Pelo entardenoitecer de ontem e pela manhã de hoje, devo ter feito um, digamos, breve livro de, digamos, poesia. São XXIV poemas, tantos quantas as horas de cada dia. E em duas partes, como as, de cada dia, diurna e nocturna. A ver.
(A fotografia chama-se Madrugada de 16 de Abril de 2008 na Rua Direita de Viseu.)
PRIMEIRA PARTE
PRIMEIRA PARTE
CIMENTO
Viseu e Caramulo, entardenoitecer de 15 de Abril de 2008
I
Acerca-se de nós não o silêncio mas o calamento
mudo cimento que a boca nos vem fechar
como a janelas e a pórticos de desactivadas igrejas
do desactivado deus afinal menor e não ubíquo
nem por luz nem por sombras ubíquo sequer divino.
Traz-nos a idade o outono amanhã
?que importa seja a meio de abril que escrevo?
não colherei a silvestre acidoce romã
não trincarei o pueril acidulado trevo.
Decaem-me os dentes como palavras por demais usadas
tenho ainda camisas que me juvenilificam vá lá
mas já no íntimo estojo o veludo dos órgãos
se me arrepanha me tolhe me faz pensar em
quando corria todo o dia e a noite toda dormia.
Arredo dos meus a sabedoria do que dói
digo-lhes só o que vai ser não o que foi
um homem é um rapaz velho desde menino
e mentir é o meu mais nobre mais poético destino.
Acerca-se de mim não o teu silêncio mas o meu calamento.
Quando for será. Começa aqui. Um momento.
II
Qualquer morte de qualquer criança
é naturalmente uma tragédia à escala mundial
é mundialmente uma tragédia à escala natural.
E no entanto é comédia é o que é
a criança que tivemos de morrer para ser
isto que somos hoje isto tragicamente nós.
III
Venero da paciente árvore a corpulência sentimental.
Não lhe conto os pássaros que os sabe ela de cor
deles salteada.
Honra-me que uma fonte qualquer fonte
cante dela o canto todo para qualquer gente
tanto a que passa e a não ouve
como a que a ouça sem ter de por ela passar.
Vingo-me da vida não dela toda de alguma só
tocando as vivas pedras dos sepulcros
cujas datas gravam o início não o fim.
A todas
veneração honra vingança
toda a vida
disse digo direi que sim.
IV
A noite condecorada de estrelas
abaula sobre nós dela o descomunal regaço
tudo menos maternal.
Tudo cristal.
Luas e sóis contaram os faraós.
Nenhuma estrela terá contado o povo deles.
V
Todos os dias todo o dia atendo o sol
que das minhas noites não quer saber.
À mão de uma criança calça como a ninguém
a luva da filosofia. A ela a solar filologia
já liga.
VI
Nem todos somos só alguns.
Entre nós quem haja de soltar aves por gestos
segui-los-á segui-las-á soltando.
E os que entre nós a sós connosco
conseguimos ser filhos dos nossos filhos
pais afinal da nossa vida
e nós dos mortos que nos amaram.
VII
Não digo que a humanidade mereça as nuvens
o que elas fazem floralmente ao crepúsculo.
Há coisas que não digo
só escrevo.
VIII
Um corpo precisa de outro para a felicidade
espasmódica do costume.
Assim é nas muitas civilizações
digamos culturas.
É a chamada cultura do corpo
hoje muito em voga nos ginásios.
Nos campos nem tanto
que a capela só fecha pela noitinha.
IX
O meu Pai não trabalhava como eu na rádio
mas dava-se a emissões
de que resultámos os filhos.
Todos temos televisões.
X
Sim ando ainda ando por aqui.
Aqui é a pátria a que o corpo deita capital
de sombra.
Conheço sim conheço cantos escurecidos
a que me acorre o corpo para ouvir
o povo falar em formosíssima inconsciência.
Somo aquis para que a futura ausência minha não
possa tanto.
Sim
somo aquis.
Sim
somos aqui.
XI
As pessoas que criaram a música
as pessoas que a tocaram
as pessoas que a escutaram.
Digo que todas estão vivas
não importa
importa-me lá
o século.
São muitas vozes muitas madeiras muitas salas muita gente.
É muita solidão conjunta.
Pensar nisso comove-me como receber o vento na praia.
O vento na praia quando é inverno também é música.
Os reposteiros vermelhos também são música no silêncio das salas.
Sinto que a música me apresenta pela mão
aos que a criaram aos que a tocaram aos que a escutaram.
Sinto que ela me dá o segredo único dessas pessoas tantas
dessa única pessoa multissecular de tantas salas tantas madeiras
tantas vozes.
XII
As casas
pobres jóias no estojo dos laranjais.
Como à distância as amo.
Declinam todas: todas as casas são casos.
Sintácticas, com cães à porta.
São faladas pelas mulheres, escritas
outrora pelos homens.
Abandonadas, são rostos arruinados e dignos
muito mor(g)adias, chamando ainda.
Sei porém que choram de noite, corridas
por gatos, ventos, teias, espelhos.
Mas nunca caem, nem choram, de joelhos.
XIII
Chega a doer-me a perfeição de um cedro.
O natal perpétuo dum cedro chega a doer-me.
Bule talvez no menin’ainda de um homem um cedro
não sei. Sei. Um resto de menino num rosto de homem
recebe do cedro o amor de que tenham sido objectos
e sejam sujeitos ainda homem e menino.
Não é má coisa de saber um fim de tarde
ou de vida.
SEGUNDA PARTE
MAIS CIMENTO
Viseu e S. Pedro do Sul, manhã de 16 de Abril de 2008
XIV
Explosivo e exclusivo o nascer do dia
não é fácil nascer de uma noite mal dormida
não traz a nova manhã o sono da consciência.
Sei no café muito cedo pela primeira chávena
que o velhote do meu prédio não quer dormir
na mesma cama onde lhe morreu a mulher
falta-lhe no tálamo o recordado contrapeso.
Tudo o que de um amor sobra com os anos dobra.
Perante duas chávenas duas mulheres falam
antecipam a chuva e o frio do novo dia
sempre me encantou das mulheres a meteorologia.
Em plena cidade um café de província
nada de literaturas quimeras utopias
uma chávena com café dentro e um homem fora a tv ligada
antes das nove tudo ligado a si mesmo todos os dias.
Uma simples chávena de café uma vida simples
por dentro é claro condessas e ilhas do tesouro
por fora polícias plúmbeos como pombas
e fontes que indiferentemente cantam na surdez.
Tenho a mulher cansada dormiu mal ela também.
Vejo-a cruzar os dias transatlanticamente
dá-lhe o cansaço à noite certas suaves doçuras
de manhã não é tão fácil mas ela vence
nunca vi uma mulher desistir em pleno mar-alto.
Tenho traçado o plano do dia
talvez alguns versos me ocorram
como a um corpo ocorre a chuva que lhe chove.
Com os anos
sabes
volveram-se-me os versos
por assim dizer novos olhos
novos olhos para o dia
novos olhos para a exclusiva tristeza e para a explosiva alegria.
XV
Um dia, vereis, será Verão
e de nossos idos marços não restarão
sequer ossos destroços cujos despojos
a ninguém acudirá lembrar nos dias lavados.
Eu já sei isso sei já que assim será.
Não evito o mínimo frémito de alegria
perante o perdão direi mesmo a redenção
do esquecimento.
Pois.
Não, nada restará destes trilhos
a não ser naturalmente os nossos filhos
eles que naturalmente são , vereis, o Verão.
XVI
São Pedro do Sul
são pedras ao sol
doce a água dos olhos marejados de sal
muito me move o fresco canoro caudal
gosto de ver passar as senhoras que passam
caminho dos legumes do leite do pão.
Quem me dera
São Pedro
não ser este sul que sou tão pouco são
não ser este homem mas
vamos lá
uma destas senhoras que compram
legumes leite pão
e nem olham as pedras que são
as pègadas de Pedro
inverno e verão.
XVII
Enviei ontem ao João
um disco dos Xutos & Pontapés.
Fi-lo por prévio prazer de imaginação.
Não vi mas vejo já dele os olhos de petiz
recebendo carta em seu nome e, feliz,
mostrar aos pais dele, que dele são,
dele o nome na carta segura na mão.
Quando eu era do tamanho do João
isto é do tamanho do mundo lés-a-lés
não havia ainda Xutos & Pontapés
mas havia que eu sabia imaginação.
É mais pequeno que o dele hoje o meu mundo.
Tal não me confunde nem eu me confundo
com coisas assim banais e triviais.
Só sei que dar ao João é dar a Cristo e é dar aos pais.
E já agora também dentro da cartinha
ia para os Xutos qualquer coisinha.
XVIII
Tenho pelas crianças uma espécie de respeito
tu-cá-tu-lá.
Não estou a falar só das minhas.
As vossas
neste aspecto
são minhas também
assim como todos nós os pequenos grandes
somos mais delas que elas
de pai e de mãe.
Sim
tenho pelas crianças uma fé viva em santos vivos.
Se
como hoje
como ontem
como para sempre
vejo uma ao sol da manhã
sinto logo no ar o fio de hortelã
que o fio das crianças cheira sempre a amanhã.
XIX
Também há outros assuntos
claro.
Há o assunto da morte.
Olha para mim cheio de medo nenhum dela
excepto da alheia
a única que me pode doer e dói.
O sentido da vida é a morte.
O sentido da morte é abrir ela
a morte
alas asas a outra vida
não de novo nossa
mas a outra que a si mesma chamará
eu
sei lá eu o que for.
XX
Digamos bendigamos a prístina pátina
dos mil sóis em mil águas engastados.
Digamos um rio ao sol da manhã:
joalharia é de anjos ourives
os vivos anjos da áurea refracção das manhãs
a que chamo ouro por ser pobre mas bem agradecido.
XXI
Ainda não é o silêncio
esse cimento.
Ainda é a vida
seus múltiplos aspectos.
Não é ’inda a febre desenhando nos tectos
fantasmas de rostos esperando o momento
da nossa passagem além outro lado azul.
Além outro lado da alma, do escalpe.
Ist’é a Cervejaria Reis, S. Pedro do Sul,
Rua Além da Fonte, mesmo junto à Galp.
XXII
Toquemos
’inda é tempo
a face da ourivesaria.
É o cristal da manhã rés-vés rés-voz água fria.
Planície da prata da prata do dia.
Fria face dia e ourivesaria.
XXIII
Tudo é vão.
Tudo e todos vão.
Vieram mas vão.
Até os cães ladram
vão vão vão vão.
XXIV
Vimos e vemos que viemos.
Não se perdeu tudo, digamos.
Digo
as manhãs que incendeiam o verão mesmo de inverno
as tardes que se outonam como pálpebras de sono
as noites desertas plenas da fátua multidão dos anjos.
Disse-te recentemente que se tornam pedra os anjos
quando os descobrimos, quase mansos lobos de luz, entre folhagens.
Cerca-nos o silêncio mas falaremos ainda.
Amanhã
como as crianças
na pedra.
No cimento.
4 comentários:
Curioso o fato - não é a primeira vez que venho parar no seu blog, por caminhos bem distintos. Me impressionam o volume e densidade dos seus escritos. Estranho passar aqui outra vez por acaso, que nem tão navegante sou pelo computador.
Tenho também um blog, se lhe apetecer, passe por lá. Sou brasileira, de Belo Horizonte.
é a magnífica a tua capacidade de escrever, daniel. e sempre com algo de novo a dizer. um exemplo a seguir, sem dúvida. obrigada e um beijo.
eu é que te agradeço, Alice, com o coração todo.
à Lelena também agradeço. viu?
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