modo
no sono, quando o outono
primacial da vida refloresta a ambulatória ramalhação do
dia,
sendo
noite
em nosso bosque.
Uma volta pela cidade ser-nos-á interior sempre,
jogadores que por dentro jogam,
astrónomos que só dentro a astros e estros buscam,
cançonetistas mudos na ruidosa antemão de comboios,
vedores do já-visto, do vivido-já.
Não mais do que nós podem os deuses o outono.
Civil é o paradoxo do nosso militar coração não
militante. A jusante como a montante, um
rio estivemos todos para ser – e margem fomos
de único lado. Aprendemos muitos, papagaios
de funerais, a repetir que a vida é pouca
e muita a morte, dois dias ela e o carnaval três,
de verd’ouradas penas papagueamos
a inconsútil certeza útil da rotina vital, da mortal
latrina a que, nos mortais restos, somos despejados
em boa paz de quem despeja
e não beija já, como despebeijámos,
a memória do nosso corpo, a trança
da nossa avó, a inclinação pueril de retratados.
Oscilam as praças e as ruas à cotação da chuva,
petrificam pombas pórticos e amuradas:
que tudo ande e nada se mova,
primaciais berços são finais ermidas.
Doura-nos a noite já de precifrontispícios.
Algoza-nos o morto da vida mais querido.
Se é ter nascido ter já fenecido,
olhos de fronte são frente de frontiprecipícios.
Uma palavra mais, poucos mesm’assim seremos
na pista do sal, sumidores de concentrado de tomate,
de peixe afiletado em lata, de crepusculares copinhos
demandadores do perdão de tão vivos ’inda sermos.
Uma palavra menos na circulação pedestre e podógrafa
entre automóveis e candeeiros, sonhando o cesário gás
das ruas e os cavalos eléctricos de um século mudado
em este, vejamos as diferenças nas palavras cruzadas.
É triste nunca abandonar a mãe, nem a casa da mãe,
nem os pessegueiros onde a chuva foi frondosa e quis à luz
fôssemos como ela e, como ela, magros e nus.
Também é triste ser português entre portugueses,
ouvi-los gritar como ventos e lobos e almas nas encruzilhadas
a Deus pedidas ao Diabo dadas. Sermos pátrios
quadrilátera-nos irremediavelmente – e no entanto
isso queremos fomos seremos somos. Não serenos.
Funda, funda é a condição do mal presidente ao bem passado.
Dançam os pobres nas datas festivas da pobreza.
Roubam das capelas o folh’ouro dos lateraltares,
mas nada impede o bem preso e passado ao mal presente.
Chuvas finíssimas expectoram cinzas nos aléns.
A meio termo, febris chaminés fumam a falência.
Não podemos não pudemos fazer nada, paciência:
sóis jubilarão datas por dois vinténs.
Não: deuses nenhuns – nem nós.
Possa o comércio manter vivas as ruas por que
um homem passe, convosco e sem mim, a caminho do fim
de todo o princípio que foi passar e ser com contra vós.
Eu também não podia não tinha já força
para ir resgatar-te à tua meninez
há coisas que ser não podem nem que se torça
no que será o que não é não vai ser outra vez.
Se eu pudesse iria à sombra de ínsuas
que tudo verd’ouram de águas chãs as meninices
buscar-te e, de arte, dar-te, de mágoas novas, suas
aligeiradas amnésias e criancices.
Não posso. Não é que tenha mais que fazer, não tenho.
Não tenho, aliás to digo. Recebo das fachadas a cor
que cinza é, me sobrepassa e subtenho
d’ambulações qual cada delas a menor.
Vale ser-nos o ouro a condição, embora breve.
Granitos marmorizam o memorizado.
O tom do fado deve ser leve, não pesado.
Não pesado o metal-ouro, mas leve.
Esse amor que só na pedra vinga.
Pinga a chuva corda a corda cordato amor.
Não seja a final data um estremor
mas algo que brev’embora ’inda seja.
Dos passos roxos de nossos pais sigamos
a praia efémera ao vento corrida.
Branquejam velas à despedida:
vida nos siga na que vivamos.
Um tempo na nossa cara nos não deslustre
há dias maus há dias meus há nossos dias vossos
é ser triste a condição lacustre
de quem sobr’águas sobrevive ossos.
Não passa longe da catedral
ave qu’eu não sustente a pão
negócio nisto é natural
migalha de carrilhão.
Sou naturalmente sou homem da praça
taça erguera se a tivera
a quem me dera mesmo por graça
um pouco ficar no tudo que passa.
Li há pouco tempo páginas de há muito
tempo escritas agora lidas agora passadas também
escritura e leitura e assim é a poesia minha Mãe.
Já não vou atrás dos gambozinos nem dos eléctricos
que pelo Palácio da Justiça guinavam amarelos.
Não meu é já esse corpo corredor alheio a promissórias.
Não meu sou já eu nem com molho à espanhola.
Meus são os crepúsculos aceites como azeites
mênstruos, astros dolorosodoceados de sangruras.
Aqui dentròlado a repartição das amarguras.
Para mijar, siga os enfeites.
Jogamos isto: uns, palavras; outros, outros ventos.
Todos temos momentos: mas sempre jogamos.
Nem todos velamos. Nem todos narramos.
Eu narro:
Era no tempo em que edulcorava conservante
o flúor do sol no mont’ocidente – e cabras
alegravam a castanho-negro a costa de espargos
e ouriços. Era, direi, 1968, vá lá.
Tudo era então maior do que o Tempo.
Devo ter visto velas, qu’inda hoje me lembro delas.
Dobrava o sino uma vida que depoisagora nem metade.
Mas nisto estou eu já hoje à vontade,
que me não sobra sequer metade do qu’inda dobra.
Era no tempo da senhora Teresa, suas filhas e galinhas.
Perdi uma vez vinte escudos a caminho de lhe comprar ovos.
Voltei atrás e reencontrei esse sant’antónio de vintes.
Milagre foi, primeira vez e derradeira, reencontrar o perdido.
Por uma dúzia de ovos.
Palavra da narração.
Palavra do Senhor.
Esta foi a narração das velas.
Outras se seguirão, antes
dadas à luz bruxuleada de um espírito que mais não quer
que homem devagar ser com palavras formosas e belas
e bonitas e tristes.
E bonitas e tristes e redactoras de um tempo nov’elho.
Há quantos anos quanta gente anda marchando velas?
Inês e Pedro entre elas, Coimbr’Alcobaça, 1361-67,
dois de abril vinte e cinco de janeiro.
Eu vejo vivo daqui grisas cinzas casas e aragens
e mais não posso dar que só tenho de meu imagens.
Não voltarei porém a velhos hábitos só a óbitos
morrer pode ser uma forma de viver mas por escrito
parece ficar o não-vivido nem não-dito por vividito.
Esta foi é e será a narração das velas.
Em podendo, quem puder seja como ela e elas.
ADENDA I – DESNECESSÁRIA ALIÁS – À NARRAÇÃO DAS VELAS
Imenso é o tempo que penso que não penso
ser necessário à adenda de poemas que nada adendam.
Imenso é o campo de laranjeiras como um mar
de ouro coruscado nos além-rios da água do olhar.
Imensa é a Língua Portuguesa, que tudo permite,
menos que lhe ensinem ortografia.
Nem filhacatedráticosdoutoputas.
Afirmativo. Escutas?
Os poemas portugueses do século XXI têm de querer
ser como os de XVI, os de XVIII, os de XX.
Os poemas portugueses do século XXI têm de querer.
Os poemas portugueses do século XXI têm de querer
ser portugueses.
Não têm de obedecer ao lobbyjudeupretobranco.
Não têm de ter conta no banco.
Os poemas portugueses do século XXI têm só
de ser poemas.
Têm, só, de aumentar a vida.
Como dantes será vivida.
E lida.
E o rubi carmim dos teus lábios
a teus dentes perlados encastoado
e os seios farfalhando lácteos outonos.
É mais por aqui
digo eu
que nada sei
mas sei
algumas coisas.
ADENDA II – DESNECESSÁRIA ALIÁS – À NARRAÇÃO DAS VELAS
O tempo pode trazer chuva
a chuva pode trazer tempo
imune estou já a quanto
há tanto me chove.
Não me chove há tanto já
o cheiro puríssimo da mercearia fascista
a que a bacalhau condenava
o tempo de comer a quem trabalhava.
Escusado dar por recusado o tempo
dos blogs das clicadiagonais leituras.
A merda era e é e vai ser: um momento.
As pessoas dão-se a ser oxiúras.
Quem lembra Antero (também nem tanto)?
Mas o Pessanha, quem lembra, quem?
Há ele Miranda e Sá e só portanto?
Quem lembra nomes a pai e mãi?
Mãe era antes assim escrita.
Hoje, por acordo comercial,
querem que a filha-da-pita
seja da puta, afinal.
E o rubi carmim dos teus lábios
a teus dentes perlados encastoado
e os seios farfalhando lácteos outonos.
O tempo pode trazer chuva.
ADENDA III – DESNECESSÁRIA ALIÁS – À NARRAÇÃO DAS VELAS
Os nossos deuses exercem mais sobre o preço do gasóleo.
Quem nos dera exercessem o preço da chuva.
Quem nos dera não vender a alma em livros
que aliás ninguém compra: quem dera os deuses das velas
não terem inventado nem o download
nem a puta damérica.
Os nossos homens exageram os deuses.
Moro bem ao pé de sucessivas catedrais.
Rezam uns de unos outros de corsas.
Mercedes também mas os opéis são bem mais.
É o geral reino da estupidez.
Acreditam em Deus mas bem mais do que os demais.
Aparece a de Deus mãe ’ma senhora vez.
Em maio abris não abres mais.
É o treino do poliglidiota.
É o toyno do carreirimigrante.
É o pobre do Camões: qu’é que foi isso no olho
do cu?
Sou eu e és tu.
É o país das velas minha confissão.
É o país das velas em auto’xcomunhão.
Morreu o cónego Melo, mas há quem leia Ruy Belo?
Morreu o País em não extrem’unção.
Cristo também já morreu há bués da taime
– e nada com isto teria ele, Cristo, a ver com mais nada.
Remotos os deuses, remortos pela calada,
ó meu Senhor Cristo, descei e calai-me.
AGORA UM PORMENOR – UM AZULEJO DA AVÓ QUE NÃO DEIXOU TRANÇA
A face dela morrendo-se viva
e dele o tempo morrendo também
a face do pai a avó sobreviva
e o caldo de lumes lareira de mãe.
A infância dele que eu nunca tive
mas teve quem vive de seu pai também
já da mãe do pai nenhuma e do pai e da mãe
não vive mas vive mas não vive mas vive.
Princípio do séc’lo. ’inda mal a República
tem pernas a andar coisas a fazer.
Eu de minh’avó não sei mata púbica.
Sei só qu’ela andava coitada a ter
filhos do meu avô, condutor de carros
eléctricos do séc’lo mal iniciado.
Na rua tossiam vermelhos escarros
os tísicos menores do menor luso fado.
1880, ele. Ela, não sei. Talvez pouco depois
ela fora nascida p’ra nascer de novo outra vez.
Teve um filho e mais dois
mais cinco e depois uma mais novinha
que morreu no berço, coitadinha.
Depois era uma vez um homem uma voz
não por mais do que nós antes depois.
Nenhum deus.
Tantos deuses e nenhum deus.
Tenho de fazer coisas antes de desaparecer para ser.
O meu avô fez uma casa e filhos.
A minha avó fez filhos e uma casa.
Tudo é tão diferente na ordem sintáctica.
Tudo é tantos deuses na nossa casa.
Tudo é tanto perder tanto ganhar
se souberes escrever.
Escrever poesia é mandar cartas aos mortos.
Os mortos não sabem ler.
Os vivos fazem-se de mortos.
Mas – e os frios?
Mas – e a lenta combustão?
Nenhuns deuses, nenhuns rios.
Nenhuma perdissalvação.
Eu fui a um monte, fazia frio.
Cheirava a espargos, meu breve tempo.
Era a minha vida, era um momento.
Momento-monte, fazia frio.
Depois quero deitar-me.
Tenho vida já, já vida palavras.
Eu era um menino de palavras.
Vi meninos deitados na permilagem, quis saber.
Quando eu era menino, os meninos morriam de permilagem.
Vi-os deitados em caixas brancas, as asas encolhidas.
Tive de aprender a escrever para continuar a vê-los a velas.
Revoadas de crianças não ocorram à lembrança
que ocorrer é coisa não de tempo mas de criança.
Ninguém mais ocorrerá. É o tempo
de nenhum tempo, nenhuma mais alteração.
Também quero deitar-me.
Pode ser no monte
perto da casa da senhora Teresa.
Palavra do Senhor.
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2 comentários:
Talvez, talvez seja "enviar cartas aos mortos escrever poesia".
Tinho lido tudo, atentamente.
Abraço,
Manuel
o vento exaltado sobre as velas...
beijinhos, daniel.
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