Acordo em suavíssima amargura.
A janela do quarto demonstra que a terra não pousou ainda no céu.
Abro os olhos para que os sonhos caiam como vidros ao chão.
O sol não virá hoje.
Sei-o por causa das árvores.
Vou à varanda consultá-las.
São como gente na cinza.
Algumas são incêndios frios.
Por toda a casa, os móveis emitem seus morses.
Os objectos não pesam.
Flutuam na cegueira translúcida.
A lareira apagada como um coração sem portador.
Os quadros sem cor nas paredes apagadas.
Os retratos de gente a que pertenci como um cão.
É uma manhã nocturna, mas estou preparado.
O meu corpo fala-me.
Ele diz-me ternas obscenidades, que tornarei versos.
Sou este homem nesta hora.
Na cozinha, a taça diz os frutos.
Café chilreia na cafeteira italiana.
Impressas a contraluz nas cortinas, as árvores fumam gaze.
Sento-me perante a chávena azul.
Olho-a como a um livro.
Olho-a como a um livor.
Entrego-lhe os meus pontos.
Descubro as minhas mãos em torno dela.
São mãos azuis.
Sou este homem nesta rua.
O parque respira como um animal transparente.
A minha gente fantasmática ambula pelas ruas vegetais.
Sei que sou, não que hora é.
Espera: esta visão é cristal líquido.
Geadarei passos frios na revoada de ouro.
Outonam-se-me as folhas, que encaparei no caderno.
Devo receber tudo isto.
O cão madrugador.
A pincelada hipnótica do corvo
que nunca adormece
nem acorda nunca.
Texto: Caramulo, noite de 9 de Novembro de 2007
Foto: Sandra Bernardo, Caramulo, manhã de 3 de Novembro de 2007
4 comentários:
Bonjour daniel, sublime poème de sensations de mélancolie traversant d'un pas glissé la maison et notre vue.
Ce sont ceux que je préfère, où l'apesanteur d'une brume exquise et suavement blessée, me font marcher entre les vos pas.
Bon dimanche et que le soleil soit,
um abraço, LM, Paris
Bonjour, L. Merci.
"Abro os olhos para que os somhos caiam como vidros ao chão".
Sublime esta comparação que é tão ampla como uma imagem. Grande momento de poesia!
Todas as palavras deste poema são belas...belas.
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